O que é este blog?

Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.

quinta-feira, 4 de outubro de 2018

Raymond Aron: uma influencia decisiva em minha formacao - Paulo Roberto de Almeida

Recebi, no começo deste ano, uma consulta para um trabalho acadêmico, sobre a importância de Raymond Aron para o meu trabalho ou minhas reflexões de relações internacionais. Respondi ao questionário, e ainda recentemente consultei sobre o aproveitamento de minhas respostas para tal trabalho, mas ainda não obtive resposta.
Como acredito que Raymond Aron deve ter influenciado dezenas, centenas, talvez milhares de outros pesquisadores e estudiosos do mesmo campo, resolvi postar aqui minhas respostas a um questionário, que talvez interessem alguém, se isso tem alguma validade.
Comecei a ler Raymond Aron por meio de seus artigos no L'Express ou no Le Figaro, traduzidos e publicados no Estadão. Mais tarde, já na Europa, adquiri praticamente todos os seus livros, e lembro-me inclusive de ter emprestado um desses livros a um colega da ULB, que nunca me devolveu...
Estou com raiva até hoje.
Em todo caso, aqui vão minhas respostas às perguntas formuladas.
Paulo Roberto de Almeida 
Brasília, 4 de outubro de 2018

Raymond Aron: uma influência decisiva em minha formação

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 18 de fevereiro de 2018
 [Objetivo: Respostas a consulta de acadêmicofinalidade:influência de Raymond Aron no meu trabalho intelectual.]


Respostas de Paulo Roberto de Almeida às questões recebidas:

I.      Como se deu o seu primeiro contato com Raymond Aron ou com a sua obra? Em quais circunstâncias?

PRA: Meu primeiro contato com a obra e o pensamento de Raymond Aron se deu ainda em meados dos anos 1960, jovem adolescente frequentando o “colegial” (ou seja, a segunda etapa do secundário, ou curso médio, depois do ginasial, no então chamado “clássico”, em contraposição ao “científico”, preparatório ao terceiro ciclo de estudos), mas já leitor de obras típicas dos cursos universitários em humanidades. Estudando de noite e trabalhando de dia, eu comprava o jornal “reacionário” O Estado de S. Paulo todos os fins de semana, especialmente aos domingos, interessado nos suplementos culturais do sábado, e nos grandes artigos internacionais do domingo. Minha atenção para os temas internacionais tinha sido despertada pouco tempo antes por uma palestra do cientista político e editorialista do Estadão Oliveiros da Silva Ferreira, feita ainda no ginásio (em 1964 ou 1965), sobre a crise dos foguetes soviéticos em Cuba e o contexto geral da Guerra Fria. A partir desse momento, passei a comprar o Estadão nas bancas, todo fim de semana, e passava as tardes lendo e estudando os grandes artigos traduzidos de grandes intelectuais internacionais. Entre eles se encontrava obviamente Raymond Aron, e ao que me lembre eram artigos traduzidos do semanário L’Express ou de outros periódicos publicados na França. Nessa época, eram poucas as revistas brasileiras sobre temas internacionais, e eu ignorava obviamente a existência da Revista Brasileira de Política Internacional, publicada no Rio de Janeiro desde 1958, mas que não circulava nos circuitos comerciais de varejo. Foi nas páginas do Estadão de domingo, portanto, que eu tomei contato, pela primeira vez, com os artigos eruditos de Raymond Aron e de Roberto Campos, duas leituras obrigatórias, ainda que com grandes restrições de caráter ideológico, uma vez que eu me considerava um aderente precoce da doutrina marxista, e portanto “inimigo” do pensamento de “direita” representado pelos dois intelectuais. Este foi o meu primeiro contato com as ideias “direitistas” de Raymond Aron, intelectual que nunca deixei de ler, mesmo tentando me contrapor, como também era o caso em relação a Roberto Campos, aos seus argumentos enquadrados no pensamento geopolítico da Guerra Fria, durante a qual eu mantinha um posicionamento anticapitalista, mesmo sem necessariamente aderir ao comunismo de tipo soviético, que sempre desprezei. 

II.    Em sua opinião, qual a influência do pensamento de Aron tendo em vista as temáticas intelectuais às quais ele se dedicou?

PRA: Posso dizer que essa influência foi enorme, mesmo a contragosto, se ouso dizer, uma vez que, numa primeira fase, o marxismo juvenil, de certo modo ingênuo, me levava a considerar que o lado correto era o do intelectual esquerdista Jean-Paul Sartre, não o de Raymond Aron, classificado entre os partidários da “direita”. Pouco antes de sair do Brasil, no final de 1970, em direção à Europa, eu já considerava indispensável ler suas obras, que conhecia de nome, mas que ainda não havia lido nem em francês – língua que eu dominava mal – nem em eventuais traduções em português, que ignorava existir. Sabia de seus livros resultantes das aulas na Sorbonne desde meados dos anos 1950, mas não tinha tido ainda oportunidade de ler.
Estimo que sua influência foi apenas parcialmente importante, no conjunto da academia até o final dos anos 1960, ou até mais além, uma vez que as humanidades no Brasil sempre estiveram bem mais vinculadas ao pensamento marxista do que às teses e argumentos “atlantistas” ou “liberais” de intelectuais como Raymond Aron ou, no caso, brasileiro, Roberto Campos, Eugênio Gudin, ou outros. Ainda se achava basicamente correta a postura de “estar errado com Jean-Paul Sartre, em lugar de acertar com Raymond Aron”, e 1968 era considerado um passo na direção correta, a de recusar a sociedade burguesa e construir uma sociedade solidária; esta não estava alinhada com as posturas do comunismo tradicional, mas sim com a Escola de Frankfurt, com Herbert Marcuse, com Wilhelm Reich e outros teóricos libertários. 
Na época “áurea” da Guerra Fria, Raymond Aron estava estritamente alinhado com os esquemas atlantistas da OTAN e dos EUA, então envolvidos na guerra do Vietnã, e portanto condenados por toda a esquerda mundial, da qual, uma parte pelo menos apoiava a “revolução cultural” da China de Mao, considerada uma etapa superior de construção do comunismo, acima do burocratismo do sistema soviético. Nesse contexto, Aron era cultivado apenas num pequeno circulo de iniciados, uma vez que a maior parte dos acadêmicos se alinhava com as posições “progressistas” da esquerda ocidental. 

III.  Aron ainda pode ser considerado, em termos intelectuais, autor atual e influente?

PRA: Absolutamente: todas as suas obras, sejam as de filosofia da história, ou as de sociologia industrial, e ainda as de geopolítica no contexto das doutrinas realistas, são pertinentes e indispensáveis a um debate intelectual da mais alta qualidade sobre os problemas sociais, políticos e geopolíticos das sociedades contemporâneas, mesmo no pós-Guerra Fria, uma vez que as características e tendências fundamentais da geopolítica mundial, e das sociedades industriais permanecem válidas mesmo após o declínio irresistível dos projetos socialistas de cunho marxista-leninista. Aron preserva uma lucidez impressionante em relação ao simples debate entre liberais e socialistas de cunho reformista (lassalianos, fabianos, ou seja II Internacional), e mantém coerência em relação às escolhas fundamentais que devem ser feitas no plano interno (democracia de mercado) e no contexto internacional (defesa dos valores ocidentais, contra propostas autoritárias de ordenamento político e social). 

IV.   Quando aluno, Aron aparecia como bibliografia nos cursos de graduação e/ou pós-graduação que você frequentou? Como professor, você utiliza ou utilizou obras de Aron como bibliografia em cursos de graduação e/ou pós-graduação? Nos dois casos, quais obras?

