Este trabalho foi elaborado, com base em notas anteriores, no período intermediário do impeachment conduzido entre maio e agosto de 2016, para servir como material de discussão a grupo de estudos de caráter acadêmico. Não foi publicado nessa forma, embora partes dele possam ter servido a trabalhos anteriores, e deles provinham, que já tinham sido publicados.
Como o "redescobri" agora, coloco à disposição dos interessados, lembrando, uma vez mais, que ele é de meados de 2016, e pode estar defasado num ou noutro ponto específico.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 17 de fevereiro de 2018
Política externa brasileira: o que faria o Barão hoje, se vivo fosse?
Paulo
Roberto de Almeida
Diplomata de carreira; professor no Uniceub (Brasília)
Brasília, 1/06/2016
Se, por um desses acasos históricos, o Barão do Rio Branco, falecido
mais de cem anos atrás, retornasse eventualmente entre nós, quais seriam suas
grandes preocupações diplomáticas? Esgotada a tarefa de remodelar a geografia
dos limites territoriais, por meio de negociações de fronteiras com todos os
nossos vizinhos, o Barão talvez se preocupasse com temas mais permanentes, ou
mais estruturais, sobretudo numa fase – como foi a sua – de transição nas
relações internacionais.
De fato, um século atrás, o mundo assistia aos primeiros passos da
transposição hegemônica das velhas potências europeias para o novo poder
emergente, os Estados Unidos da América, país com o qual o Barão do Rio Branco
tentou estabelecer uma estratégia de coexistência de zonas de influência: os
EUA ao norte, o Brasil ao sul. Obviamente, o Barão tinha consciência dos meios
limitados do Brasil do início do século XX, mas ele se perguntaria, de igual
modo, o que o Brasil precisaria fazer, atualmente, para ocupar seu espaço no
chamado concerto das nações.
Os argumentos alinhados abaixo, foram pensados bem mais na
perspectiva da política externa dos governos lulopetistas, de janeiro de 2003 a
maio de 2016, do que no da nova diplomacia que está sendo construída,
apresentada e implementada pelo novo governo interino, em meio ao processo de
impeachment ainda em curso. Reflexões a partir dessa nova política externa
terão de ser feitas após mais algum tempo de testes práticos da diplomacia
profissional do Itamaraty, depois de quase uma década e meia de influência
partidária sobre as grandes linhas das relações exteriores do Brasil sob o
comando dos governos lulopetistas desde o início do novo milênio.
O Barão agora: qualquer semelhança é mera coincidência?
Talvez ele começasse pela pergunta clássica dos estadistas: o Brasil
possui uma estratégia, grande ou pequena? Talvez, embora nem sempre se perceba.
Os militares talvez tenham pensado em alguma, e ela sempre envolve grandes
meios, para defender as grandes causas: a soberania, a integridade territorial,
a preservação da paz e da segurança no território nacional e no seu entorno
imediato. Enfim, todas aquelas coisas que motivam os militares. Os diplomatas,
também, talvez tenham escrito algo em torno disso, e ela sempre envolve o
desenvolvimento nacional num ambiente de paz e cooperação com os vizinhos e
parceiros da sociedade internacional, no pleno respeito dos compromissos
internacionais e da defesa dos princípios e valores constitucionais, que por
acaso se coadunam com a Carta da ONU. Mas eles também acham que está na hora de
“democratizar” o sistema internacional, que ainda preserva traços do imediato
pós-Segunda Guerra, ampliando o Conselho de Segurança da ONU, reformando as
principais organizações econômicas multilaterais e ampliando as possibilidades
de participação dos países em desenvolvimento nas instâncias decisórias
mundiais; enfim, todo aquele discurso que vocês conhecem bem.
Tudo isso é sabido, e repassado a cada vez, nas conferências
nacionais de estudos estratégicos, em grandes encontros diplomáticos, nos
discursos protocolares dos líderes nacionais. Até parece que possuímos de fato
uma grande estratégia, embora nem sempre isso seja percebido por todos os
atores que dela participam, consciente ou inconscientemente. Aparentemente, ela
seria feita dos seguintes elementos: manutenção de um ambiente de paz e cooperação
no continente sul-americano e seu ambiente adjacente, num quadro de
desenvolvimento econômico e social com oportunidades equivalentes para todos os
vizinhos, visando a construção de um grande espaço econômico integrado, de
coordenação e cooperação política, num ambiente democrático, engajado
coletivamente na defesa dos direitos humanos e na promoção da prosperidade
conjunta dos povos que ocupam esse espaço.
