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Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.

segunda-feira, 21 de outubro de 2019

Carlos Pozzobon resume Emil Farhat: O País dos Coitadinhos

Eu já havia reproduzido aqui mesmo esta postagem-resumo de Carlos Pozzobon do livro famoso, muito citado, pouco lido, de Emil Farhat, O País dos Coitadinhos, um Brasil do passado, que curiosamente se parece muito com o país atual.
Paulo Roberto de Almeida


sexta-feira, 24 de junho de 2011


O País dos Coitadinhos

https://carlosupozzobon.blogspot.com/2011/12/o-pais-dos-coitadinhos.html?m=1&fbclid=IwAR24aIwEI1XtkYdKnzhxWrIq-SQERdsGid6ndDKod6mDPrqqEH2iqYMhI-0

"Retirado en la paz de estos desiertos,
com pocos, pero doctos, libros juntos,
vivo en conversación com los difuntos
y escucho com mis ojos a los muertos"
Quevedo


Um país de coitados

Lançado em 1967, este impressionante libelo contra o retrocesso demonstra que o nosso subdesenvolvimento se configura dentro de um modelo que concilia estatismo e sistema eleitoral, com as diversas ideias arquetípicas de bondades expressas na ideologia do coitadismo, pano de fundo das bondades eleitoreiras e dos déficits financeiros astronômicos.
Emil FARHAT viveu inicialmente como jornalista político no RJ, onde trabalhou durante 8 anos para ‘O Jornal e Diário da Noite’, mais tarde tornou-se publicitário, até aposentar-se e voltar ao jornalismo em São Paulo. Teve passagens pela literatura escrevendo 2 novelas e se transformou em um analista social por força das convicções e da responsabilidade perante os destinos do país na conturbada segunda metade do século XX. No final dos anos 40, foi um dos introdutores do célebre ‘Repórter Esso’ no Brasil. Descendente de libaneses que se estabeleceram na zona da mata mineira, escreveu a saga desses imigrantes espalhados pelo Brasil como caixeiros-viajantes no livro ‘Dinheiro na Estrada’. Formado em Direito, nunca advogou, subindo às instâncias hierárquicas da McCann-Ericsson até se tornar presidente da filial brasileira. Foi articulista e chefe do escritório paulista do jornal ‘O Globo’ durante os últimos 11 anos de carreira. Convidado por Roberto Marinho a assumir a TV Globo no Rio, recusou o cargo por discordar do governador Brizola. Em suas memórias fala dos anos de estudante de Direito no Rio, durante a ditadura do Estado Novo, e como jornalista de ‘O Jornal e Diário de Notícias’, ambos de Assis Chateaubriand. Para quem estuda essa época, os nomes da intelectualidade carioca e da política nacional estão todos em seu livro ‘Memória Ouvidas e Vividas’ (FARHAT, 1999, 300 p., Scrinium Ed.).
Sua breve militância política ocorreu na redação de um jornal de oposição, quando participou do movimento chamado Esquerda Democrática, que pretendia eleger José Américo de Almeida para a presidência da República em 1938, sendo ele um dos oradores do famoso comício de Niterói, poucos dias antes do golpe de 10 de novembro de 1937. No prefácio do seu livro ‘País dos Coitadinhos’ (FARHAT, 1968, Cia. Editora Nacional, p.2) conta que:
“Longos e intensos anos de estudos, nas colunas impressas e no ‘underground’, e uma constante convivência com a liderança intelectual, política e empresarial do país, foram colocando nas mãos de um interessado analista social uma variegada e fervilhante colheita de observações e conhecimentos – a qual seria mais do que imperdoável deixar de transmitir a todos que se preocupam com os destinos do Brasil”.

O ‘País dos Coitadinhos’ representa assim uma visão de Brasil que não serve para os políticos, estatistas, nacionalistas, sindicalistas, comunistas e aqueles empresários que se revezam na sucção do inebriante dinheiro do empreendedorismo de cartas marcadas que cerca as instâncias governamentais. Enfim, um livro maldito, daí seu completo obscurecimento nos círculos acadêmicos. Lendo suas páginas, somos tocados imediatamente pela linguagem rebuscada, pelas metáforas brilhantes, pela utilização recorrente de todo o campo semântico de uma ideia, recurso ademais comum no campo publicitário, mas extremamente raro em nossos intelectuais independentes, salvo nosso barroco-mor: Euclides da Cunha.
“Por cinco anos a fio, o autor dessas páginas foi fazendo uma paciente decantação do que supunha seria material para um livro. E há quatro anos, quando as nuvens enegreceram dantescamente, armando todo o prelúdio do que se imaginava seria outra ‘tragédia espanhola’ — uma guerra civil prolongada e sem quartel — pusemo-nos a elaborar este trabalho. E o fazíamos, às vezes, com sofreguidão e a emoção de quem temia que talvez isto viesse a ser, mais tarde, apenas um dos muitos documentos retrospectivos e retardatários, encontrados sob os escombros do que fora durante tantas décadas o prometido ‘país do futuro’ “ (FARHAT, 1968, p. 2).
As novas gerações — que não conheceram os dilemas dos anos 60, pouco ou nada sabem dos fatos pitorescos dessa época relacionados não apenas ao sistema político que descambou no golpe de 64, mas sobretudo ao que se passava no tecido social brasileiro. Se um jovem se perguntar em 2010, por que razão não temos trens como na Europa, por que cargas d’água não se pode colocar um carro em um navio no Porto de Santos e desembarcar motorizado em Salvador ou Florianópolis, certamente vai encontrar as respostas em ‘O País dos Coitadinhos’. E mais: não são respostas triviais, não se trata de análise panfletária ou denuncista. Ledo engano. FARHAT trata de articular todas as informações recolhidas em um apanhado da grande tragédia nacional: o sindicalismo direcionado para a política, o estatismo garantidor de privilégios, a progressão de déficits e, por fim, o sucateamento de rodovias e portos estatizados para delírio dos empregados e maldição do povo e da nação.