PRA: Frequentando cursos de Ciências Sociais no Brasil (USP) e no exterior (ULB, em Bruxelas), não me lembro de ter sido recomendado expressamente a ler Raymond Aron, mas como ele era um referência indispensável nos debates políticos da época, fui levado a buscar voluntariamente seus livros sobre a sociedade industrial, e seus debates com os intelectuais marxistas. Nessa época, início dos anos 1970, ainda procurava me alinhar mais com os autores marxistas (sobretudo da Europa ocidental), mas nunca deixei de ler Raymond Aron, como o contraponto necessário aos argumentos dessa linha. Junto com Aron, lia Karl Popper e outros “liberais”, embora tendesse a aderir bem mais às teses anticapitalistas dos socialistas franceses e ingleses, tipo Nikos Poulantzas, Christopher Hill, Perry Anderson e outros. Aron era o antagonista preferido de toda essa tropa de marxistas acadêmicos, aos quais eu aderia residualmente, sem deixar de me referir a Aron (ou Alain Peyrefitte, por exemplo) em sua contestação às principais teses dos esquerdistas. Aos poucos, Aron deixou de ser o “inimigo ideológico” para se converter no “adversário político”, mais adiante convertido em “interlocutor indispensável”, nas reflexões sobre as vias abertas às sociedades do Ocidente e as do Terceiro Mundo.

V.     Durante sua segunda visita ao Brasil, em 1980, Aron foi a figura central do simpósio “Raymond Aron na UnB”. Em relação ao homenageado, em sua opinião e tendo em vista o contexto da época, quais as principais motivações para o convite? Em que medida, tais motivações teriam estado ligadas ao contexto político nacional (início do processo de redemocratização) e ao contexto internacional, ainda marcado pela tensão bipolar entre os EUA e a URSS - para além das questões propriamente intelectuais?

PRA: Nessa fase, início dos anos 1980, eu já tinha ingressado na carreira diplomática (desde 1977) e me encontrava em postos no exterior, de 1979 a 1984, entre Berna e Belgrado, e tinha retomado minha tese de doutoramento em sociologia política, iniciada em 1976, mas interrompida em 1977 na volta ao Brasil. Posso dizer que Aron foi decisivo no plano puramente bibliográfico, pois passei todos esses anos lendo uma enorme bibliografia em história e sociologia, para completar uma tese sobre as revoluções burguesas, mas num sentido totalmente contrário ao que tinha quando fiz o projeto e iniciei os trabalhos entre 1976 e 1977. Não só Aron, mas Weber, Fernando Braudel, Barrington Moore Jr., Albert Hirschman, os revisionistas históricos sobre as revoluções burguesas, influenciaram minha conversão do marxismo acadêmico a uma análise mais realista dos processos políticos e sociais que levaram as sociedades do Ocidente moderno a sistemas políticos pluralistas e abertos. Aron, entre vários outros, foi essencial nessa revisão interpretativa sobre a natureza do poder político e suas relações com a base social e econômica no processo de modernização contemporânea.
Não tomei conhecimento da vinda de Raymond Aron ao Brasil senão depois de 1985, ao retomar ao Brasil e começar a dar aulas na UnB e no Instituto Rio Branco (a academia diplomática do Itamaraty) de sociologia política, exatamente. Aron era, não preciso dizer, uma referência indispensável, junto com Weber, Marx e outros teóricos, na construção das aulas e nas reflexões sobre nossa transição democrática pós-regime militar. Foi nesse momento que abandonei completamente os esquemas marxistas de reflexão em favor de uma visão mais eclética, inevitavelmente influenciada por intelectuais como Raymond Aron.

VI.   Também à época de sua segunda visita, a Editora da UnB traduziu e publicou a principal obra de Aron dedicada ao tema das relações internacionais, Paz e Guerra entre as nações, além de diversos outros títulos de autores tidos como conservadores ou liberais. Em sua opinião, qual a importância deste esforço editorial tendo em vista o ambiente intelectual brasileiro da época?

PRA: O esforço empreendido no âmbito da UnB, sobretudo por um dos integrantes do Conselho Editorial da Editora da UnB, o diplomata Carlos Henrique Cardim, foi absolutamente magnífico, no sentido de trazer ao Brasil as mais importantes obras do pensamento político e de relações internacionais, até então inacessíveis ao público local, em especial os cientistas sociais brasileiros. Simplesmente não se tinha acesso a essas obras, a não ser trazidas do exterior pelos próprios acadêmicos que estudavam fora, mas os estudantes estavam praticamente excluídos desse universo. De repente, no espaço de poucos anos – primeira metade dos anos 1980 – todas essas obras ficaram disponíveis, com traduções de qualidade, feitas por diplomatas e professores. Se quisermos mensurar esse aporte em termos de PIB intelectual, pode-se dizer que a riqueza intelectual trazida por essas edições situou-se na faixa de 10 a 20% de acréscimos bibliográficos, senão mais. Mas não só as edições: a própria presença de eminentes intelectuais trazidos para debates pessoais com acadêmicos brasileiros representou um empreendimento intelectual até hoje inigualado nas proporções que essas iniciativas da UnB representaram à época e nos anos subsequentes. A série “[Fulano] na UnB” ofereceu uma apresentação sintética do pensamento de cada um dos intelectuais trazidos ao Brasil, que pode ser considerada inédita no plano mundial, uma vez que não existe depoimentos do gênero dos que foram feitos na UnB nas edições estrangeiras.

VII.  O livro ‘Paz e Guerra entre as nações’ foi adotado pelo MEC como leitura obrigatória nos cursos de graduação em relações internacionais a partir dos anos 2000. Como você avalia a influência desta obra em particular para o campo das RI? Aron pode ser considerado um autor original ou influente a partir das reflexões contidas no livro?

PRA: Os poucos geopolíticos existentes no Brasil, mas muitos outros professores de relações internacionais, são obrigados a recorrer ao pensamento de Aron, pois ele é incontornável no debate a respeito das grandes questões da guerra e da paz no plano mundial. A bibliografia necessariamente parte de Morgenthau e vai diretamente a Aron, como referência indispensável na discussão da temática geopolítica. O seu realismo “frio”, construído a partir de uma potência de primeiro plano, mas diminuída depois dos conflitos napoleônicos (clausewitzianos) e sobretudo com a ascensão da Alemanha, oferece um contraponto necessário à bipolaridade da era nuclear capitaneada pelos EUA e pela União Soviética. Nesse contexto bipolar, a França foi a nação que escolheu ter uma defesa própria, independente do campo ocidental, e com isso representa um tipo de soberanismo geopolítico talvez adequado a um país como o Brasil, também cioso de sua autonomia em relação aos blocos então existentes.

VIII.      Ainda no campo dos estudos das relações internacionais, Aron alinha-se à tradição dos pensadores realistas. Poderíamos vislumbrar afinidades eletivas entre o pensamento reinante no Itamaraty, cuja origem remete a Paulino Soares de Sousa, o Visconde de Uruguai - leitor sistemático de Tocqueville, e as posições liberais que Aron sustentou ao longo do século XX?

PRA: Aron era o que eu chamo de “realista flexível”, ou seja, consciente de que o equilíbrio entre grandes potências e potências médias, ainda que fortes (como a França), não poderia ser estudado e considerado apenas com base em premissas teóricas, mas sobretudo com base num itinerário específico no plano das experiências concretas. Essa era, também, a perspectiva de Tocqueville, que estudou os Estados Unidos em sua dimensão própria, ainda que contrapondo suas estruturas políticas e sociais às de sua França e Europa aristocráticas – ainda que transformadas, ambas, pelas grandes rupturas da revolução e da era napoleônica – e podia assim fazer uma análise original da formação política e social americana, apontando-a como o futuro da Europa igualmente (no que estava enganado). Aron tinha plena consciência do quantum de liberdade que os homens e as sociedades dispõem para determinar o seu futuro, e não alimentava nenhum determinismo fatalístico quanto a isso. Sua compreensão da doutrina marxista, e também da weberiana, o habilitava a distinguir os imponderáveis da história.
Nisso, ele foi totalmente distinto dos demais intelectuais franceses (ou de quaisquer outros países) de gabinete, pois temperava suas leituras dos clássicos e contemporâneos com uma reflexão original sobre os itinerários concretos das sociedades. Importante nessa originalidade teórico-prática foi a sua estada na Alemanha no início dos anos 1930, quando assistiu à ascensão do nazismo, constatando a deriva de algumas sociedades para o populismo, a demagogia, o autoritarismo e outras falácias e tragédias, o que o colocou à frente de todos os demais intelectuais puramente acadêmicos. Sua estada em Londres, durante a guerra, também foi importante ao dar uma dimensão eclética ao seu pensamento, absolutamente original no contexto francês. 
Não estou habilitado a avaliar, por não conhecer, essa influência de Tocqueville nas concepções do grande diplomata que foi Paulino Soares de Souza, certamente um dos maiores diplomatas do Império, junto com Miguel da Silva Paranhos, o Visconde do Rio Branco. Todos eles foram realistas flexíveis, podendo ser considerados, nesse sentido, “aronianos avant la lettre”, como também o foi o filho do Visconde, o Barão do Rio Branco, menos doutrinário do que Rui Barbosa, por exemplo. Nenhum deles têm sucessores claros no século XX, a não ser parcialmente: Oswaldo Aranha, um realista sem qualquer elaboração doutrinal (a não ser um estrategista instintivo), San Tiago Dantas, um pensador original, infelizmente desaparecido precocemente, e talvez Roberto Campos, um realista da tecnocracia planejadora antes de se converter em um liberal pragmático; pode-se agregar o nome de José Guilherme Merquior, mas este bem mais no terreno teórico do que prático. Todos eles passaram a integrar plenamente minhas reflexões de natureza política, econômica e geopolítica, e meus escritos.