Quais seriam os grandes objetivos do Barão, hoje?
Muito bem, mas esses são objetivos genéricos, até meritórios e
desejáveis, que precisam ser implementados de alguma forma, ou seja, promovidos
por meio de iniciativas e medidas ativas, o que envolve inclusive a remoção dos
obstáculos que se opõem à consecução desses grandes objetivos. É aqui que entra,
de verdade, a grande estratégia, quando se tem de adequar os meios aos
objetivos, não simplesmente na definição de metas genéricas. A estratégia é que
permite se dizer como, e sob quais condições, o povo do país e suas lideranças
vão mobilizar os recursos disponíveis, as ferramentas adequadas e os fatores
contingentes – dos quais, os mais importantes são os agentes humanos – por meio
dos quais será possível alcançar os grandes objetivos e afastar as ameaças que
se lhes antepõem. Uma verdadeira estratégia diz o que deve ser feito, na parte
ativa, e também, de maneira não simplesmente reativa, como devemos agir para
que forças contrárias não dificultem o atingimento das metas nacionais.
Nesse sentido, se o grande objetivo brasileiro – que integra nesta
concepção sua “grande estratégia” – é a consolidação de um espaço econômico
democrático e de cooperação econômica no continente, devemos reconhecer que
avançamos muito pouco nos últimos anos. A despeito da retórica governamental,
não se pode dizer, atualmente, que a integração e a democracia progrediram
tremendamente na última década. Ao contrário, olhando objetivamente, esses dois
componentes até recuaram em várias partes, e não se sabe bem o que o Brasil fez
para promovê-los ativamente. O presidente anterior foi visto abraçado com
vários ditadores ou candidatos a tal, esqueceu-se de defender a liberdade de
expressão, os valores democráticos e os direitos humanos onde eles foram, e
continuam sendo, mais ameaçados, quando não vêm sendo extirpados ou já desapareceram
por completo. A integração que realmente conta, a econômica e comercial, cedeu
espaço a uma ilusória integração política e social que até pode ter rendido
muitas viagens de burocratas e políticos, mas não parece ter ampliado mercados
e consolidado a abertura econômica recíproca.
Desse ponto de vista, o Brasil parece ter falhado em sua grande
estratégia, se é verdade que ele realmente possui uma. Se não possui, está na
hora de pensar em elaborar a sua. Passada a retórica grandiloquente –
contra-produtiva, aliás – da liderança e da união exclusiva e excludente,
contra supostas ameaças imperiais, pode-se passar a trabalhar realisticamente
na implementação da grande estratégia delineada sumariamente linhas acima. A
julgar pela experiência recente, não parece que sequer começamos a retificar os
equívocos mais eloquentes do passado imediato, quando apoiamos ditadores e
adotamos uma concepção muito peculiar dos direitos humanos e dos valores
democráticos. O que diria o Barão, a esse respeito?
Talvez ele devesse começar examinando as pequenas estratégias
desenvolvidas nos últimos anos. Na verdade, o Barão seria naturalmente levado a
elaborar uma grande estratégia, obviamente diversa daquela de sua época, e
adaptada aos requisitos do presente. Negligenciando o fato de que ele, quando
vivo, já era quase um santo protetor da diplomacia brasileira, uma
personalidade incontrastável, incontestável, o “dono” da política internacional
do Brasil, além e acima de qualquer presidente, pode-se imaginar que ele
atuaria segundo as instruções do presidente de turno, mas com certa latitude de
ação, em vista de sua reconhecida competência para certos temas.
Vamos imaginar, contudo, que ele apenas atuaria como um chanceler
qualquer, em face dos mesmos desafios ou agendas, que se colocariam a um
chanceler de nossos dias, nas circunstâncias atuais do Brasil, país que deixou
de ser simplesmente em desenvolvimento, e um instável crônico na América
Latina, para se tornar um “emergente”, um país dotado de pretensões a ter uma
influência regional e global. É com base, exatamente, nessas premissas, que
podemos, em primeiro lugar, criticar as diversas estratégias que o Brasil
seguiu nos últimos tempos, e às quais poderíamos chamar de pequenas.
Alternativas estratégicas para o Barão no século XXI
A primeira estratégia pequena, na verdade mesquinha, seria a de ter
exibido, durante os oito anos da doutrina do “nunca antes neste país”, uma
orientação de política externa não exatamente nacional, mas mais propriamente
partidária, para não dizer sectária. Quando o Barão foi convidado para ser
chanceler, cargo que ensaiou recusar, seja por motivos de saúde, de dinheiro ou
qualquer outro, a primeira coisa que ele adiantou era a de que não vinha servir
qualquer partido, qualquer causa política, mas o Brasil, em benefício da nação
e de seu prestígio na região e no mundo.
