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quarta-feira, 1 de junho de 2022

Os defensores do capitalismo perderam a guerra ideológica’, diz historiador alemão: Rainer Zitelman - José Fucs (Estadão)

 Os defensores do capitalismo perderam a guerra ideológica’, diz historiador alemão

Para o escritor, apesar da resiliência do sentimento anticapitalista, a história mostra que o sistema de livre mercado – e não o socialismo – é o maior responsável pela redução da pobreza no mundo

Entrevista com

Rainer Zitelmann, historiador e sociólogo 

José Fucs, O Estado de S.Paulo

1 de junho de 2022

O historiador e sociólogo alemão Rainer Zitelmann, de 64 anos, seguiu à risca a velha máxima atribuída a Georges Clemenceau(1841-1929), ex-primeiro-ministro francês, de que “um homem que não seja um socialista aos 20 anos não tem coração e um homem que seja um socialista aos 40 não tem cabeça”. 

Militante maoísta na juventude, Zitelmann se tornou um defensor entusiasmado do sistema de livre mercado e um crítico implacável do socialismo e do pensamento anticapitalista. Ex-jornalista, ex-empresário e investidor do mercado imobiliário, ele escreveu uma série de livros sobre o capitalismo e sobre os multimilionários, que se tornaram referências nas respectivas áreas.

Nesta entrevista ao Estadão, Zitelmann – que dará uma palestra na I Conferência Internacional da Liberdade, na sexta-feira, 3, em São Paulo, com transmissão ao vivo pelo YouTube – fala sobre seu livro "O capitalismo não é o problema, é a solução" (Ed. Almedina), lançado recentemente no Brasil. Ele apresenta casos concretos e argumentos em favor do livre mercado, em comparação com as experiências fracassadas do chamado “socialismo real”, e analisa a resiliência das ideias socialistas após a queda do Muro de Berlim, em 1989. Discute também as questões da desigualdade e da redução da pobreza, em meio a farpas disparadas contra intelectuais e acadêmicos que, em sua visão, reforçam o sentimento anticapitalista no mundo. 

Rainer Zitelmann
Rainer Zitelmann, historiador e sociólogo Foto: Rainer Zitelmann

O sr. afirma que o capitalismo não é o problema, é a solução. O que o leva a dizer isso de forma tão categórica? 

Vou lhe dar só um dado, mas posso lhe dar outros. Há 200 anos, por volta de 1820, antes do capitalismo, 90% da população mundial viviam na pobreza extrema. Hoje, são menos de 10%. Mais da metade da queda se deu nos últimos 35 anos. Veja o que aconteceu na China. No fim dos anos 1950, 45 milhões de pessoas morreram como resultado do chamado “Grande Salto para a Frente” empreendido por Mao Tsé-Tung. Em 1981, cinco anos depois da morte de Mao, 88% da população chinesa ainda viviam em extrema pobreza. Foi mais ou menos quando eles começaram a introduzir a propriedade privada e as reformas pró-mercado no país. Hoje, menos de 1% estão nesta situação. Isso nunca aconteceu na história. Nunca tantas pessoas saíram do estado de extrema pobreza em tão pouco tempo como resultado de reformas pró-mercado. 

O economista francês Thomas Piketty afirma em seu livro “O capital no século 21”, lançado em 2014, que o capitalismo levou ao aumento da desigualdade no mundo, especialmente nas últimas décadas. Como o sr. analisa a questão da desigualdade e as críticas de Piketty ao capitalismo? 