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 18 de fevereiro de 2018



Politica externa brasileira: respostas a questionário acadêmico - Paulo Roberto de Almeida

Respostas a um questionário submetido por um acadêmico estrangeiro pesquisador das relações internacionais do Brasil. Transcrevo tal como respondi, sem qualquer revisão posterior, mas remetendo a diversos outros trabalhos anteriores, já divulgados neste espaço ou em outras veículos.
Paulo Roberto de Almeida 
Brasília, 4 de outubro de 2018


Política externa brasileira recente: algumas questões tópicas

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 17 de fevereiro de 2018
 [Objetivo: comentários a questões de acadêmico; finalidade: ensaio sobre diplomacia]


Introdução
Encontram-se, abaixo, meus comentários e argumentos em resposta a questões tópicas, ou gerais, apresentadas por acadêmico estrangeiro engajado num ensaio de ciência política sobre a política externa e a diplomacia brasileira desde o início do presente século, quando o Brasil parecia emergir como grande ator internacional, mas teve sua presença internacional e status diminuídos, a partir da recessão e da crise do impeachment, o que refletiu-se na sua imagem e na sua atuação nessas dimensões.
Não pretendo, e esta não é a intenção, que meus argumentos e opiniões, pessoais e subjetivos como eles podem ser, sejam utilizados para compor uma atualização final desse trabalho, cuja discussão central atinha-se ao período pré-2014, pois entendo que eles serão apenas utilizados como subsídios para uma avaliação ex post da análise já feita no trabalho original. Minha visão é puramente pessoal, e não corresponde, como deve ficar claro, à opinião média de um diplomata sobre a política externa do país.

Questões: 


PRA: Caberia, em primeiro lugar, estabelecer duas premissas fundamentais para uma correta caracterização da problemática acima, por um lado no contexto do país, por outro lado quanto à dimensão temporal implícita à questão. O Brasil, na condição de país participante da política internacional, enquanto ator regional ou mundial, enquanto membro de diferentes instituições e arranjos da comunidade internacional, no plano multilateral ou em suas relações bilaterais, esse país referido de maneira genérica não existe enquanto entidade uniforme, homogênea, contínua e constante no contexto dessas várias dimensões de sua política externa. O que existe é uma política externa específica e própria de um governo determinado, o que, num sistema presidencialista como é o seu, significa a política externa de um determinado presidente, animada pelas forças atuantes nesse determinado governo, com base numa hegemonia política do partido ou da coalizão de partidos dominantes no mandato presidencial em questão. Por isso não creio ser correto afirmar-se que o Brasil tinha tal e tal política externa até 2014, e passou a ter esta outra política externa a partir desse ano, o que já entra na discussão do segundo aspecto levantado como premissa: o suposto corte temporal em 2014.
A caracterização correta deve ser, em função da história política brasileira entre janeiro de 2003 e maio de 2016, a política externa dos governos do PT, não do Brasil, nesse período, e a política externa desenvolvida desde então. Qualquer observador político dotado de um conhecimento mínimo das características essenciais da política externa brasileira saberia fazer tal distinção, e é a partir dela que podemos responder à questão colocada, a da “inserção e projeção internacional e da visibilidade do envolvimento do Brasil no cenário internacional desde 2014”. Meu comentário, então, passa a ser o seguinte.
Existe uma nítida diferenciação entre a política externa daquilo que eu chamo de “lulopetismo diplomático”, ou seja, a diplomacia e a política externa do Brasil tal como conduzidas pelos governos petistas entre 2003 e 2016, e a política externa do Brasil até 2002 e a partir de meados de 2016 até a presente data, ainda numa fase de transição política a ser marcada pelas eleições presidenciais e gerais de outubro de 2018. Como eu já elaborei diferente análises sobre o “lulopetismo diplomático”, remeto a trabalhos anteriores já publicados ou divulgados sobre essa anomalia política, para depois concentrar-me nas diferenças a partir de 2016.
Eis aqui uma pequena relação de análises feitas ainda em 2016 cobrindo aquele período anterior: 
2985. “Política externa e política econômica no Brasil pós-PT”, Brasília, 29 maio 2016, 6 p. Comentários tópicos em um artigo para Mundorama(7/06/2016; link: http://www.mundorama.net/2016/06/07/politica-externa-e-politica-economica-no-brasil-pos-pt-por-paulo-roberto-de-almeida/). Divulgado no blog Diplomatizzandoem 8/06/2 (link: http://diplomatizzando.blogspot.com.br/2016/06/politica-externa-e-politica-economica.html).

2983. “O renascimento da política externa”, Brasília, 25 maio 2016, 14 p. Artigo publicado na revista Interesse Nacional(ano 9, n. 34, julho-setembro de 2016, link: http://interessenacional.com/index.php/edicoes-revista/o-renascimento-dapolitica-externa/). Reproduzido no blog Diplomatizzando(3/08/2016; link: http://diplomatizzando.blogspot.com.br/2016/08/o-renascimento-da-politica-externa.html). 

2982. “Do lulopetismo diplomático a uma política externa profissional”, Brasília, 22 maio 2016, 7 p. Mundorama(23/05/2016, link: http://www.mundorama.net/2016/05/23/do-lulopetismo-diplomatico-a-uma-politica-externa-profissional-por-paulo-roberto-de-almeida/); reproduzido no blog Diplomatizzando(http://diplomatizzando.blogspot.com.br/2016/05/do-lulopetismo-diplomatico-uma-politica.html).

2977. “O Itamaraty e a diplomacia profissional brasileira em tempos não convencionais”, Brasília, 15 maio 2016, 10 p. Entrevista concedida ao blog Jornal Arcadas, sobre aspectos da carreira e do funcionamento do Itamaraty na fase recente. Publicado, sob o título de “Entrevista: a crise e o anarco-diplomata”, no blog Jornal Arcadas (15/05/2016); reproduzido no Diplomatizando (http://diplomatizzando.blogspot.com.br/2016/05/um-anarco-diplomata-fala-sobre.html). 

2969. “Epitáfio do lulopetismo diplomático”,Brasília, 2 maio 2016, 3 p. O Estado de S. Paulo(17/05/2016; link: http://opiniao.estadao.com.br/noticias/geral,epitafio-do-lulopetismo-diplomatico,10000051687), reproduzido no blog Diplomatizzando(link: http://diplomatizzando.blogspot.com.br/2016/05/epitafio-do-lulopetismo-diplomatico.html). 

No período posterior à queda do lulopetismo, uma vez iniciado e completado o processo de impeachment, continuei a elaborar alguns textos que justamente faziam o balanço do lulopetismo diplomático, dentre os quais posso destacar os seguintes: 

2988. “Política externa brasileira, 2: o que faria o Barão hoje, se vivo fosse?”, Brasília, 1 junho 2016, 7 p. Blog Diplomatizzando(17/02/2018; link: https://diplomatizzando.blogspot.com.br/2018/02/politica-externa-brasileira-o-que-faria.html).

2999. “Auge e declínio do lulopetismo diplomático: um depoimento pessoal”, Brasília, 22 junho 2016, 18 p.; revisto: 26/06/2016: 19 p. Blog Diplomatizzando(1/07/2016; link: http://diplomatizzando.blogspot.com.br/2016/07/ufa-um-depoimento-meu-sobre-o.html).