Assim FARHAT tece uma crônica dos fatos, analisa um banco de dados para ir dali extraindo os ensinamentos que o sistema vai apresentando dessa realidade imarcescível que é o subdesenvolvimento programado.
“Quem folhear o ‘Diário do Congresso’ verá, estarrecido, a corrida em que deputados dos mais variados matizes se acotovelam na oferta das mais mirabolantes vantagens, concessões, direitos, privilégios, ‘defesas’ e ‘arranjos’ para grupos, classes ou grupelhos ‘especializados’ de ‘trabalhadores’ ou ‘funcionários’. A disputa para ver quem é mais ‘generoso’, à custa do resto da Nação, chegou a tal ponto que ficou humorística a reivindicação de paternidade do ‘13º salário’: — segundo um cronista parlamentar, nada menos do que 15 deputados e senadores se disseram ‘pai da ideia’, não respeitando nem mesmo a hegemonia exercida pelo latifúndio político, ‘por direito de herança’, pelo próprio Sr. João Goulart...
Deputados querem ser senadores... senadores que querem ser ministros... ministros que querem ser presidentes, ou governadores ... dirigentes de institutos ou de bancos oficiais que querem ser deputados... vão distribuindo à mão-cheia privilégios, concessões, ‘vantagens’, reivindicações, cargos e sinecuras, porque tudo isto cairá nas costas de um imenso, vago e indefinido burro-de-carga que é o povo.
Certo tipo de juízes, agindo em função do bom-mocismo ou do terror intelectual habilmente lançado pelos comunistas, assume, através de sentenças sistemáticas, a posição ‘filosófica’ de que a legislação trabalhista tem como finalidade única proteger o ‘coitadinho’: o ‘coitadinho’ do incapaz, o ‘coitadinho’ do desleixado, o ‘coitadinho’ do empregado desleal com a empresa que lhe dá trabalho, e o ‘coitadinho’ que fez apenas pequenas e tímidas desonestidades....” (FARHAT, 1968, p. 11-12).
E cita alguns exemplos desse festival de besteiras da justiça trabalhista como, por exemplo, o magistrado que sentenciou favoravelmente o empregado relapso que “tendo seus atrasos tolerados ingenuamente pela empresa, exigiu que aquele fosse considerado o ‘seu’ especial horário de chegada...” (p.13), em contraposição aos demais empregados pontuais.

Essa série sucessiva de acintes contra o bom-senso e contra a coletividade daria para escrever um livro por ano somente garimpando os processos que tramitam nas varas sebentas da Justiça do Trabalho. E continua FARHAT:
“O que é preciso é que as novas gerações entendam e compreendam que jamais nação alguma cresceu pelas mãos dos ‘estadistas’ do jeito, e dos governantes que não tomam decisões mas contornam com manobras, preocupados que sempre vivem com os índices de sua popularidade e com sua cotação eleitoral. Uma grande nação se governa muito mais com ‘NÃOS’ solenes, duros e corajosos, do que com ‘SIMS’ hábeis, frouxos, melífluos, espertos e sobretudo irresponsáveis. Guardem os moços o seu coração para amar o Brasil COM TODOS OS DEVERES QUE ISTO NOS IMPLICA, e não pelos direitos que isso nos possa assegurar. E, sobretudo, é preciso que nos previnamos contra o bom-mocismo nas funções públicas.
Não devem merecer senão repulsa e repugnância aqueles ‘líderes’ que fazem do patrimônio nacional e do bem-estar do povo o almoxarifado das ‘suas’ concessões e dos ‘seus’ presentes às castas amigas e aos correligionários. Na verdade, esses não são líderes, nem comandantes; são os ‘garçons’ da República, dispostos a ‘servir’ a Pátria em bandejas às suas vorazes clientelas eleitorais, as mesmas que fabricam ‘déficits’ astronômicos, mas, às vezes, levam ao poder... “ (p. 13).
“O Brasil não é para ser dado a ninguém, nem de FORA, nem de DENTRO. O fato de ter sido nascido nesta terra não confere a ninguém o direito de parasitar seu povo, seja desfrutando a moleza IMPATRIÓTICA das sinecuras improdutivas ou dos cargos indevidamente super-remunerados, seja usurpando favores e ‘direitos’ abusivos que atentam contra o bem comum ou contra as possibilidades de progresso do país” (p. 14).
Uma nação deve dar assistência, mas não direitos à incapacidade. Deve amparar doentes, mas não premiar ociosos resmunguentos, nem torná-los razão de suas leis, padrão de méritos públicos e limite das ambições cívicas ou econômicas.... É preciso dar um ‘Basta!’ ao ‘coitadismo’ na vida pública, ou então este país gigantesco, que o mundo já começa a apontar ironicamente como sendo ‘apenas o país do futuro...’ jamais se erguerá além do afundado subnível econômico-social das cubatas africanas, ou da desoladora paisagem de mentes ocas e bocas vazias das polêmicas meramente geodemográficas...
Não é admissível que o nhem-nhem-nhem do ‘coitadismo’ continue a ditar a essência da jurisprudência e do espírito das leis sociais brasileiras num convite oficial ao amolecimento nacional, ao imobilismo geral, ao caradurismo total, ao mais inerme e boçal parasitismo...” (FARHAT, 1968, p. 15-16).
Com esse chamamento moral Emil FARHAT continua a dissertar sobre as incongruências da nossa realidade dos anos 60. Realidade pervasiva, que se encontra enraizada na estrutura política, no modelo de estado, na burocracia e no sistema sindical, jurídico, educacional e por aí afora. Dessa raiz nasce a planta venenosa que se agarra no tronco da nação e suga-lhe a seiva, desmoraliza o trabalho diligente, favorece o cinismo dos aproveitadores, irriga o oportunismo e constrange toda a honradez e dignidade dos milhões de trabalhadores do país.
É o mais impressionante libelo contra a pieguice, a condescendência, o festival de reivindicações sem limites, de capitulacionismo e de tudo o que pode representar dos estados mentais de uma coletividade enfermiça pela anarquia e descompostura intelectual, que ressuscita nos dias atuais e já repete o mesmo ritual dos anos 60.
O objetivo de FARHAT é combater o grande mito dos anos 60 chamado de ‘Reformas de Base’. Através de um elenco de generalidades, a grande frente constituída pelo trabalhismo, sindicalismo pelego, comunistas e nacionalistas de todos os matizes, propugnava um programa que incluía reforma agrária, reforma urbana, reforma educacional e assim por diante. A princípio não havia nada a obstar, mas olhando-se mais detidamente, começaram a aparecer os problemas: o primeiro era a pergunta fatal: mas olha aqui, se esta gente que está proclamando isso é a mesma que está há 30 anos no poder, por que não fizeram nada?