Antes de mais nada, é preciso considerar que o próprio Piketty reconhece que, na maior parte do século 20, a desigualdade diminuiu. Agora, ele diz que, a partir dos anos 1980, 1990, tempos ruins prevaleceram, levando em conta principalmente o que aconteceu nos Estados Unidos e em alguns países europeus. Ironicamente, foi justamente neste período que houve o maior progresso na luta contra a pobreza extrema no mundo. Para mim, a desigualdade não é o ponto principal. A prioridade é a redução da pobreza. No caso da China, que mencionei há pouco, a desigualdade obviamente aumentou nas últimas décadas, com as reformas pró-mercado. Hoje, a China tem muito mais bilionários do que tinha antes. Nos tempos de Mao não havia um único bilionário na China. Hoje, há centenas de bilionários, tantos quanto nos Estados Unidos. Em Pequim, há mais bilionários do que em Nova York. Mas ninguém na China está pedindo para voltar aos tempos de Mao, porque havia mais igualdade naquela época.  

Ironicamente, mesmo que a desigualdade tenha aumentado nos Estados Unidos, como diz Piketty, milhões de pessoas estão tentando imigrar para lá, em busca de uma vida melhor. Como o sr. vê esta questão?

Este é um dos meus principais argumentos em favor do capitalismo. É importante olhar para onde os imigrantes vão. Eles sempre vão de países com menos liberdade econômica para países com mais liberdade econômica. Na época do comunismo, ninguém falava que queria ir da Alemanha Ocidental para a Alemanha Oriental. Hoje, ninguém vai dizer que quer ir de Miami para Cuba. Talvez para passar umas férias, por umas duas semanas, e olhe lá. Ninguém diz também que quer ir da Coreia do Sul para a Coreia do Norte. Ou que quer “escapar” do capitalismo do Chile para o “paraíso socialista” da Venezuela.  

Além da China e do Chile, que outros exemplos o sr. poderia citar de países que prosperaram nas últimas décadas, a partir da adoção ou do fortalecimento do sistema de livre mercado? 

No Vietnã, por exemplo, eles fizeram um grande progresso econômico nos últimos 30 anos, com o aumento da liberdade econômica. As pessoas lá estão muito melhor hoje. A Polônia é um dos países que mais aumentaram a liberdade econômica no mundo nas últimas décadas. É incrível o que aconteceu lá desde a queda do comunismo. Então, na prática, o que a gente vê é que o capitalismo funciona.

“Nos anos 1990, ninguém acreditava no socialismo, porque a derrocada do comunismo era muito recente”

O sr. mencionou o caso do Chile, mas lá a esquerda, que defende maior intervenção do Estado na economia, venceu as últimas eleições. Se o sistema era tão bom no Chile, como o sr. afirma, por que a esquerda ganhou a eleição?

Às vezes, as pessoas esquecem a razão pela qual eram bem-sucedidas. O Chile alcançou um grande progresso econômico, em termos de PIB (Produto Interno Bruto) per capita e também de outros indicadores, nas últimas décadas. Muita gente não sabe, mas a desigualdade diminuiu no Chile, nos últimos 10 anos. Só que as pessoas votaram num candidato socialista. Isso não acontece só no Chile, mas em muitos países, inclusive nos Estados Unidos, na Alemanha. Na China, está ocorrendo a mesma coisa. Eu tenho um amigo na China que diz que eles foram tão bem-sucedidos não por causa do Estado, mas apesar do Estado. Hoje, tem pessoas na China querendo voltar a ter mais Estado e menos mercado. Elas esqueceram a razão que as levou a ser bem-sucedidas.  

Agora, no Chile, parece que havia também um desejo de mudança e uma grande rejeição pelo candidato da direita, que era pró-mercado, mas mostrava certa nostalgia pelos governos militares. Isso também não deve ser levado em conta?

Com certeza. Minha namorada, que é do Chile e vive há três anos e meio em Berlim, votou no Gabriel Boric, o candidato da esquerda, que venceu as eleições presidenciais. Votou nele porque achava que o (José Antonio) Kast, o outro candidato, era muito de direita, talvez como o Bolsonaro, no Brasil. Ela esperava que Boric fosse meio moderado. Mas agora já tem dúvidas de que tomou a decisão certa. Está vendo que ele não era tão moderado quanto imaginava e claro que ela não quer ver o Chile voltar aos tempos do (Salvador) Allende, nos anos 1970. Muita gente está tendo a mesma percepção. Há um desapontamento com o Boric. No ano passado, 78% dos eleitores do Chile votaram em favor da adoção de uma nova Constituição no país. Hoje, segundo as últimas pesquisas, a maioria se declara contra a nova Constituição, que é defendida pela esquerda e será votada em 4 de setembro.    