3032. “O lulopetismo diplomático: um experimento exótico no Itamaraty”, Porto Alegre, 4 setembro 2016, 5 p. Blog Diplomatizzando(link: http://diplomatizzando.blogspot.com.br/2016/09/o-lulopetismo-diplomatico-um.html).

3061. “O Itamaraty e a nova política externa brasileira”, Brasília, 19 novembro 2016, 18 p. Blog Diplomatizzando(15/08/2017; link: https://diplomatizzando.blogspot.com.br/2017/08/o-itamaraty-e-nova-politica-externa.html).


3116. “Crimes econômicos do lulopetismo na frente externa”, Brasília, 12 maio 2017, 7 p. Resenha do livro de Fabio Zanini, Euforia e fracasso do Brasil grande: política externa e multinacionais brasileiras na era Lula(São Paulo: Contexto, 2017, 224 p.; ISBN: 978-85-7244-988-5). BlogDiplomatizzando(link: http://diplomatizzando.blogspot.com.br/2017/05/crimes-economicos-do-lulopetismo-na.html).

3121. Quinze anos de política externa: ensaios sobre a diplomacia brasileira, 2002-2017; Brasília: Edição do Autor, 2017, 366 p. Blog Diplomatizzando(http://diplomatizzando.blogspot.com.br/2017/05/quinze-anos-de-politica-externa-ensaios.html).

3126. “Uma visão crítica da política externa brasileira: a da SAE-SG/PR”, Brasília, 17 junho 2017, 22 p. Mundorama: Revista de Divulgação Científica em Relações Internacionais(2/12/2017; ISSN: 2175-2052;acessado em 03/12/2017; link: http://www.mundorama.net/?p=24308).

3197. “Depois da diplomacia companheira: o que vem pela frente?”, Brasília, 26 novembro 2017, 3 p. Gazeta do Povo (28/11/2017, link: http://www.gazetadopovo.com.br/opiniao/artigos/depois-da-diplomacia-companheira-o-que-vem-pela-frente-di5ffopc0ywu56cc29s8s5hsr). Blog Diplomatizzando(28/11/2017; link: https://diplomatizzando.blogspot.com.br/2017/11/depois-da-diplomacia-companheira-o-que.html).

3221. “A diplomacia na construção da nação: qual o seu papel?, Brasília, 28 dezembro 2017, 10 p. Mundorama(9/01/2018; link: http://www.mundorama.net/?p=24351).

Feitos os esclarecimentos sobre o que eu penso a respeito do “lulopetismo diplomático”, entre 2003 e 2016, e agregados alguns trabalhos posteriores, venho à resposta de como vejo a “inserção e projeção internacional e da visibilidade do envolvimento do Brasil no cenário internacional”, não desde 2014, mas a partir de 2016. Existe uma clara diminuição da atuação internacional do Brasil desde então, por força da ruptura política ocorrida com o impeachment, feito entre maio e agosto desse último ano, mas também é claro que essa redução do ativismo diplomático já vinha sendo observado desde o terceiro e o início do quarto governo lulopetista, dadas as características desastrosas da substituta do presidente Lula a partir de 2011, notadamente a partir da crise econômica, e política que já se manifestava claramente a partir de 2014 (ano da reeleição de Dilma Rousseff) e que só se agudizou a partir da clara falta de legitimidade de seu mandato político e da grande crise econômica que se exacerbou a partir de então (mas cujas raízes já vinham desde antes, praticamente desde o período final do segundo mandato lulopetista). 
A presidente – e isso ficou claro desde seu primeiro mandato – não era apenas inepta, incompetente e errática em suas ações e decisões, como ela também rebaixava a política externa, não tinha nenhuma empatia pela diplomacia profissional, que ela desprezava profundamente, a ponto de humilhá-la seguidamente com suas ações intempestivas e prejudiciais à diplomacia do país. Essa diminuição, portanto, existe, precede ao impeachment, mas se manifestou de forma mais clara desde então, inclusive devido à campanha nacional e internacional viciosa e viciada, mentirosa e mistificadora, conduzida pelos lulopetistas, com certo sucesso desde então, parte da qual está diretamente vinculada à ação do ex-chanceler sob os dois governos de Lula, convertido em ativo membro da tropa de choque de defesa do ex-presidente, criminoso condenado e chefe daquilo que já foi chamado de “organização criminosa”. Tais ações e campanha de propaganda, repercutidas e expandidas com certa eficácia pelos aliados políticos e pelas correias de transmissão identificados com as políticas de esquerda desses grupos teve, portanto, algum resultado em retirar legitimidade internacional ao governo de transição conduzido pelo vice-presidente (presidente pleno a partir de agosto de 2016) Michel Temer, a ponto de o Brasil ter sido “contornado” por diversos líderes políticos de parceiros tradicionais e por representantes diplomáticos desses países, a começar pelos antigos aliados dos governos lulopetistas. 
O segundo componente dessa diminuição relativa foi a crise econômica que se desenvolveu com enorme impacto sobre o crescimento e o nível de emprego do país, a maior recessão econômica de toda a história do Brasil: -3,8% do PIB em 2015, -3,6% em 2016, algo em torno de 0,5% em 2017, e mais de 13% de desemprego em relação à população economicamente ativa (mais de 14 milhões de desempregados, o que já representa uma subestimação com respeito aos números reais, bem maiores se levados em conta efeitos das políticas distributivas, tipo “Bolsa Família”, ou o subemprego tradicional no Brasil). Nunca o Brasil tinha conhecido um déficit orçamentário em torno de 10% do PIB, e um descalabro em suas contas públicas da dimensão conhecido nos últimos anos, como resultado das políticas econômicas (macro e setoriais) equivocadas conduzidas a partir de 2011 (com raízes anteriores, como a expansão desequilibrada das despesas públicas e a extensão do intervencionismo estatal desde sempre). Esse dado também afetou a capacidade de projeção internacional do Brasil, dado o enorme esforço de ajuste fiscal e de início de um processo de ajustes tópicos e de reformas estruturais que passaram a ser conduzidos desde então, processos ainda não concluídos de forma exitosa até o presente momento (primeiro trimestre de 2018). 
Tanto a tremenda crise econômica, ainda não completamente superada, como a relativa fragilidade do quadro político atual, bem como a campanha mentirosa e viciosa conduzida pelos lulopetista nos planos interno e externo durante os últimos dois anos afetaram, portanto, a política externa e a atuação diplomática do Brasil, o que explica o menor ativismo em relação ao período 2003-2010, que de toda forma foi exacerbado, devido à megalomania conjunta do presidente e de seu chanceler, muito mais baseada em retórica vazia e ativismo superficial do que em fundamentos sólidos de uma política externa que sempre exibiu, em circunstâncias normais, sua solidez doutrinal e adesão ao direito internacional, princípios abalados durante a vigência do lulopetismo político.

2) Como avalia a evolução da política externa e diplomacia presidencial desde 2014?

PRA: Essa evolução deve ser claramente redimensionada em função das fases políticas já definidas acima, quais seja, a dominação lulopetista sobre o Estado e o governo entre 2003 e maio de 2016, e, a partir de então, uma coalizão de forças políticas centristas, em parte integradas pelas mesmas forças que já integravam os governos petistas na fase anterior, com a adição de parte da oposição de direita ou centrista que tinham ficado alijadas do poder anteriormente. A diferenciação fundamental, crucial, essencial a ser feita – e que já está clara nos trabalhos pessoais listados mais acima – é a dominação do lulopetismo, em suas diferentes variantes, sobre a política externa e sobre a diplomacia exercida por apparatchiks do PT sobre essa política externa, e, a partir de 2016, um retorno a padrões mais tradicionais da diplomacia brasileira, tais como vistos e conhecidos até 2003 e novamente reativados desde 2016. A diplomacia profissional brasileira tem métodos de atuação, conceitos fortemente embasados, plena capacitação de seus quadros totalmente adequados para o exercício de uma política externa ativa, embora dependa, como parece claro, de uma liderança presidencial engajada em ações e iniciativas próprias ou suscitadas pela agenda internacional, regional ou multilateral. 
Em função do quadro político vigente no Brasil desde a crise do impeachment – de relativa desunião do país, embora sustentado artificialmente e com muita má-fé por parte das forças políticas alijadas do poder – e levando em conta o quadro de pré-campanha eleitoral em vista das eleições de outubro de 2018, parece evidente que a política externa e a diplomacia brasileira atuarão de modo menos ativo na fase atual, embora com pleno controle dos mecanismos e da capacidade de representação com base em seu corpo profissional do setor. Tal situação provavelmente persistirá até o início de 2019, quando um novo governo tomará posse, embora se possa prever continuidade relativa na atuação da diplomacia profissional brasileira, com base no funcionamento adequado do Itamaraty e de seu serviço exterior tradicionalmente.