A primeira reforma de base: a reforma do mar

FARHAT começa mostrando que a primeira reforma feita no país foi a reforma do mar, realizada na década de 20 pela divisão do mar brasileiro entre os 100 mil pescadores. A situação era a seguinte: os barcos portugueses, melhor equipados e com muito mais tradição em pesca, entravam nas piscosas águas brasileiras, enchiam seus barcos e se mandavam para Portugal, fazendo o que bem entendiam em uma terra-de-ninguém. Para remediar esta situação, o governo Epitácio Pessoa reagiu drasticamente, exigindo que os nossos mares fossem reservados somente aos naturalizados. Mas naturalização de empresas e não de pessoas, isto é, os portugueses poderiam pescar, mas tinham que ter suas empresas registradas e com sede própria no país. Mas a demagogia xenofóbica que se desenvolveu de norte a sul logo tratou de hostilizar os portugueses tratando-os de sugadores, espoliadores, polvos anfíbios, etc. Como os nossos pescadores ainda estavam na fase da jangada, a expulsão dos portugueses ocasionou o colapso do fornecimento de pescado para os nossos mercados. O tiro saiu pela culatra.
Ora, um país precisa entender que o capital estrangeiro, mesmo o representado pelos barcos portugueses, quando associado com a ‘expertise’ que lhe é implícita não pode ser simplesmente banido sob pena de criar sérios problemas no mercado: ao contrário, deve ser convidado a investir no país e com isso contribuir para o progresso e desenvolvimento, sempre com o Estado tendo o cuidado para evitar o monopólio e incentivar a produção nacional para o máximo de competitividade, que é a racionalidade exigível para o equilíbrio econômico dentro do capitalismo. Mas uma sociedade atrasada, como a brasileira, os propósitos de Epitácio Pessoa logo foram desencaminhados por Arthur Bernardes, seu sucessor, que em vez de nacionalizar os barcos, exigiu a nacionalização das pessoas.
Transformados em espoliadores pelo discurso demagógico, o peixe dos portugueses sumiu da mesa do pobre e começou a ser ofertado a preço de ouro e o Brasil tornou-se irrelevante como país de pesca, tendo nada menos que 9 mil km de litoral. A comparação com outros países era humilhante, especialmente com Argentina e Peru. Para se ter uma ideia, nossas jangadas e barcos eram tão irrelevantes, ficaram tão para trás no processo de pesca, que o Brasil nem sequer se apresentou em 1967 na Comissão Interamericana de Atum Tropical ocorrida no México. Isso depois que diversas missões oceanográficas estrangeiras estiveram nas nossas costas confirmando a existência de extraordinários cardumes de diversos tipos de peixes, principalmente no litoral sul do Brasil.
Essa crise do início do século foi depois contornada pela natural lei da oferta e procura, mas nos anos 60 volta a entrar em colapso com a legislação trabalhista marítima, um dos pontos do livro de Emil FARHAT. Um dos colapsos do Brasil, que os historiadores não costumam dar importância, mas que é o núcleo do livro ‘O País dos Coitadinhos’, explica por que os transportes brasileiros naufragaram sob o peso de um sindicalismo selvagem. A legislação trabalhista marítima havia criado obrigatoriedade na composição das forças de trabalho das embarcações. Para se ter uma ideia do aumento dos custos de mão de obra de todos os serviços marítimos, considere a compra de um rebocador de bandeira holandesa, efetuada pela capitania de uma empresa do RS. Da Holanda para o Brasil, o rebocador (que iria trabalhar nas águas do Rio Jacuí) utilizava uma tripulação de 5 homens. Ao chegar no Brasil passou, obrigatoriamente, a operar em um rio com 14 tripulantes — por força da legislação.
Essa reviravolta, sob a suposta alegação de proteger a mão-de-obra, fragilizou até mesmo os pequenos e frágeis barcos de pescadores do nosso litoral. E Emil FARHAT traça o quadro dos “enxadeiros” do mar, nossos rudimentares e neolíticos pescadores, vivendo em um mundo de grandes empreendedores e companhias de pesca, com produção anual de milhares de toneladas de pescado, enquanto a nossa não passava de uma quantidade irrisória, para um país com um litoral dos mais piscosos do mundo. O resultado? O Brasil teve de importar 16 milhões de dólares de pescado em 1961 e 20 milhões de dólares em 1963. Naturalmente que não era um peixe barato...
A adoção de políticas demagógicas cujo resultado é o regressismo tem um ponto fundamental como corolário de não ter dado certo. Ela exaspera ainda mais seus defensores na busca de bodes expiatórios nem sempre materializados nas figuras sociais específicas, mas na generalidade de ‘elites’, ‘classes dominantes’, ‘tubarões’, ‘obsoletas estruturas arcaicas’, etc. Se uma política econômica conduz à inflação, os postulantes da tragédia ocupam as tribunas para vociferar contra os ‘remarcadores’ de preços; se a política econômica conduz ao desemprego, os mesmos implementadores da política passam a esbravejar contra a ‘insensibilidade moral’ dos empresários ou qualquer coisa do gênero.
O que está no cerne desse desastre concessionista e demagógico não é o desejo de aprimoramento, não é a falta de vontade de aperfeiçoamento e de melhoria na qualidade de vida da população como enfatiza o autor:
“Essa melhoria não vem jamais por ‘doação’, ‘decreto’ ou ‘outorga’ de nenhum taumaturgo liliputiano e pretensioso – para quem a ação política ou a arte de governar eram apenas uma série sensaborona de escamoteações e manhas de astúcias, e de golpes de ‘esperteza’. A geração que era adulta durante as décadas de 30 e 40 sabe disso; sabe que foi o marasmo, a lerdeza, a lentidão do desenvolvimento econômico-social sob os quinze anos da ditadura e do Estado Novo, apesar dos 8.148 decretos-leis com cuja assinatura o ditador ‘decretava’ um progresso que não vinha, e uma prosperidade que o seu papelório estéril não gerava” (FARHAT, 1968, p. 86-87).
A compreensão que só o trabalho perseverante produz, que só a produção rentável remunera, que só a eficiência prospera, faz parte do amadurecimento político de uma nação, cujos fundamentos precisam estar assentados em uma luta contínua contra as iniquidades do Estado, e que portanto faz parte do processo educativo dos povos livres, das pessoas que possuem um conhecimento básico de economia para que se possa ter sentido o velho slogan ‘estamos vivendo num mundo dinâmico e em transformação’. Enquanto a mão generosa do Estado tudo pode resolver, enquanto a ‘vontade’ política do governo for a senha para solucionar todos os dilemas sociais, estamos condenados ao retrocesso, seremos sempre aquela sociedade que dá dois passos à frente e um para trás. Ano seguinte 5 passos à frente comemorados com grande fogueteio, para ano depois dar 3 passos para trás.