No Brasil, está acontecendo algo parecido. O ex-presidente Lula, que é o principal candidato da esquerda nas eleições presidenciais e aparece na frente nas pesquisas, também está buscando alianças de centro, para mostrar uma face mais moderada ao eleitor. Como o sr. vê esta estratégia?

Isso não me surpreende. É sempre assim: antes das eleições, eles tentam se mostrar mais moderados, dizem que não são de esquerda, para conquistar os eleitores de centro. Eles sabem que os esquerdistas vão votar neles de qualquer jeito, mas tentam atrair, como sempre, as pessoas do centro. A minha impressão é de que o Lula está tentando fazer a mesma coisa agora no Brasil, procurando mostrar que mudou um pouco, que não é tão de esquerda e ficou mais moderado. Pode ser também que seja uma questão de falta de alternativa. O Bolsonaro, especialmente na pandemia, não foi bem, cometeu muitos erros. Acredito que o caso do Bolsonaro no Brasil é muito parecido com o do Kast, no Chile. Algumas pessoas só votaram no Boric porque não gostavam de Kast, porque ele era da direita radical.  

Após a queda do Muro de Berlim, em 1989, muita gente acreditava que o socialismo ficaria para trás. Mas hoje, 33 anos depois, o que se vê é que as ideias anticapitalistas não apenas sobreviveram, como se revigoraram. Em sua visão, o que explica esta resiliência do socialismo, mesmo com o fracasso do “socialismo real”?

Nos anos 1990, ninguém acreditava no socialismo, porque a derrocada do comunismo era muito recente. Mas, com o tempo, as pessoas esqueceram o que aconteceu e o anticapitalismo se tornou mais forte de novo. Mesmo na Alemanha. Nós tivemos um plebiscito no ano passado para decidir sobre a expropriação de propriedades de companhias imobiliárias com mais de 3 mil apartamentos. 56% dos eleitores em Berlim votaram pela expropriação e pela nacionalização dos apartamentos excedentes. Na Alemanha Oriental eles tinham imóveis de propriedade do Estado. Foi um desastre. Adolf Hitler congelou os aluguéis. Os comunistas fizeram a mesma coisa. Foi outro desastre. Os aluguéis eram muito baratos na Alemanha Oriental, mas, quando o Muro de Berlim caiu, 26% da população não tinham o próprio banheiro. Tinham de sair de casa para ir ao banheiro. Na Alemanha Ocidental, mesmo sem congelamento de aluguéis, todo mundo tinha o seu banheiro em casa. Quando houve a reunificação da Alemanha, foi preciso fazer um investimento de 80 bilhões de euros (R$ 408 bilhões) para construir novas casas e renovar e modernizar as antigas casas da antiga Alemanha Oriental. Mesmo assim, agora, o último governo de Berlim congelou os aluguéis e a população votou pela nacionalização dos imóveis. O filósofo (Friedrich) Hegel (1770-1831) disse certa vez que “a única coisa que você pode aprender com a história é que as pessoas não aprendem nada com ela”. É uma afirmação muito pessimista, mas ele tem um ponto aí. 

“Os inimigos do capitalismo são muito mais fortes na comunicação” 

O anticapitalismo parece ter um grande apelo em setores influentes da sociedade e um espaço imenso no debate. Até que ponto isso também ajuda a entender a reabilitação das ideias socialistas?