3) Como avalia o mandado de tropas para a República Centro Africana? Como se integra nas posições do Brasil nas discussões internacionais sobre paz e segurança e participa da visibilidade do Brasil nesses debates e no cenário internacional?

PRA: Existe uma clara demanda externa, notadamente da França, e de outros membros do Conselho de Segurança, para o envio de forças brasileiras de interposição, com base em resoluções dos órgãos multilaterais e determinação das principais potências presentes naquele cenário, que identificam um interesse das Forças Armadas brasileiras nesse tipo de ação, que atende interesses próprios de capacitação operacional e outros objetivos internos a esse corpo profissional. O cenário é contudo diferente daquele que presidiu ao envio de forças brasileiras no quadro da Minustah, ao Haiti, a partir justamente do ativismo exacerbado do primeiro governo Lula em prol de sua projeção internacional, mirando, provavelmente, uma mal calculada ambição de vir a integrar o Conselho de Segurança da ONU, se e quando fosse efetivada a reforma da sua Carta e a ampliação do CSNU. Não há mais ilusões a esse respeito, por parte da diplomacia brasileira, quanto a essa perspectiva – amplamente ilusória, já naquele momento –, daí um ceticismo maior por parte da diplomacia profissional quanto ao interesse ou vantagens advindos dessa participação ainda hipotética. Se ela se efetivar talvez não o seja no corrente ano de 2018, dado o contexto político geral do Brasil, pois uma decisão desse tipo teria de passar pelo crivo do Congresso e por uma adequação de recursos orçamentários, o que possivelmente remeta a decisão ao ano d e 2019. 
Se ocorrer definição positiva, pode representar um passo adiante na capacitação das FFAA brasileiras em missões de paz da ONU – mas sempre de interposição, ou seja, de peace keeping, antes que de imposição da paz, ou de peace making –, o que contribuirá para reforçar o papel internacional que o país aspira ter no plano mundial. Mas também é preciso ficar claro que se trata de uma operação que transcende, talvez, o cenário ideal para um país como o Brasil, situada numa região e num contexto político nos quais e com os quais o Brasil possuí vínculos tênues, mesmo ínfimos, se algum. Ou seja, não seria um cenário de atuação escolhido voluntariamente pelo Brasil, ou por sua diplomacia, embora possa ter atrativos, mas puramente operacionais, do ponto de vista de suas FFAA. A perspectiva pode ser positiva, tanto no plano prático das FFAA, quanto na esfera diplomática, mas uma avaliação ponderada terá de ser conduzida com base num exame mais circunstanciado desse possível envolvimento. 
No momento atual, e isso precisa ficar claro, não existe um “mandado”, e sim uma demanda externa, que terá de ser cuidadosamente avaliada pelos dois ministérios em esforço de coordenação conjunta – Defesa e Relações Exteriores – e pelo presidente da República. Os imponderáveis são aqueles conjunturalmente oferecidos pelo atual momento de transição política, já referido, e requeridos por uma análise política a ser feita pelas duas instituições em condições concretas do debate mantido pelo Brasil com as potências interessadas e as instâncias da ONU envolvidas nesse processo.

4) Como avalia as políticas comerciais do atual governo: teve efetivamente um movimento de distanciamento da OMC? Qual é a efetividade das iniciativas para fechar acordos bilaterais?

PRA: Não apenas as políticas comerciais, mas todas as demais políticas setoriais do governo anterior, inclusive determinadas orientações da política macroeconômica, foram deformadas por escolhas e preferências claramente equivocadas dos governos lulopetistas, sobretudo a partir do seu terceiro mandato presidencial, políticas que levaram o Brasil à maior recessão de sua história econômica. Tais políticas envolveram igualmente desrespeito a regras multilaterais já aceitas pelo Brasil no quadro de rodadas e negociações comerciais multilaterais adotadas no âmbito da OMC, como foi o caso do “Inovar Auto”, condenado – como já estava claro desde o seu início – pelo mecanismo de solução de controvérsias da OMC, acionado por parceiros comerciais que se sentiram lesados por práticas discriminatórias adotadas pelo governo petista naquele âmbito.
O atual governo de transição efetua um reequilíbrio dessas políticas, que devem ajustar-se aos compromissos e obrigações multilaterais assumidos pelo Brasil, num quadro de relativa fragilidade competitiva do Brasil, cujas indústrias já são penalizadas por distorções internas – sobretudo tributárias – que redundaram numa perda de espaço nos mercados internacionais e numa desindustrialização precoce. O Brasil, sob os governos do lulopetismo, recuou nitidamente em diversos critérios classificatórios de entidades internacionais: ambiente de negócios (Doing Business, do Banco Mundial), competitividade (relatórios anuais do World Economic Forum) e, sobretudo, liberdades econômicas (Fraser Institute), para posições vergonhosas em face da relativa importância de sua economia (ainda entre as dez primeiras no plano do PIB total), mas em classificações mais negativas do ponto de vista do comércio internacional, da inovação e da produtividade. Essa situação exigirá um grande esforço do governo atual e de governos futuros em favor de profundas reformas estruturais e de ajustes internos em prol de uma nova inserção econômica internacional, claramente diminuída em função não apenas da crise como das políticas equivocadas, intervencionistas e também protecionistas e introvertidas. 
Os mesmos equívocos foram cometidos no âmbito regional e na esfera das negociações de possíveis acordos de abertura econômica e de liberalização comercial, praticamente inexistentes durante toda a era lulopetista, que deformou o funcionamento do Mercosul e desviou a orientação universalista do comércio internacional do Brasil, em favor de uma orientação “Sul-Sul” de caráter propriamente delirante, pois que não seguida por nenhum parceiro tradicional (no âmbito regional) ou “estratégico” (no Brics, por exemplo) do país, quaisquer que sejam eles. O Mercosul perdeu suas características essencialmente comercialistas para se transformar num palanque de retórica política, utilizado inclusive para objetivos partidários e sectários – como os episódios da suspensão do Paraguai e da aceitação política, equivocada e ilegal, da Venezuela como membro pleno – e perdeu espaço no relacionamento comercial externo do Brasil. O Brasil possui acordos comerciais no âmbito da Aladi, que devem ampliar bastante o acesso aos seus mercados pelos países da região (América do Sul), mas ainda precisa fechar acordo com o México e muitos outros países, uma vez que os acordos feitos na vigência do lulopetismo foram poucos e com impacto medíocre no leque de mercados com relações preferenciais do Brasil e do Mercosul. Mas ainda resta que a dimensão tarifária já é pouco relevante no quadro dos atuais acordos comerciais sendo negociados bilateralmente ou plurilateralmente na presente fase da economia mundial, sendo que na dimensão regulatória e nos demais aspectos – investimentos, serviços, propriedade intelectual e outros – o envolvimento brasileiro é bastante reduzido. 

5) O que significa, o que revela o Brasil estar ausente do CSNU até 2022?

PRA: Pode parecer uma diminuição relativa da presença brasileira em termos de projeção externa e oportunidade de participar de debates relevantes nesse plano, mas eu pessoalmente não considero tal afastamento absolutamente prejudicial ao Brasil ou à sua diplomacia. O Brasil poderá participar, se desejar ou puder, de certas operações negociadas no âmbito do CSNU mesmo sem dele participar, bastando manifestar sua intensão nesse sentido. Existe um critério de rotatividade regional, nem sempre seguido, o que pode ser contornado por certo ativismo diplomático, mas não creio que o Brasil resultará diminuído diplomaticamente ao seguir essa rotatividade de modo explícito. 