O deliberado descarrilamento geral dos nossos sistemas básicos de transporte

“... Nunca se viu orgia maior com leis de favor para certos grupos de trabalhadores, que chegaram a ser os mais bem pagos do mundo em seus ramos. A loucura chegou a tal ponto que o déficit anual, só com os ferroviários, seria, em 1964, da ordem de 420 bilhões de cruzeiros (R$6,1 bilhões em 25/6/2010); em 1965 alcançaria 620 bilhões de cruzeiros (R$ 9 bilhões) e, em 1966, ultrapassaria 1 trilhão de cruzeiros (>14,5 bilhões de reais– www.calculoexato.com.br considerando o índice IGP-DI). E isto, só com os ferroviários, só com a Rede Ferroviária Federal, que compreende 21 ferrovias. São todas deficitárias, com despesa de 5, 10, 15 e até 30 vezes maior do que a receita” (Relatório do Ministro da Viação Juarez Távora, O Globo 29/1/1965, p.95).
Vamos abordar o trabalhismo em 2 casos que merecem consideração do leitor: as legislações trabalhistas dos portuários e a dos ferroviários. Essas legislações específicas criaram um sistema de ganhos extraordinários através de um complicado método de atribuição de tarefas. Havia vantagens de todo tipo, mais o empreguismo que fazia com que desde o departamento de pessoal de uma companhia de navegação ou ferroviária até a tripulação do navio ou trem estivesse abarrotada de gente por força da legislação trabalhista específica. A proporção era estratosférica: um departamento de pessoal, que necessitasse de 20 funcionários, abrigava 200. Uma única empresa tinha 7300 funcionários – só na burocracia.
No Lloyd e na Costeira estatizados, o problema do inchamento da máquina ocorre em paralelo com seu desmantelamento. Enquanto aumentam exponencialmente as despesas com pessoal, diminuem avassaladoramente as receitas com a operação do serviço pelo encarangamento da atividade, obsolescência de manutenção, conduzindo à quebra de equipamentos e interrupção de serviços, aumentando os déficits financeiros e impossibilitando a confiança mútua entre empregados e a adoção de práticas sadias de trabalho e dedicação. Nesse ambiente, formam-se camorras especializadas no peculato e na falsificação de horas extras, defeitos técnicos, greves relâmpagos, reivindicações estapafúrdias e assim por diante, com alta ressonância favorável no sistema político eleitoreiro, mas uma desordem generalizada no ambiente de trabalho.
No disputado processo político dos anos 60, como consequência da pervasiva inflação apontada atrás, que cobrava de todos os brasileiros a fatura da insanidade da construção de Brasília, um velho elemento veio a ser turbinado na trajetória político-institucional de forma nunca vista anteriormente: a demagogia eleitoral calcada em promessas de benefícios salariais no vendaval das reivindicações pela recuperação salarial.
Eram mobilizações legítimas sendo impulsionadas por pretensões absurdas que lançadas nos vapores esbravejantes da irresponsabilidade, se condensaram no líquido viscoso e pútrido da iniquidade. Aproveitando os anseios legítimos, a grande frente única do regressismo nacional mirou seu canhão de chumbo grosso no sistema de transportes estatizado e dali conseguiu a mais extraordinária e brutal privilegiatura de que se tem notícia na história do mundo: um sistema de benefícios e vantagens para ferroviários e estivadores que afundou o país em uma crise até hoje (2010) ainda não totalmente solucionada. Eis o que nos conta Emil FARHAT (1967, p. 97- 98):
Quando pelas alturas de 1960, a leviandade e a irresponsabilidade ofereciam céu cada vez mais livre para as aves de carniça e campo ainda mais propício ao farejar necrófilo das hienas — despencavam-se sobre as ferrovias mais “recomendados” que passageiros, choviam sobre os navios muito mais “candidatos” do que cargas, e no cais se acostavam mais protegidos e “conferentes” do que mercadorias e minérios.
As ferrovias, as empresas de navegação e os portos pareciam monstruosidades intumescidos, imensos cabides já sem mais ganchos e lugares para pendurar tantos bonés de afilhados – que vinham mensalmente em legiões novas, na mobilização nervosa dos que então já pensavam na sua milícia de foguistas de bordo, no seu exército de moços-de-convés, nos seus esquadrões de “conferentes-pipi” para a tomada do poder. Pela malícia ou pela violência.”
Estatizou-se a Companhia de Navegação Costeira, que formava, com o Lloyd Brasileiro, o maior conjunto mundial de marítimos sem navios ... quando o país abriu os olhos, cada bigorna tinha quatro ferreiros e cada vagão quatro condutores; em cada navio mercante brasileiro, quatro marinheiros descascavam a mesma batata ..., e em cada metro de cais, quatro ‘especialidades’ de conferentes espiavam o mesmo saco carregado por quatro estivadores”.
O Brasil chegara à década de 60 com apenas 40 km de cais na soma de todos os seus portos, isto é, dos 262 atracadouros acostáveis do país. Na mesma época, só o porto de Hamburgo tinha 30 km, Londres 80 km. Nova York tinha 170 km de cais acostável e 3.500 funcionários no porto. O Rio de Janeiro (só com 7 km de cais acostável) tinha cerca de 8 mil funcionários.
Quem visita o museu da Companhia de Navegação Costeira no porto de São Francisco do Sul (SC), depara-se com uma empresa fundada em 1882 por integrantes da família Lage que foi responsável por boa parte do desenvolvimento do Brasil até 1966, quando foi estatizada e incorporada ao Lloyd. Mas nada mais se fala sobre o colapso da marinha mercante brasileira. No entanto, Emil FARHAT deixa clara a causa do colapso tão zelosamente escondido dos brasileiros naquilo que, não obstante ter sido um fato escandaloso, conseguiu se transmudar no conjunto do Brasil que ‘não se vê’ por arte de nossos estudiosos acadêmicos:
Enquanto um navio carvoeiro inglês ou norueguês ou belga ou liberiano, de aproximadamente 5 mil toneladas, tem 29 homens na tripulação, os nossos com a mesma tonelagem e para a mesma finalidade têm cerca de 80.
...Quando em setembro de 1963, o novíssimo mercante do Patrimônio Nacional ‘Ana Nery’ se chocou com um petroleiro da Petrobras à entrada da Guanabara, nenhum jornal se deu ao trabalho de comentar ou estranhar este escândalo técnico, também de proporções mundiais: fretado para levar 70 turistas a Israel, o reluzente ‘Ana Nery’ o fazia graças aos ‘exaustivos esforços’ de 230 tripulantes!...
Quando o leitor vir, no porto de Belém ou de Manaus, um bojudo “motor”, desses que sulcam os igarapés da Amazônia, puxando, como se fora um sobressalente, um pequeno barco em que vão alguns homens, fique desde logo sabendo que aqueles cavalheiros rebocados são os excedentes da tripulação legal, e ali vão espiando os outros trabalharem, porque a lei ‘manda’ que haja aquele excesso, que o próprio barco-motriz não comporta” (FARHAT, 1968, p. 98-99).
No tocante à navegação fluvial, em um relatório apresentado pelo presidente da Comissão da Marinha Mercante em 1965, o comandante Fernando Frota, indicava de modo dramático:
“Todas as empresas se acham em estado de decomposição” (p. 107), referindo-se ao “Serviço da Bacia do Prata”, ao “Serviço de Navegação da Amazônia e de Administração do Porto do Pará (SNAPP), à ‘Companhia do São Francisco´ e à “Navegação Bahiana”.
Os 34 mil km de rios brasileiros navegáveis encontravam-se paralisados porque o serviço não podia atender às exigências legais da “tripulação de lei”. Até mesmo uma piroga tinha que se enquadrar na legislação marítima. As consequências disso logo vieram à tona: os navios que deixavam os portos totalmente carregados passaram a viajar com 50% da carga. Uma viagem de Porto Alegre a Belém retardou-se para 5 meses, enquanto que de Porto Alegre à Austrália ou ao Japão apenas 2 meses. Em pouco tempo, o sal do Rio Grande do Norte faltava no RS, e o rebanho bovino começou a minguar por falta de sal. O desaparecimento de cargas por roubo no cais começou a se transformar em uma endemia. Flagrados alguns conferentes roubando cargas nos armazéns do cais de Porto Alegre, não puderam ser despedidos porque a legislação não permitia. O transporte de arroz passou a ser feito por rodovia, porque para ser feito via cabotagem teria que esperar até 6 meses. Desde então, continua sendo feito por rodovia. Nossa navegação de cabotagem não se restabeleceu jamais apesar das inúmeras gerações de políticos que se sucederam no país. E a razão é muito simples: não houve alterações na legislação trabalhista, um código tão arcaico que faria os chineses ter um ataque de riso (ou de raiva) se soubessem o que ela representa na proteção ao mau caráter do picareta travestido de trabalhador brasileiro e na frustração ao empreendedor.
As empresas privadas de navegação tinham que repassar as taxas portuárias e os altos salários da estiva. Logo as cargas começaram a rarear. E não eram poucas as empresas de navegação. No RS havia a Rio-Grandense, que foi a última a entrar em liquidação por não ter mais condições de operar. Havia uma empresa para transporte de mercadorias entre as quais o vinho da Serra Gaúcha para São Paulo, Rio, Salvador, etc. Seu último navio, chamado Navesul, ficou parado, longo tempo à venda, sem compradores. A empresa fechou porque ninguém podia transportar mercadorias devido às altas taxas portuárias. Era mais barato enviar por via rodoviária e até por avião do que pelos portos.
Por toda a parte o que se via eram navios parados esperando carga. E como empresa parada não fatura, a Casemiro Filho, do Ceará, teve que fechar as portas. Ofereceu aos seus portuários os próprios navios como indenização: eles recusaram. “O que vamos fazer com navios, disseram eles: não há carga” (p. 111).
Para se ter uma ideia comparativa de salários no final de 1963, em Macau no RN, porto de salinas por onde o sal era embarcado pelos barqueiros que pelo rio Açu levavam o sal até os navios, os estivadores tinham um salário de 500 mil cruzeiros (R$14.300,00 pelo IGP-DI), enquanto o salário mínimo da região era Cr$14.700,00 (R$421,18 pelo IGP-DI). Os salários de autoridades locais eram: prefeito (Cr$42 mil = R$1.205,00); juiz de direito (Cr$40.000,00 = R$1.147,00); professora primária (Cr$6.500,00 = R$186,54), com índices atualizados pelo IGP-DI do site www.calculoexato.com.br para maio/2010.
A consequência foi a desmontagem dos navios um depois de outro. Até navios frigoríficos foram sucateados por falta de carga. Os únicos navios que saíam dos portos eram os de bandeira estrangeira, que não precisavam se submeter à legislação trabalhista marítima. Foi um grande apoio que nosso sistema político populista concedeu às empresas de navegação no exterior. Ou seja, o desmonte do país sob a veia crispada da demagogia populista e que todos os livros de história se esmeram em ocultar, zelosos que são do oficialismo, do partidarismo único e pervasivo: a atribuição dos problemas brasileiros às ‘elites’ ou qualquer outra denominação pomposa de nosso disfarcismo alucinante.