Os defensores do livre mercado perderam a guerra das ideias, a guerra ideológica. Os inimigos do capitalismo são muito mais fortes na comunicação. As pessoas que deveriam defender o capitalismo, como os empreendedores, não fazem isso. Os socialistas comparam o capitalismo real com a utopia de uma sociedade perfeita. Isso seria o equivalente a comparar o casamento de alguém não com o de outras pessoas, mas com um casamento ideal do qual se fala em algum livro. Não é justo. Se a gente comparar o nosso casamento com os de nossos amigos, talvez ele não seja tão ruim quanto pode parecer. Eu sou um historiador. Levo em conta os fatos históricos. No meu livro, não falo sobre teorias, mas de fatos, evidências. Comparo o capitalismo com o que é possível comparar, com exemplos concretos da história: Chile X Venezuela, Coréia do Sul X Coreia do Norte, Suécia nos anos 1970 X Suécia depois, o Reino Unido antes e depois da (Margaret) Thatcher. Quando você fala dos problemas que existiam na União Soviética e em outros países comunistas, eles dizem: “Nós não queremos nada parecido com o que foi a União Soviética ou a Alemanha Oriental. Queremos algo diferente, queremos socialismo de verdade”. Os socialistas tentaram de tudo. Tentaram um modelo na China diferente da União Soviética, um modelo na Iugoslávia diferente da Romênia, e assim por diante. Quando os regimes fracassam, eles não entendem que a ideia é que estava errada e não a forma como o socialismo foi implementado. 

No livro, o sr. fala sobre o sentimento anticapitalista de intelectuais e acadêmicos. Em sua visão, por que eles criticam tanto o capitalismo?

Este é o meu capítulo preferido. É meio complicado, mas vou tentar explicar brevemente. Eu venho de uma família de background acadêmico. Então, estou à vontade para falar do assunto. Na visão acadêmica, quanto mais livros você lê, quanto mais conceituados são seus diplomas universitários, mais do alto você olha para as pessoas e para um homem de negócios que não leu tantos livros. Muitos intelectuais veem, talvez, que aquele vizinho pobre, que talvez fosse um mau aluno na escola e que não leu tantos livros quanto eles, hoje tem um negócio próprio ou uma franquia do McDonald’s e ganha mais dinheiro do que eles. Tem um carro melhor e uma casa maior. Isso para eles é uma prova de que o mercado falhou, porque se o mercado estivesse certo eles é que deveriam estar nesta posição. Fiz dezenas de entrevistas com os super-ricos, para um livro que escrevi sobre o tema, e me dei conta de que há o aprendizado implícito e o explícito. O aprendizado ou conhecimento implícito é o que podemos chamar de “escola da vida” ou intuição. É um jeito diferente de aprender. O aprendizado explícito é aquele baseado nos livros e no aprendizado acadêmico. Os intelectuais não entendem como funciona o aprendizado implícito. Acham que são superiores aos empreendedores, porque têm diplomas universitários ou a sabedoria dos livros e eles, não.  Outro ponto importante é que, em geral, os intelectuais pensam em teorias e escrevem sobre teorias. Para o capitalismo, você não precisa de tanta teoria. É tudo desenvolvido de forma mais espontânea e não de acordo com um plano. Lênin disse que o movimento dos trabalhadores não viria das teorias socialistas e que os intelectuais é que tinham de levar o socialismo para os trabalhadores. Os intelectuais têm um papel no socialismo que não têm no capitalismo. 

O sr. diz que após a queda do comunismo o pensamento anticapitalista adquiriu novas formas de expressão. A que formas exatamente o sr. se refere?