6) Como avalia a decisão de retomar as discussões para o acordo entre a UE e o Mercosul? Quais serão os benefícios? Qual é a probabilidade de fechar acordo?

PRA: Trata-se de processo antigo, que remonta aos anos 1990, quando ainda existia a perspectiva de um acordo hemisférico de libre comércio, um projeto dos EUA do início daquela década, que despertou os ânimos da UE no sentido de não ser prejudicada pela disposição latino-americana de entrar em acordos preferencias com a grande potência hemisférica no horizonte de 2005. Apenas por isso tiveram início negociações concretas entre a UE e o Mercosul, que no entanto nunca contaram com efetiva disposição liberalizadora por parte dos parceiros integrantes dos dois blocos. Como as novas lideranças de esquerda na América Latina – Lula no Brasil, Chávez na Venezuela, Kirchner na Argentina – decidiram implodir o projeto americano da Alca, o processo inter-regional UE-Mercosul padeceu os atrasos que se conhecem. Persistem obstáculos setoriais importantes – agrícolas, do lado europeu, industrial e de serviços, do lado do Mercosul – ainda que existam, a partir de novas lideranças políticas no Brasil e na Argentina, nítida boa disposição para fechar esse acordo. Não sou muito otimista quanto a isso, e ainda que ele venha a ser fechado, concluído e aprovado, sua implementação será provavelmente bastante longa (dez anos ou mais), para uma abertura efetiva de setores atualmente protegidos. Mesmo quando, e se, ele seja concluído, o acordo terá um impacto global marginal para o comércio da UE, um pouco mais para o Mercosul, embora possa ser setorialmente, e de um ponto de vista microeconômico, importante para alguns setores e empresas envolvidas no comércio.

7) Teve efetivamente um redirecionamento das relações para o eixo norte? Se for o caso, como se traduz de forma concreta? Qual é a relevância dos BRICS para o governo atual? Como avalia a decisão de entrar na OCDE? Quais são as implicações simbólicas?

PRA: Essa distinção Norte-Sul já não faz mais nenhum sentido para o governo atual, embora fizesse parte para os governos lulopetistas anteriores e para boa parte da academia, que vivem de símbolos, por mais inúteis que eles sejam no plano prático. Os governos lulopetistas se orgulhavam de praticar uma diplomacia Sul-Sul e de ter uma orientação geral de sua diplomacia para um hipotético, e inexistente, “Sul global”, uma fantasmagoria que só pode frequentar a cabeça de amadores, de sectários e de espíritos desconectados das realidades da economia mundial. O Brasil sempre teve uma política externa universalista, apenas deformada durante o lulopetismo diplomático por essa miopia fundamental dos companheiros e seus aliados acadêmicos, sem qualquer sentido para a boa condução da diplomacia brasileira, muito embora esta sempre tenha tido uma orientação política voltada para países em desenvolvimento, como caracterizada nessa divisão – que eu considero em grande medida artificial – típica da ONU entre os grupos regionais e o pertencimento clássico do Brasil ao G77. 
O BRICS, uma construção também artificial favorecida pelo lulopetismo por razões claramente políticas, permanece no espectro da movimentação diplomática brasileira, um pouco por inércia diplomática, um pouco pelo avanço em determinadas áreas – como o New Developement Bank, por exemplo – mas encontra-se, segundo a minha percepção, numa fase de reavaliação, em vista da diminuição das expectativas exageradamente otimistas da década anterior e da clara assimetria estrutural que é dada pela enorme dimensão econômica e política da China nesse grupo. 
A decisão de demandar ingresso pleno na OCDE já está atrasada vinte ou trinta anos, no plano objetivo do potencial econômico e político internacional do Brasil, mas é claro que o lulopetismo diplomático, e político, sempre teve objeções de princípio ao que ele considerava, de modo totalmente equivocado, como sempre, um “clube de países ricos”, o que a OCDE claramente não é mais desde o fim do socialismo e a adesão de diversos outros países em desenvolvimento, a começar, mais recentemente, pelo Chile no âmbito regional. Considero esse ingresso, se efetivado, como um passo importante para a “normalização” do Brasil no que respeita suas principais políticas macroeconômicas e setoriais, podendo reforçar e consolidar um padrão de qualidade nessas políticas que ele deveria já ter alcançado desde o início do Mercosul e do plano de estabilização macroeconômica de 1994-94, sob sua nova moeda, mas que se frustraram devido à deformação lulopetista do Mercosul, e a própria fragmentação do processo de integração regional e das políticas econômicas nacionais. 
A dimensão simbólica desse possível ingresso é, para mim, muito menor do que o atribuído no plano jornalístico pelos observadores, e desimportante para todos os efeitos práticos. O mais importante é o efeito que ele possa ter, como já afirmado, no plano da qualidade das políticas econômicas e demais políticas públicas setoriais, no plano interno, mas também como alavanca, necessária e importante, para reforçar um necessário processo de reinserção internacional do Brasil. Espero, apenas, que o Brasil, por força de todo o seu passado protecionista, intervencionista, dirigista, nacionalista, não venha a assumir, nesse ingresso, uma postura defensiva, que delongue, tolha ou torne imperfeito esse processo de abertura econômica do Brasil ao mundo, que é hoje o país mais fechado de todo o G-20 financeiro, no que se refere ao coeficiente comercial.
Alguns veem esse ingresso como complementar ao BRICS; eu, pessoalmente, vejo isso como totalmente contrário ao BRICS, um grupo ainda muito distante do conceito que considero necessário ao Brasil: democracia de mercado com pleno respeito aos direitos humanos e adesão a padrões elevados de governança responsável.

8) O que foi decidido sobre o fechamento de embaixadas e a retirada do Brasil de algumas instituições internacionais? O que revela?

PRA: Ocorreu, nos governos lulopetistas, um pouco por demagogia e por uma visão completamente equivocada do impulso lulopetista para reforçar a candidatura a uma cadeira permanente no CSNU, um sobre-dimensionamento da presença brasileira no exterior, com a abertura de missões diplomáticas em muitos países (praticamente em toda a América Latina, e em muitos países africanos), em claro descompasso com nossas possibilidades orçamentárias e de pessoal. A decisão de retraimento é sempre difícil, por envolver custos materiais e diplomáticos, e suponho que a retirada será muito gradual. A retirada de algumas instituições internacionais, por sua vez, também é muito limitada, e tem sido determinada mais por razões orçamentárias – ou seja, praticamente imposta pela área orçamentária do governo – do que por considerações diplomáticas. Não creio que revela nenhuma grande sinalização política especial, apenas um readequação das possibilidades do Brasil no cenário internacional, que foi excessivamente ampliada nos anos eufóricos, quase delirantes, do lulopetismo.


Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 17 de fevereiro de 2018


Meus critérios para as eleicoes parlamentares 2018 - Paulo Roberto de Almeida

O texto abaixo foi escrito no começo do ano, e expressava minha tremenda insatisfação com o Congresso brasileiro. Ela ainda continua, et pour cause...
Cada um decide por si, mas tendo a escolher novos candidatos, inclusive vários do NOVO, sempre quando possível.
Paulo Roberto de Almeida 

Meus critérios para as eleições de 2018

Paulo Roberto de Almeida
 [Objetivo: definir prioridades eleitorais; finalidade: instruir outros votantes]


Vou exercer meu direito de voto (infelizmente compulsório, mas eu o exerceria mesmo que fosse opcional):

1) Não reelejam NENHUM dos atuais detentores de cargos públicos; escolham candidatos sem histórico de mandato (sem garantia, porém, de que sejam melhores do que os atuais; ao menos, ainda não possuem know-how de extorsão de recursos públicos, ou pelo menos espero);
2) Não elejam NENHUM candidato a cargos executivos que já sejam detentores de cargos legislativos: eles não merecem, não fizeram por merecer, sobretudo nos últimos anos;
3) A palavra de ordem é: RENOVAÇÃO TOTAL, de todos os cargos, em todas as instâncias, em quaisquer circunstâncias;
4) Informe-se meticulosamente sobre quem for candidato: hoje o Google, e vários sites especializados permitem saber quem é, quem são os candidatos a cargos públicos;
5) Durante a campanha eleitoral, cada vez que um candidato prometer alguma coisa, informe-se se ele disse de onde irá buscar os recursos, quanto custa aquela promessa, e procure saber se ela é realmente prioritária;
6) Se você está em dúvida, ainda assim, consulte se o candidato foi alguma vez denunciado, indiciado, condenado; bandidos, mesmo condenados em primeira instância apenas, não merecem o seu voto.