Ferrovias

No caso das ferrovias, o número de pessoas empregadas em 1964 daria para atender o triplo de quilometragem de vias férreas existentes, e capazes de transportar uma tonelagem de mercadorias “algumas dezenas de vezes maior que a que carregam” (p. 99).
Quando o governo militar resolve estatizar toda a rede ferroviária, criando um único ente chamado Rede Ferroviária Federal, o resultado foi imediato:
24 horas depois de sair das mãos de particulares, que eram capitalistas nativos, de quatrocentos anos... – empresários particulares que a tornaram uma das mais perfeitas ferrovias do mundo – a Companhia Paulista de Estradas de Ferro começou a dar um ‘déficit’ que, ao fim dos doze primeiros meses, já atingira 600 milhões de cruzeiros velhos!...” (FARHAT, 1968, p. 100).
O caso dos déficits das ferrovias era de tal monta que o então ministro do Planejamento Roberto Campos chegou a afirmar que havia casos que se o transporte fosse gratuito, a ferrovia daria menos prejuízo, já que não haveria despesas com a impressão de bilhetes, nem com o pagamento de funcionários que os vendiam ou recolhiam. Mas ocorre que a estatização da Companhia Paulista foi feita pelo regime militar e colocada no mesmo bolo das inúmeras ferrovias estaduais deficitárias. Como explicar essa terrível mancada dos militares sem inclui-los como problema na mesma nação do estatismo furioso e desembestado que tomou conta do país, com a criação, uma década mais tarde, de 290 empresas estatais na maior orgia de estatização pela qual passou o país.
A Rede Ferroviária mais famosa por sua inoperância, por seu inchaço de funcionários e por ser alvo de críticas desde os primórdios do século XX, foi a Estrada de Ferro Central do Brasil (ver artigo de Lobato). O acervo de desatinos dessa empresa faz parte da literatura brasileira. Com média de 2 acidentes diários, atraso permanente, sucateamento de máquinas e vagões, falta de manutenção de trilhos e pontes, a Central do Brasil era um retrato pitoresco do nosso estatismo no início do século XX. Ali saía tudo ao contrário: em vez de se investir nas necessidades, investia-se no supérfluo. A direção da empresa era ocupada por postulantes da carreira política, que tudo faziam para agradar a massa ferroviária, transformada em currais eleitorais propelidos por benesses. Os ferroviários, por seu turno, tudo faziam para prolongar os atrasos e com isso faturar horas extras. Quem viajava de trem nos anos 60, e até mesmo nos anos 70, no RS (em vagões importados da Hungria, que receberam o nome de ‘trem húngaro’, com a promessa de maior velocidade e eficiência) não conseguia entender por que os trens se deslocavam a 30 km/h em trechos onde a velocidade poderia ser de 50-60 km/h com segurança. O viajante não entendia por que as paradas nas estações intermediárias prolongavam-se por 20-30 minutos quando poderiam ser feitas em 5 minutos. Somente uns poucos “iluminados” sabiam que os ferroviários eram os donos do horário e faziam o que queriam – como é de praxe no sistema estatal brasileiro – e com isso submetiam os passageiros à humilhante demora do dobro do tempo nas viagens apenas para faturar horas extras.
No final do período de mais intenso e desbragado populismo da história brasileira do século XX, os transportes brasileiros estavam completamente paralisados. O déficit mensal era estratosférico. As greves semanais, o concessionismo absoluto. Ninguém em sã consciência, não pertencente à família ferroviária, aguentava os desatinos daquela classe.
O resultado vai para a conta do nosso déficit de 5 trilhões de dólares: até hoje nossas ferrovias não se recuperaram totalmente do grande baque do furor trabalhista dos anos 60, deixando o esqueleto de estações abandonadas, terrenos invadidos, prédios depredados, máquinas enferrujadas. A privatização das ferrovias deveria ser seguida de uma mudança total na legislação trabalhista protecionista. Mas então os nossos políticos se acovardaram, as vozes do populismo falaram mais alto e as novas empresas concessionárias se dedicaram exclusivamente ao transporte de carga, exceto nas novas linhas administradas pelo Vale do Rio Doce.
Em nossos portos a modernização ficou pela metade: no governo FHC foi feita a privatização de terminais marítimos, permitindo que empresas privadas administrassem os ativos de exportação de grandes empresas, o que permitiu uma redução substancial no custo do embarque de containeres, mas o terminal de cargas público continua com o mesmo sistema repulsivo de exploração de mão-de-obra pela subcontratação dos ‘bagrinhos’, espécie de estivador contratado como tarefeiro e controlado por uma oligarquia neoescravista escorada na discricionária legislação fascista.