A mais importante é a defesa da ecologia e a luta contra a mudança climática. Eu não faço parte dos grupos que dizem que a mudança climática é uma mentira. Eu acredito que se trata de um problema real. Mas, para muitos dos que levantam essa bandeira, a questão ambiental não é o grande problema. Para eles, o inimigo é o mesmo, o capitalismo. Se fossem falar sobre fome e pobreza, não teriam argumentos, porque está claro que o capitalismo melhorou a vida das pessoas. Então, mudaram de foco. Outro dia li um livro da economista anticapitalista Naomi Klein. O título era Capitalismo vs. Mudança Climática. No prefácio, ela diz que não se importa tanto com a mudança climática, mas que é uma ferramenta muito importante na luta contra o capitalismo. Ao ler o livro, você vê que as ideias dela são totalmente anticapitalistas, contra o livre mercado e em defesa da economia planificada. Essas pessoas dizem que o que causa o problema ambiental é o capitalismo. Mas, se você pegar o Indice de Performance Ambiental, da Universidade Yale, e compará-lo com o Índice de Liberdade Econômica da Heritage Foundation, verá que os países mais livres são os que têm os melhores resultados ambientais.  Em relação ao PIB, as emissões de carbono da Alemanha Oriental eram 3 vezes maiores do que as da Alemanha Ocidental. Não havia nenhum país com piores índices ambientais do que a União Soviética. 

“Eu considero o sentimento anticapitalista como um tipo de religião”

Fora a questão ambiental, o sr. afirma no livro que o movimento contra o capitalismo incorporou também a luta contra a globalização. O que o sr. pode falar sobre esta questão?

Frequentemente, a postura contra a globalização, é claro, é relacionada com o pensamento de esquerda, mas nem sempre é assim. Também é ligada ao pensamento de direta. Você tem isso na esquerda, na direita populista e na direita radical. O (Donald) Trump é um exemplo perfeito da direita contra a globalização. Na Alemanha, também tem gente de direita contra a globalização. Muitas vezes, os argumentos da direita e da esquerda são diferentes, mas no fim o resultado, o protecionismo, é o mesmo.   

Na sua avaliação, considerando tudo que o sr. falou, por que o capitalismo gera tanta oposição e tantas críticas?

Eu considero o sentimento anticapitalista como um tipo de religião. No passado, há séculos, a religião era muito forte na Europa. No mundo moderno, o anticapitalismo se tornou uma nova forma de religião. O papel do diabo hoje é desempenhado pelo capitalismo. Você pode culpar o capitalismo por todos os problemas do mundo: pobreza, fome, mudanças climáticas, guerras, sexismo, racismo e até a escravidão, que foi adotada muito antes do capitalismo. Até os seus fracassos pessoais na vida você pode atribuir ao capitalismo. A diferença entre a religião e o anticapitalismo é que a religião promete o paraíso depois da morte e o socialismo promete em vida.

Antonio Augusto Cançado Trindade, por Luiz Felipe de Macedo Soares

 Antonio Augusto tinha vasto e profundo conhecimento sobre Direito Internacional, ramo tão pouco versado no Brasil, essencial para os diplomatas, mais do que economia ou técnicas comerciais, como alguns pensam. Seu magistério no Rio Branco teve  influência  marcante em nossa diplomacia nas décadas recentes.

Foi pouco tempo Consultor Jurídico, mas, naqueles anos repôs a função, retomando Bevilacqua, Aciolly, Valadão, na sua real finalidade: elaborar pareceres de Direito Internacional encomendados pelo Ministro de Estado, publicados periodicamente.
Na Corte da Haia sua ação nada tinha de servilismo aos interesses e posições de seu país, como é normalmente o caso dos juízes provenientes das grandes potências. Era mais principista que positivista e isso se pode ver em sua preponderante participação na Corte de San José e no voto de dissenso na questão das Ilhas Marshall, publicado pela FUNAG, livro que todo diplomata brasileiro devia ler, inclusive pela importância central da matéria.
Entre tantas suas qualidades ressalto o entusiasmo com que tratava os assuntos, que reforçava a justeza dos argumentos e ampliava o peso do conhecimento técnico.
Frequentava a DNU para consultar documentos da ONU e trocar ideias com os diplomatas na época em que a Divisão abarcava campos hoje cobertos por mais de uma subsecretaria, reunindo talentos como Antonio Guerreiro, Ligia Scherer, Antonio Patriota, Fernando Simas, Bruno Bath, Carlos Sérgio Duarte, Joaquim Whitaker Salles, Vera Pedrosa, em torno da diplomacia clássica porque sucinta, clara e eficaz de Henrique Valle.
Em nosso último encontro, no México, em 2018, Antonio Augusto guardava intacto seu jovial entusiasmo.
Luiz Filipe de Macedo Soares