Cem anos depois, parece que tivemos não apenas uma diplomacia
estreitamente partidária, mas até um chanceler que, talvez insatisfeito por ser
“apenas” diplomata, resolveu se inscrever num partido, ou melhor, no partido do
poder, o que aparentemente nunca lhe foi exigido como chanceler ou como
funcionário de Estado. Mas, como defensor de um governo partidário, ele
resolveu se filiar a esse partido. Como todo militante desse partido, como
naquelas agrupações religiosas que exigem o dízimo, tem de contribuir com sua
cota de boa vontade financeira, o mesmo chanceler escolheu ser conselheiro de
algumas coisas, para arredondar o salário, já que o Brasil é hoje um país caro
(talvez em função de algumas políticas de pequena estratégia que o mesmo
partido aplica). O Barão, provavelmente, desprezaria gestos como esse.
A segunda estratégia pequena que o Barão lamentaria, se hoje
contemplasse a diplomacia dos oito anos do “nunca antes”, seria justamente essa
tal de “diplomacia Sul-Sul”. O Barão nunca compreenderia, e nunca admitiria,
como se consegue ser tão reducionista, tão simplista, tão estreito
geograficamente nas escolhas de relacionamento internacional, ele que sempre se
bateu para equilibrar as relações do Brasil entre a velha Europa, os EUA
emergentes, e a América do Sul, todos tão presentes em nossas relações
imediatas. A despeito dessa “aliança não escrita” com os EUA, de que falam
alguns acadêmicos, o Barão, na verdade, nunca se deixou prender, ou enredar,
numa relação exclusiva, ou privilegiada, com qualquer sócio maior, mas
procurava sempre manter equidistância dos grandes centros de poder, das velhas
potências coloniais – mas ainda agressivamente imperialistas – e da nova
potência que despontava no hemisfério – e já agressivamente imperialista,
precisamente. Menos ainda ele compreenderia que o Brasil só tivesse olhos para
o seu entorno imediato – claro, porque a África não “existia”, dominada que era
pela Europa, e que a Ásia também se debatia na colonização direta e indireta
das mesmas potências – e descurasse por completo das relações com aqueles que
eram nossos principais mercados e fornecedores de capitais. Ele sorriria com
certa complacência antes essas propostas de “nova geografia comercial
internacional”, sabedor que, em matéria de comércio, toda e qualquer geografia
é boa, desde que se consiga realizar todos os intercâmbios, nos dois sentidos,
que interessariam ao Brasil.
Justamente, mesmo se ele tivesse de administrar uma “estratégia
Sul-Sul” para o Brasil – fatalidade lamentável que ele certamente se escusaria
por completo de iniciar – ele jamais se permitiria ser complacente, leniente,
inconsequente ou descuidado em relação aos direitos do Brasil. Ele jamais
permitiria, por exemplo, que tripudiassem injustamente sobre nossas exportações
– como infelizmente ocorre muito frequentemente com certo vizinho arrogante –
ou que, ao arrepio de tratados bilaterais e de contratos internacionais, outros
vizinhos inconsequentes invadissem nossas propriedades legítimas para
esbulhar-nos de nossos direitos, rasgando unilateralmente compromissos que
tinham sido solenemente contraídos anteriormente. Por muito menos ele fez
deslocar tropas para proteger nacionais ameaçados de maus tratos; ainda que não
fosse o caso de fazê-lo em todas as circunstâncias, o Barão certamente teria
sido bem mais vigoroso na reação a certos atos de expropriação ilegal.
Por exemplo: ainda que confrontado a uma declaração inevitável de
expropriação de bens nacionais, ele JAMAIS assinaria uma nota na qual se
reconhecia o direito soberano de outro país de, sem a cortesia de sequer um
alerta preliminar, expropriar, sem negociações ou consulta prévia, propriedades
nacionais, em total desrespeito às normas do direito internacional e à letra de
tratados que constituíam obrigações para as duas partes. Ele certamente
consideraria certas atitudes registradas nesses tempos caóticos de diplomacia
confusa não só como marcas de uma pequena estratégia, mas como uma demonstração
cabal de uma estratégia vergonhosa.