A semeadura de embustes em torno da Reforma Agrária

É o título de um capítulo em que FARHAT resolve enfrentar o consenso nacional em torno do argumento da reforma agrária, para mostrar até que ponto se equivocam os bem-intencionados e lucram os oportunistas e demagogos de sempre. A Reforma Agrária é um espantalho que volta e meia reacende as labaredas da justiça social e termina nas cinzas do fracasso.
Já tivemos reformas agrárias oficiais, na distribuição de terras que começa no ciclo da imigração alemã e italiana no RS e, eventualmente, na região do noroeste paulista. Depois vieram as reformas agrárias republicanas e, por fim, o problema se agravou com a involução causada pela asfixia nos transportes, razão da existência de uma economia de trocas. Imobilizada a produção nos campos, com as colheitas sendo acumuladas até em sacristias de igrejas no interior do estado, armazéns de portos desativados, a economia rural começou a fenecer no meio de estradas intransitáveis, de governos relapsos, da impotência geral. Empobrecido, o agricultor migra para a cidade, de onde, num subemprego, sonha em retornar à terra de seus antepassados. Era o combustível dos demagogos.
O arroz gaucho chegava em São Paulo e Rio depois de 2 a 3 meses de viagem de trem.
“Quem sabe que a tonelagem de colheitas de cereais do Norte do Paraná demandava mais de 15 vezes a débil e aleatória capacidade de transporte que lhe era oferecida pela ferrovia que serve a região?“ (FARHAT, 1968, p. 188).
A contradição latifúndio improdutivo x população sem terra, ou latifúndio x minifúndio, elidia uma realidade nacional básica: o problema dos produtores rurais acossados por falta de condições de transporte, crédito, armazenagem, subsídios, etc...
Além disso, a verdadeira natureza da agitação pela posse da terra: passados mais de quarenta anos, a advertência de FARHAT de que a reforma agrária não conduz aos objetivos planejados confirma plenamente os dados de nossa época.
Senão vejamos:
Alguns participantes da claque vermelha das cidades fingem crer totalmente que ‘o Partido está lutando para dar terra aos camponeses...’ Esses ingênuos-espertos fingem não saber que, em todos os lugares em que subiu ao poder, o ‘Partido’ não deu nem dará títulos de propriedade de terra (e de nada) a NINGUÉM, pelo simples fato de que o princípio básico (e mortal) da política marxista é exatamente a eliminação da propriedade individual e de toda a ideia de posse...
Se, nos países livres, os ditatorialistas vermelhos falam taticamente em ‘distribuição de terra aos camponeses’ é porque já sabem quanto isso lhes serve para a AGITAÇÃO E DESORGANIZAÇÃO da vida do campo – dois fins fundamentais da sua ‘política agrária’. Eles já conhecem de sobra os resultados de todas as ‘reformas agrárias’ feitas desse jeito: 1) imobilizar pelo terror as atividades produtoras dos que têm terras; 2) dar uns inconsequentes tratos desnudos de campo a quem já vive desnudo de vida.
Eles já sabem que o simples fato de se entregar um título de propriedade a um enxadeiro não realiza o milagre de torná-lo capaz de dirigir o pequeno e complicado negócio que é o seu sítio, a sua fazenda. Eles já conhecem calculadamente os ‘resultados’ que se obtêm quando se joga uma pobre família de campônios sobre terras que eles têm de cultivar com uma orientação profissional de que não dispõem; com instrumentos de trabalho e máquinas que não podem comprar; com adubos cuja existência às vezes nem conhecem. Maquiavelicamente, eles não ignoram que aquele coitado, só com enxada e facão, não pode dar cabo das pragas que ameaçam periodicamente suas plantações, e que não poderá, com míseras caçambas ou ridículos regadores, repor sobre o campo, diariamente, a água, a irrigação que Deus não der...
Que milagres fabulosos teriam acontecido na produção agrícola dos países que realizaram a ‘Reforma Agrária’? Que índices admiráveis de produção atingiram essas nações ‘progressistas’?
No seu fundamentado e impressionante livro, ‘A corrida para o Ano 2000’, o professor Fritz Baade, com sua autoridade de deputado do Partido SOCIALISTA alemão, informa que são os seguintes os resultados de produtividade dos campos ‘reformados’, nos países onde se fez a Reforma:
“Na Rússia, cada trabalhador ativo produz para 6 pessoas na cidade. Na China e na Índia, cada trabalhador ativo produz para 3 pessoas na cidade.”
Enquanto isso, o que acontece nos países onde não houve a ‘benção salvadora’ dos sovkhozes e kolkhozes? Nos Estados Unidos, cada trabalhador ativo produz para 27 pessoas na cidade! No Canadá, cada trabalhador ativo produz para 26 citadinos!
Com sua responsabilidade de professor de economia agrária da Universidade de Kiel, Fritz Baade calcula ainda que, lá para o ano 2000, com a evolução da técnica agrícola (novos equipamentos, novas descobertas sobre solos, nova química protetora, novos adubos, nova mentalidade administrativa), cada agricultor americano estará produzindo para alimentar de 70 a 90 pessoas na cidade!
Apesar de todo o hermetismo com que os marxistas cercam suas ‘tragédias íntimas’, a União Soviética não conseguiu esconder em 1963 a sua necessidade de bater à porta dos paióis burgueses para comprar 30 milhões de toneladas de trigo aos seus agricultores não ‘reformados’. Nem pode omitir também o desespero da busca de um ‘bode expiatório’ nacional (já que não tem imperialismo agindo lá dentro), mudando 4 vezes de ministro da Agricultura em 3 anos... (FARHAT, 1968, p. 190-192)
Quando se sabe, desde 2007, que de todos os milhões de hectares de terra distribuídos a partir dos anos 90, que o índice de fracasso chegou a 75%, percebe-se o quão proféticas são as palavras de Emil FARHAT. E, quando se compara as invasões atuais do MST e da Via Campesina com o propósito de destruir plantações, máquinas e edificações, além da aterrorização generalizada no campo, só se pode concluir que o Brasil não prestou atenção a um de seus mais importantes livros que só podia ser escrito por um analista social e que jamais teria algo equivalente entre nossos dómines acadêmicos. E mais adiante FARHAT (1968, p. 195) acrescenta:
No Brasil, os reformistas agrários que aqui pontificavam nos idos de 1962 e 1963, criaram um órgão executor de seus projetos, a SUPRA (Superintendência da Reforma Agrária), que agitou intensamente, fundou imediatamente... 500 sindicatos rurais, e NENHUMA ESCOLA de ensino agrícola. E nem sequer fez o Censo Rural, pois não interessa aos desígnios da SUPRA constatar, e deixar divulgar, que já existiam no Brasil cerca de 2.700.000 propriedades agrícolas ... num país ... que precisa de 5 mil novos agrônomos por ano, para atender às necessidades da sua lavoura, onde só existem 12 escolas de Agricultura....”.
Citando os custos da propriedade agrícola, segundo levantamentos da época, bem como das ferramentas e aparelhos de irrigação, uma pequena propriedade necessitaria de NCr$ 4 mil em dezembro de 1964 (Cerca de R$57 mil pelo IGP-DI de maio/2010 segundo o portal calculoexato.com.br)
E termina dizendo que para acomodar 50 mil novos camponeses todos os anos, as despesas apenas de aparelhagem, supondo que seriam feitas em terras devolutas do Estado, teriam que ser de 115 milhões de cruzeiros novos (1,6 bilhão de reais pelo IGP-DI em 31/5/2010). Entretanto, considerando que:
Sem assistência social adequada e enérgica, o enxadeiro brasileiro e sua família serão, como os nossos pescadores, baratas tontas, que se afogarão pela falta dos mais simples rudimentos de economia agrícola e doméstica no pequeno mar de facilidades e responsabilidades atiradas às suas mãos inexperientes, ao seu cérebro virgem de noções de bem-viver, de saber viver e de administrar o que quer que seja (FARHAT, 1968, p. 199).
E foi o que aconteceu e continuará acontecendo: puro e simples desperdício de dinheiro público. Mas sua crônica dos atropelos governamentais não para por aí. Fala da obsessão pelo ‘fachadismo’ do governo de construir um mastodonte estatal chamado UNIVERSIDADE RURAL, no km 47 da Via Dutra, na saída do Rio de Janeiro, em lugar de centenas de pequenas escolas agrícolas para não "pulverizar a grandeza das coisas que o Estado (leia-se o ‘Meu governo’) deve fazer. Tem de ser uma Universidade Rural ‘como não há nenhuma no mundo’ (FARHAT, 1968, p. 201).