Estes são os meus critérios básicos nas próximas eleições. Se você gostou, pode usar, não vou cobrar copyright. Mas se quiser me atribuir moral rights, estou de acordo... 

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 12 de janeiro de 2018

PS.: Continuo pensando o mesmo, dez meses depois.
Paulo Roberto de Almeida 
Brasília, 4 de outubro de 2018

quarta-feira, 3 de outubro de 2018

Um programa emergencial para um Estado falido - Paulo Roberto de Almeida

Muitos meses atrás, mais exatamente em maio de 2018, eu já me preocupava com a situação falimentar do Estado brasileiro, na verdade do país, de sua economia. E formulava algumas ideias básicas para sua recuperação. Agora, que estamos no limiar da escolha livre pelos cidadãos de um novo governo, permito-me divulgar essas poucas ideias formuladas ao correr da pena, ou à discrição do teclado.
O Comitê de Salvação Pública pode ser considerado uma provocação indevida, mas é justamente isto: considero a situação do Brasil tão grave, que requer a constituição de uma equipe encarregada da recuperação do país, em amplas bases consensuais, com os melhores economistas disponíveis no mercado.
Deixo aos comentários dos interessados.
Paulo Roberto de Almeida 
Brasília, 3 de outubro de 2018

Um programa de recuperação para um Estado falido
  
Paulo Roberto de Almeida
 [Objetivo: ensaio especulativo; finalidade: superação de letargias e anomias]

Introdução
Este pequeno texto constitui um exercício ideacional para aplicação prática em caso de necessidade emergencial em previsão de falência próxima dos órgãos públicos de governança em um Estado hipotético. Poderia ser um manual de governança, mas esse tipo de documento é geralmente usado para situações normais, ou seja, governos estáveis apenas necessitando de pequenos ajustes na sintonia entre os diversos órgãos de Estado, para seu funcionamento adequado. Em caso de graves anomalias, crises severas de natureza econômica, perda de legitimidade das lideranças políticas, cabe tomar, em consequência, todas as ações práticas visando à superação dos problemas de curto prazo, bem como planejar as ações necessárias para que esse país hipotético em crise temporária possa retomar uma trajetória normal de atividades e funções, com vistas a constituir-se numa nação normal, que deve caracterizar-se pelos seguintes aspectos: 

1) Estado de direito legítimo, reconhecido dentro e fora de sua jurisdição;
2) Estabilidade política, base necessária à estabilidade e à gestão econômicas; 
3) Sistema legislativo transparente e responsável perante os cidadãos eleitores;
4) Sistema judiciário funcional, isento de eventual arbítrio pessoal de juízes;
5) Respeito aos contratos, aos bens públicos e privados; repressão a violadores;
6) Mercados abertos, sem estatais e monopólios; inserção na economia global;
7) Pleno respeito aos direitos humanos e às liberdades individuais;
8) Diplomacia universalista, focada no interesse nacional e no direito internacional.

Caso um Estado qualquer não cumpra, em todo ou em parte, esses requisitos, e se encontre, eventualmente, em grave crise política e econômica, não descartando um possível estado pré-falimentar, com deterioração da governança, desrespeito à lei e graves violações da legalidade institucional e dos direitos humanos, caberia nesse caso distinguir entre medidas emergenciais para o restabelecimento da governança e um conjunto de outras medidas de caráter estrutural, para a reforma das políticas públicas no sentido de se alcançar as características acima apontadas. Com base nessas premissas, vejamos quais poderiam ser essas medidas de curto e médio prazo.

Medidas de caráter emergencial para a superação de grave crise conjuntural
Um governo “normal” não terá, eventualmente, plena capacidade de atuação em situações de crise, daí que se recomenda a constituição de um “Comitê de Salvação Pública” – de preferência sem guilhotinas de qualquer tipo – criado pelo parlamento (se este se encontrar em funcionamento normal) e integrado por um número reduzido de representantes das diversas correntes de opinião em que se divide o espectro político. Não poderão integrar esse Comitê – e a fortiori o governo, qualquer que seja ele – personalidades que de alguma forma estejam envolvidas em atos de corrupção, que tenham sido acusadas a qualquer título em crimes dessa ordem, pessoas já condenadas pela justiça por essas violações da legalidade, bem como representantes de partidos que tenham sido responsáveis por atos de corrupção de qualquer espécie. 
O Comitê de Salvação Pública deve se ocupar, em primeiro lugar, do próprio funcionamento do governo, e das relações entre os poderes, pois todo o cerne da crise deriva, não de alguma crise externa, mas do próprio governo, que impede o Estado de funcionar corretamente. Por isso, sua primeira tarefa recomendatória seria tratar das relações entre o executivo e legislativo, recomendando, seguindo a linha de um “código de ética” bastante estrito, a demissão imediata de todos os integrantes eventualmente envolvidos em atos de corrupção, objeto de investigações judiciárias ou policiais, passíveis de condenação penal (mesmo não definitivas), tais como lavagem de dinheiro, fraude fiscal e outros delitos graves, de natureza mafiosa. A interdição de compor o governo se estende também aos membros de partidos envolvidos nessas acusações, ou de todo e qualquer indivíduo que apresente um conflito de interesse com a causa pública e as ações do governo.
O Comitê de Salvação Pública convocará um grupo de trabalho integrado por economistas independentes – da academia, do setor privado, de órgãos da sociedade civil – e por membros da própria tecnocracia governamental para elaborar um plano emergencial de ajuste fiscal, uma vez que a crise fiscal parece estar na origem de todos os males do país. Tanto o Comitê quanto o GT fiscal não devem tergiversar sobre as palavras: trata-se, sim, de um programa de austeridade, a mais estrita e a mais completa, sobretudo nos três poderes, visando a estabelecer o equilíbrio permanente das contas públicas; ele deve atuar também sobre o crescimento inaceitável da dívida pública.
O GT distinguirá as medidas de curto prazo – corte de gastos, redução de despesas, fim de subsídios, corte de privilégios e mordomias em todos os órgãos públicos – e as medidas estruturais de médio e longo prazo, mas às quais também cabe dar início imediatamente: reforma e unificação dos sistemas previdenciários, sem qualquer distinção de categoria; fim da estabilidade na maior parte do serviço público; privatização de todas as empresas estatais e criação de um sistema regulatório que vise assegurar plena concorrência nas atividades e ramos desestatizados; revisão completa do sistema tributário no sentido da diminuição dos impostos, das alíquotas específicas e da carga fiscal total; eliminação de subsídios não justificados; abertura econômica e liberalização comercial, concomitantemente à redução da carga fiscal incidindo sobre todas as atividades produtivas; desburocratização geral da vida econômica, com a criação de um novo ambiente regulatório caracterizado pela liberdade econômica. 
O Comitê de Salvação Pública instituirá um GT de Vigilância, destinado a verificar o cumprimento das medidas políticas que serão adotadas na esfera pública, com vistas a informar ao governo e ao parlamento a efetivação das medidas propostas. Esse GT velará sobre prazos e modalidades de implementação dessas medidas. Da mesma forma, esse GT fará a observância da honestidade e da ética em todas as ações tomadas pelos poderes do Estado, podendo denunciar atos em violação dos objetivos.
Déficit orçamentário e dívida pública constituem os focos principais da ação do Comitê, dos seus grupos de trabalho, assim como da ação do governo e do parlamento. Em nenhuma hipótese se aceitará a elevação da carga fiscal ou da dívida pública não necessária ao cumprimento de um programa de salvação nacional: todas as ações se destinam a reduzir o peso do Estado na vida econômica e na vida dos cidadãos. O estímulo ao crescimento será de responsabilidade do setor privado, desde que aliviado da carga extorsiva de impostos, taxas e contribuições com que ele é gravado atualmente, e todo o peso dos ajustes incidirá sobre o Estado e os órgãos de governo, sobretudo os estratos privilegiados do setor público. Os órgãos de controle se encarregarão de vigiar a implementação dessas medidas e de informar o Comitê de Salvação Pública.
Os órgãos de defesa do Estado, da lei e da ordem se encarregarão de assegurar o pleno funcionamento dos órgãos públicos, contra as violações que continuamente são perpetradas contra o patrimônio público e o privado. Não apenas os indivíduos que participam desses atos serão detidos, como também os chefes e responsáveis pelos movimentos que os estimulam a praticar atos contrários à lei. Manifestações públicas não podem, em nenhuma hipótese impedir a livre circulação dos cidadãos, ou ameaçar o funcionamento de órgãos públicos e a propriedade privada. A segurança da nação começa pela segurança de cada um dos cidadãos honestos do país. 