Globalização mais lenta, mas resiliente - Otaviano Canuto

 

GLOBALIZAÇÃO MAIS LENTA, MAS RESILIENTE

 

Poder 360, maio 2022

Pandemia e guerra na Ucrânia desaceleram e regionalizam globalização, mas não a revertem.

A diretora-gerente do FMI, Kristalina Georgieva, falou em Davos essa semana sobre os riscos ascendentes de “fragmentação geoeconômica” como consequência da guerra na Ucrânia. Levando-se em conta a rivalidade agora aberta entre Estados Unidos e China, assim como a aliança entre esta e a Rússia, ampliou-se o eco para as narrativas sobre uma divisão oeste-oriente na economia global, com o fim e a reversão da globalização.

Depois da crise financeira global de 2008, já havia crescido a opinião entre habitantes de vários países avançados de que a globalização e a transferência de empregos manufatureiros para a Ásia seriam responsáveis pelas dificuldades de progresso enfrentadas por suas classes médias e baixas, culminando em vitórias eleitorais de líderes populistas como Trump que souberam aproveitar-se de tal sentimento. A vulnerabilidade a choquesatribuída à globalização durante a pandemia, após o início das rupturas em cadeias globais de suprimento, acrescentou mais um argumento a favor de sua reversão.

Por outro lado, os números da evolução recente do comércio mundial, abordados em texto do FMI divulgado também nessa semana, apontam numa direção oposta. Depois do verdadeiro mergulho no início da pandemia, o comércio externo como proporção do PIB na segunda metade do ano de 2020 já estava superando os níveis de antes da pandemia, em todas as regiões [veja Figura 1 no Anexo].

Sabe-se que tal desempenho extraordinário nos últimos dois anos deveu-se em grande medida a dois fatores reversíveis, a saber, a mudança temporária de padrões de consumo em detrimento de serviços intensivos em contato e em favor do consumo de bens comercializáveis internacionalmente, durante a pandemia, assim como do volume expressivo do suporte de renda e da demanda das famílias nas economias avançadas. Não fosse o descompasso entre demanda externa dos países e a capacidade logística de seu atendimento, os números teriam sido ainda mais exuberantes [veja Figura 2 no Anexo].

Embora haja uma projeção de relativo arrefecimento das transações comerciais transfronteiriças em 2023, nada se parece com retração do nível de integração comercial geral no mundo. A queda nos números de março, após a invasão russa da Ucrânia, veio bem abaixo de expectativas. A forte correlação entre volumes de produção industrial e de volumes globais de comércio permanece alta.

No lado financeiro, também se pode dizer que “a morte da globalização foi anúncio exagerado”, a julgar pelos volumes de ativos externos de bancos em todos os setores no conjunto de países. Haviam atingido um pico na época da crise financeira, caindo em seguida, mas recuperaram exuberância a partir de 2016. Deve-se considerar também que instituições financeiras não-bancáriasassumiram peso maior nos fluxos de capital entre países a partir da crise de 2008.

Pois bem! Poderá ser dito, com efeito, que a “desglobalização”, quer entendida como segmentação econômica entre regiões por razões geopolíticas ou como busca de grau maior de autossuficiência por economias nacionais, tomará algum tempo e não começou ainda. Contudo, há motivos econômicos limitando o alcance das motivações geopolíticas.

Considere o argumento da busca de resiliência diante de choques que, ao atingir algum ponto de cadeias globais de valor, impactam o conjunto integrado. Ora, os efeitos de choques locais também seriam maximizados sem a existência das cadeias no exterior.