A mais forte razão, o Barão se guardaria escrupulosamente, e faria
com que o seu presidente também observasse esse tipo de recato, de jamais
interferir nos assuntos políticos internos de outros países, seja demonstrando
apoios eleitorais indevidos, seja adiantando preferências ideológicas ou ainda
rompendo normas e costumes de direito internacional e de relações diplomáticas.
A melhor forma de manter boas relações com quaisquer vizinhos – mesmo os mais
turbulentos – e com todo e qualquer país da comunidade internacional é manter
reserva total quanto aos assuntos internos desses outros países, mesmo quando
se possa, em privado, manter preferência por um outro personagem da vida
política que possa ter influência nas relações com o Brasil. Expressar
publicamente interesse nesse tipo de assunto é a mais pequena estratégia que o
Barão poderia conceber, e isso ele deixou registrado em vários escritos
públicos.
Finalmente, o Barão tampouco consentiria em dividir o processo de
tomada de decisão em múltiplas cabeças, em fracionar o comando da diplomacia em
diversos centros independentes de formulação e de execução de uma política
nacional, como deve ser a política internacional de um país. Consciente,
provavelmente, de que a política externa é uma espécie de política interna por
outros meios, e sabedor de que a diplomacia, como a arte da guerra, exige
unidade de formulação, de decisão e de implementação das ações requeridas, ele
obstaria por completo a qualquer fragmentação da atuação diplomática do Brasil
em unidades separadas de atuação. Já ao assumir a chefia do Ministério, e
confrontando-se com a provecta figura de Cabo Frio, ele apressou-se em
inaugurar um busto em homenagem a essa magnífica figura do Império, como forma
de afastá-lo dos assuntos correntes, encaminhando-o a uma merecida
aposentadoria que ainda tardou a acontecer. Independentemente desses
dissabores, ele jamais consentiria, por exemplo, que dirigentes partidários,
representantes de interesses especiais, neófitos palacianos ou quaisquer outros
aprendizes de diplomatas lhe viessem sugerir esta ou aquela política em
matérias que fossem de sua competência exclusiva. Como “general” da diplomacia,
ele sabia que comando não se divide: ou se assume, ou se assiste a confusão
predominar em temas que têm a ver com a segurança nacional.
O Brasil precisaria ter uma “grande estratégia”?
Enfim, falamos das “pequenas estratégias” que o Barão não teria, e
não poderia ter, para as relações internacionais do Brasil, mais de cem anos
depois de sua morte, se por acaso voltasse ao nosso convívio. Mas faltou falar,
positivamente, de uma grande estratégia que o Barão do Rio Branco poderia
exibir na atualidade.
E por que
uma estratégia teria de ser “grande”? Não existe nenhum motivo especial para
isso: trata-se apenas de um adjetivo, talvez exagerado, que visa, de certo
modo, enfatizar o aspecto crucial para o país na determinação de suas políticas
mais essenciais; neste caso, grande pode ser considerado como algo diferente de
setorial (como poderia ser apenas defesa ou desenvolvimento). Grandes países,
com grande interface ou exposição internacional, ou, ainda, países capazes de
grande projeção internacional, costumam ter grandes estratégias. Talvez seja o
caso do Brasil.
O Brasil
é um ator relevante malgré lui, ou seja, possui massa e presença de
dimensões relevantes, embora não consiga determinar o curso dos eventos e dos
processos no subcontinente, mesmo mobilizando as armas de sua política – a
diplomacia – ou “ameaçando” (o que, aliás, seria difícil de concretizar)
recorrer à política das armas – para a qual lhe faltariam os requisitos de
base, justamente. Mesmo no terreno das proposições de política, não se pode
dizer que o Brasil tenha constituído um manancial de iniciativas
significativas, capazes de alterar, de maneira sensível, o peso e o papel da
região no contexto mundial.
Quais
são, numa análise realista, os componentes dessa grande estratégia? A resposta
a esta questão implica necessariamente identificar os principais desafios
colocados ao Brasil na realização dos supremos interesses nacionais. Quais são
estes últimos, portanto? Em plena transparência de propósitos, não parece
restar dúvidas de que o objetivo supremo da nação – ademais daquelas questões
básicas de soberania, que já consideramos não prioritárias – é o atingimento de
uma etapa superior no seu processo de desenvolvimento, de maneira a garantir
bem estar e vida digna a todos os brasileiros, como condição da plena
integração do país ao sistema internacional num status de potência capaz e
plenamente dotada dos meios de ação para atuar positivamente nesses sistema, em
conformidade com os propósitos da Carta das Nações Unidas e dos demais
instrumentos da cooperação internacional.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 1/06/2016