Medidas de caráter sistêmico ou estrutural de médio e longo prazo
O foco central dessas medidas continua sendo de caráter fiscal-tributário, no sentido de assegurar que o esforço emergencial de estabilização, via austeridade, se prolongue numa trajetória de estabilidade macroeconômica permanente, baseada em metas de inflação, câmbio flutuante, responsabilidade fiscal (inclusive e principalmente para o governo central), juros de mercado, abertura bancária, liberalização dos fluxos de capitais, abertura econômica e liberalização comercial unilateral. O princípio básico será a simplificação do sistema tributário e a redução da carga fiscal total, com um imposto federal sobre o valor agregado cobrado no destino e desgravação da cadeia. Taxas e contribuições passam a integrar a base tributária nacional, no sentido da descentralização fiscal, de maneira a evitar transferências erráticas para as menores unidades da federação, que passarão em consequência a assumir responsabilidade sobre sua própria manutenção essencial. Bens básicos, como combustíveis e bens de consumo popular, inclusive remédios, serão taxados muito modestamente.
As despesas dos três poderes de governo serão drasticamente diminuídas, com vistas a se constituir um Estado enxuto, sem qualquer tipo de privilégio e mordomia a seus membros. Seus integrantes serão incorporados a uma grade salarial única, ainda que diferenciada, com a eliminação concomitante de gratificações e acréscimos indevidos. Salários e vencimentos serão progressivamente alinhados aos indicadores de produtividade do setor público, notoriamente inferiores aos do setor privado. A máquina pública será drasticamente reduzida, com corte da burocracia ministerial, diminuição do número de ministérios, eliminação de órgãos desnecessários e racionalização de toda a estrutura do Estado. Parte importante das reformas será feita pelo fim da estabilidade na maior parte das funções públicas, preservando o princípio apenas onde estritamente necessário. Todas as atividades de Estado que puderem ser oferecidas em bases de mercado serão transferidas para o regime de concessões públicas, de privatização e sobretudo de desmonopolização em todas as instâncias possíveis. 
Muitas dessas medidas exigirão reformas constitucionais, e o Comitê de Salvação Pública poderá constituir um GT Institucional com vistas a examinar se será necessário convocar uma nova Assembleia Constituinte, para elaborar um texto mais simples e reduzido aos princípios fundamentais, ou se as medidas propostas, de tipo emergencial ou estrutural, podem ser feitas pela via das emendas constitucionais. O objetivo, de toda forma, é o de se obter uma Carta Magna reduzida ao essencial. 
As universidades públicas devem ganhar plena autonomia de funcionamento, com a transferência de recursos limitados às suas operações essenciais, mas dotadas de total liberdade para decidir sobre seus outros regimes de atuação, inclusive na gestão dos recursos humanos e nas suas vinculações com o setor privado e as comunidades nas quais se inserem. Regimes funcionais poderão variar de acordo com os seus conselhos de gestão, podendo a estabilidade ser concedida apenas em situações especiais e muito limitadas. A atuação principal do Estado federal será concentrada nos dois primeiros ciclos de estudos e no ensino técnico-profissional, com uma reforma racionalizadora dos currículos e uma ênfase sobre a formação adequada dos professores. Metas serão estabelecidas em vários níveis, com vistas à elevação dos padrões de qualidade, numa base meritocrática, com o fim da isonomia em todos os níveis. 
No campo da assistência social, cabe atuar na linha de sua redução progressiva, uma vez que nenhum país pode ser considerado normal mantendo um terço, ou mesmo um quarto de sua população em regime de caridade pública. Deve-se também separar estritamente regimes previdenciários (unificados e reformados) dos programas de assistência social. Na Previdência, o objetivo seria substituir progressivamente o sistema de repartição por diferentes sistemas de capitalização, suscetíveis de reforçar o empenho na poupança privada, contribuindo para taxas mais robustas de investimento. A educação é um componente essencial do esforço nacional para incrementar os ganhos de produtividade e os processos de inovação tecnológica, e por isso deve receber uma atenção especial, apontando para uma verdadeira revolução em suas estruturas. 
Cabe dar continuidade à reforma dos regimes laborais e das regras da Justiça do Trabalho, aumentando a contratualidade, eliminando a rigidez da legislação e, se for possível, eliminar a própria Justiça do Trabalho, com maior recurso ao sistema arbitral e a varas especializados nas relações de trabalho. A Justiça do Trabalho é, na verdade, uma estimuladora de conflitos trabalhistas, custando mais à sociedade do que o próprio valor individual dos litígios julgados. A noção de salário mínimo nacional, da mesma forma, é uma barreira ao pleno emprego, e deveria ser simplesmente eliminada. A Justiça, em geral, deve sancionar severamente os ataques à propriedade privada, a começar pela eliminação dessa aberração conceitual que é a sua “função social”: as ocupações de propriedades são na verdade invasões ilegais e violações do princípio da propriedade privada, não cabendo, portanto, qualquer leniência nesse capítulo. 
A política externa deve guiar-se exclusivamente pelo interesse nacional, no pleno respeito das obrigações assumidas e dos princípios do Direito Internacional. Em nenhuma hipótese ela pode se deixar influenciar por ideologias ou posturas partidárias de escasso, ou nenhum, interesse nacional relevante. Relações bilaterais ou regionais atenderão ao mesmo sentido, ausentes quaisquer reducionismos de caráter geográfico ou supostamente político, visando selecionar parcerias que contrariem a visão universalista que sempre foi, e deve ser, a de uma diplomacia pragmática, ou simplesmente sensata. Objetivos de integração econômica – que em muitos casos são discriminatórios e podem provocar desvios de comércio e de investimentos – devem ser compatíveis com os mais altos interesses da nação e de sua economia, sem grandes considerações de natureza política em decisões de tão alta relevância. 
O objetivo principal, obviamente, é o de uma maior integração do país às cadeias globais de valor, o que deve ser alcançado pela via da abertura econômica ampla e irrestrita e pela liberalização comercial, se necessário for pelo método da redução unilateral – ou seja, sem qualquer tipo de negociações bilaterais ou multilaterais – das barreiras tarifárias, bem como de vários outros mecanismos de protecionismo comercial. Esse processo de inserção dinâmica à economia global pela via da redução da proteção efetiva e de instrumentos defensivos deve ser feito concomitantemente ao processo já evidenciado como necessário de redução geral da carga tributária, em especial sobre as atividades produtivas e sobre os investimentos e emprego. 

Estes são, de modo geral e em caráter preliminar, os itens que podem integrar processos paralelos de ajuste emergencial, no caso de um Estado falido, e de reformas sistêmicas, de caráter mais permanente, de modo a reconstruir esse mesmo Estado para que ele possa servir, na plenitude de suas instituições, a um país normal. O coração desses processos é o correto funcionamento do aparelho econômico da sociedade, no setor privado, aquele deve estar no centro das preocupações das elites dirigentes, não a satisfação primária dos interesses dos próprios integrantes do Estado, que se apropriam, por vezes ilegitimamente, quando não ilegalmente, dos recursos e da riqueza criados pelos produtores primários de renda e emprego. Quando o Estado se torna o centro da vida nacional já não se está mais em face de um país normal. A principal tarefa dos estadistas consiste em que um país possa funcionar normalmente. É o mínimo que se pode esperar de qualquer nação organizada. De outro modo, o declínio é inevitável. 

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 27 de maio de 2018