Além disso, a configuração das cadeias globais ou regionais não é fortuita, tendo aparecido por razões de eficiência de custos. Abandonar tal configuração tem ônus. Em muitos setores as empresas podem optar por incorrer em tais custos, com acumulação de estoques em pontos das cadeias e/ou duplicando segmentos de tais cadeias em pontos geográficos distintos. Mas os incentivos microeconômicos encarados pelas empresas estabelecem limites de custo-benefício nesse cálculo de abdicar de eficiência nos custos por conta de resiliência a choques.

E as políticas públicas em busca de alterar tais cálculos? Políticas comerciais de tarifas como as de Trump se revelaram um ônus para o emprego na própria indústria manufatureira dos Estados Unidos – para não falar da agricultura atingida por sua guerra comercial com a China.

A rivalidade econômica entre grupos de potências aliadas entre si tenderá a ser exercida mediante ação em setores tecnológicos e de segurança nacional, como, por exemplo, semicondutores avançados, equipamentos militares e médicos, privacidade de dados e similares. Acesso a minerais críticos para o uso de tais tecnologias e para a transição energética também crescerá como objeto da geopolítica. Espera-se que seja também exercida na busca de influência via financiamento e investimentos externos, como seria o caso de alternativas à “iniciativa Belt and Road” chinesa. Por razões óbvias, a Europa também buscará a reformatação de seu sistema energético. A reversão da globalização não será buscada, porém, no caso do comércio exterior nos demais itens.

A propósito, a transformação digital aceleradatem até ampliado o escopo para possível globalização de serviços. Que o digam os médicos indianos prontos para oferecer serviços internacionais on-line. Não muito tempo atrás, Richard Baldwin, professor do Instituto Genebra, sugeriu o comércio exterior de serviços sem deslocamento de pessoas como parte de uma “globalização 3.0”.

No lado chinês, pode-se presumir uma preferência por não entornar o caldo da globalização que lhe facilitou o sucesso no crescimento com transformação estrutural, por mais que tenha sentido os novos rumos na área geopolítica e envie sinais de busca de menor dependência do exterior. A rigor, cremos que nem as sanções ocidentais sobre a Rússia serão suficientes para que a China busque rapidamente algum tipo de afastamento do sistema monetário-financeiro baseado no dólar.

Certamente pode-se esperar uma globalização mais lenta (“slowbalization”) e com maior grau de regionalização. Até porque haverá um ônus para aqueles que buscarem uma demarcação exagerada do que é “estratégico

Cabe também lembrar aos empolgados com as possibilidades de deslocamento de segmentos de cadeias globais para perto dos mercados ricos (nearshoring) e amigos (friendshoring). Eu e colegas, no dia da invasão russa, apontamos cinco requisitos para que isso possa funcionar a contento.

Anexo

Figura 1 – Recuperação do comércio desde a pandemia, por regiões

Importações, índices de volume sazonalmente ajustados

Fonte: Mishra, P. and Spilimbergo, A. (2022), Globalization and Resilience, IMF, 24 de maio.

 Figura 2 – Comércio mundial de bens em cresimento

Exportações trimestrais de mercadorias, em US$ bilhões

Fonte: Sandbu, M. (2022). “The death of globalisation has been greatly exaggerated”,Financial Times, 26 de maio.

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Otaviano Canuto, based in Washington, D.C, is a senior fellow at the Policy Center for the New South, a professorial lecturer of international affairs at the Elliott School of International Affairs – George Washington University, a nonresident senior fellow at Brookings Institution, a professor affiliate at UM6P, and principal at Center for Macroeconomics and Development. He is a former vice-president and a former executive director at the World Bank, a former executive director at the International Monetary Fund and a former vice-president at the Inter-American Development Bank. He is also a former deputy minister for international affairs at Brazil’s Ministry of Finance and a former professor of economics at University of São Paulo and University of Campinas, Brazil.