A mão seca do Estado-industrial... e a mão frouxa dos líderes-Madame-Pompadour

Um capítulo dedicado a nossa maior praga de todos os tempos, e sem a qual o Brasil não seria a porcaria política e governamental que é: o estatismo.
Madame Pompadour foi a amante de Luis XV que, vivendo em Versalhes, tornou-se célebre pelo tráfico de influências na Corte, recebendo diariamente todos os pretendentes a algum benefício real e concedendo favores de todos os tipos e espécie: uma alusão aos nossos políticos e figurões.
Para FARHAT (1968, p. 211), o problema se situa na união entre ‘nacionalismo’ com o fascismo, com o marxismo e o socialismo verde-amarelo. Às vezes o imbróglio junta até liberais e social-democratas, quando se trata de um projeto de lei. Com a democratização do país pós-Vargas, de 1955 a 1964, os comunistas tiveram acesso à cúpula das empresas estatais de então sendo um período em que “demonstraram à saciedade que defendem a estatização não apenas como ponto de vista ideológico, mas como um ESTRATEGEMA DE GUERRA, de ocupação de posições poderosas, quase todas, daí por diante, fortificadas pelo cimento emburrecedor do mito da ‘intocabilidade’.
Levados no ventre de certos candidatos presidenciais, com os quais barganharam o toma-lá-dá-cá dos irmãos-em-oportunismo, os comunistas penetraram nas diferentes cidadelas-industriais do Estado – Petrobras, SUDENE, BNDE, Cia. Siderúrgica Nacional, Leopoldina, Lloyd, Costeira, Correios e Telégrafos, Álcalis, etc, e se atiraram sobre todos os CARGOS ESTRATÉGICOS DE DIREÇÃO E CHEFIA, deslocando pelo terror e pela calúnia os seus antigos e apavorados ocupantes. Em cada uma dessas empresas, eles atacavam conjugando as manhas aprendidas em decênios de lutas diferentes em ambientes diversos; atacavam como formigas, na sua tática de infiltração por inclusão ou rastejamento, vindos por todos os canais, por baixo e por cima, pelos lados e pelos cantos, insinuando-se em fila indiana, ou espalhando-se em aterrorizadora correição...
Finalmente, os comunistas são pela criação e proliferação infinita de empresas estatais, mesmo nos regimes políticos a eles ferrenhamente adversos, MESMO QUE ELAS TEMPORARIAMENTE NÃO LHES CAIAM NAS MÃOS; pois sabem o quanto a estatização de cada setor da economia de um país livre representa para sua sempre sonhada, acalentada e inarredável estratégia da ‘marcha para o pior’, tão necessária ao clima político-social que é mais propício à sua expansão.
O essencial – anseiam eles – é que a gangrena comece em algum ponto do organismo da Nação; não importa onde, nem como. Quando o Estado, ainda que por obra de ingênuos políticos ou burocratas idealistas, coloca sua mão-seca de empresário inapelavelmente frustrado sobre um setor qualquer da economia nacional, os teoristas vermelhos sabem de antemão o que aí acontecerá mais hoje, mais amanhã: o ingurgitamento do empreguismo; a apoplexia do sinecurismo; o dilúvio do papelismo; a maratona de favores entre o “coitadismo”, o “concessionismo” e o protecionismo; as gordas enxurradas do desperdício; a ataraxia da inaptidão, da lerdeza, do boa-vidismo. E, um dia, afinal, o alijamento dos tímidos e matematicamente fracassados idealistas pelos técnicos do calculismo vermelho ou pelos serviçais das ‘linhas-auxiliares’
Como acentua o economista Roberto Campos, uma das características básicas do Estatismo é a “falta de sanção”. Disto resulta o “habeas corpus” da impunidade absoluta de que se valem todos os “istas” que frequentemente se dão as mãos nos corredores das empresas estatais – para levá-las a total ineficiência ou completa dilapidação. Essa “falta de sanção”... tem sido o convite ao cinismo desabusado, praticado sob o pálio verde-amarelo da “intocabilidade” e do “nacionalismo” (FARHAT, 1968, p. 212-213).
E Emil FARHAT desfila uma amostra do caos estatal dos anos 60, com os portuários recebendo nada menos que “56 vantagens extra-adicionais!”. Ou o caso da Petrobras, que desde essa época paga gratificação de ‘periculosidade’ distribuída ‘até para os funcionários instalados no escritório central situado em plena Av. Presidente Vargas no Rio e no próprio escritório em Nova York” . O mesmo acontecia com os funcionários da Rede Ferroviária Federal mesmo trabalhando nos escritórios da Cidade Maravilhosa. “Aliás, ainda a propósito da Rede, é curioso salientar que aquilo que antigos empresários particulares puniam com advertência ou suspensão – chegar o trem atrasado – tornou-se na rendosa indústria das ‘horas extraordinárias’ de ‘trabalho’, razão por que em todas as ferrovias da Rede ‘nacionalizada’ os comboios já partiam atrasados, desde sua estação inicial....” (FARHAT, 1968, p. 213-214).
Ninguém nunca pensou em somar ao já cosmogônico ‘déficit’ das autarquias industriais o que elas DEIXAM DE PAGAR DE IMPOSTO DE RENDA. Se, nessas áreas, ao invés das perdulárias empresas-manicômios ‘administradas’ pelo Estado, estivessem atuando eficientes empresas particulares, não só o país não sofreria sangrias, empobrecedores prejuízos como, pelo contrário, receberia receitas formidáveis de impostos, principalmente o de renda.
Muitos dos ingênuos defensores da estatização não atentaram para esse duplo aspecto da brutal sangradura com que essas empresas-chupins, as autarquias industriais, haraquirizam o corpo da Nação: além da dilapidação pelos prejuízos, NÃO PAGAM IMPOSTO DE RENDA, por causa mesmo desses prejuízos; mas, se não os apresentassem, também não os pagariam, protegidas que são quase todas pelas ISENÇÕES DE IMPOSTOS com que, de antemão, o legislador ou o governo procuraram acobertar a sua matematicamente infalível incapacidade administrativa...
Houve até um deputado federal que, no ano da graça de 1963, levando ao paroxismo o truque da ‘intocabilidade’, apresentou um projeto que estendia a tal ponto a ‘proteção’ à Petrobras que isentaria de impostos e taxas ‘TODA E QUALQUER transação que fosse realizada’ POR ELA OU COM ELA; esse projeto levava os ‘direitos’ dessa empresa até o extremo de ela poder IMPORTAR O QUE QUER QUE FOSSE SEM NENHUMA FISCALIZAÇÃO NEM SATISFAÇÃO À PRÓPRIA ALFÂNDEGA FEDERAL” (FARHAT, 1967, p. 214-215).
Esse é o ponto! Aqui FARHAT chega ao âmago da questão: começando pelos comunistas, e depois pela velha esquerda, e por último a classe média – todos preferem o sistema estatal brasileiro. Este consegue satisfazer a todos: aos comunistas pela ausência de sanções, pela dispensa de competência e assim por diante; à classe média, pela estabilidade no emprego e pela ascensão baseada em ridículos planos de carreira; para os bocejantes, pela possibilidade de levar a vida fácil e aos espertalhões, pela possibilidade de gazetear à vontade com salário garantido no fim do mês.
Com essa frente única que abrange uma boa parte da brasilidade é natural que uma figura política que ofereça sinecuras estatais ao povo seja uma bomba-relógio política de alta relevância no patropi. Aliás, em seu livro de memórias, escrito entre 1995-96 (faleceu no ano 2000), FARHAT conta que quando os aliados ganharam a guerra e a democratização avançava na marra, destruindo as barreiras da ditadura do Estado Novo, com Getúlio nos últimos dias de governo, como membro da Esquerda Democrática (facção da UDN que mais tarde geraria o PSB), foi com uma delegação procurar Prestes recém saído da prisão. A ideia era criar uma unidade da oposição ao Estado Novo para o futuro da abertura. Ao se reunir com o ‘Cavaleiro da Esperança’, FARHAT ficou perplexo ao ver Prestes falando em apoiar a ‘Constituinte com Getúlio’, uma proposta dos comunistas que era – na opinião dele – completamente incabível para a conjuntura. Ao pedir a palavra para manifestar seu estranhamento pela posição de Prestes, argumentando que o líder comunista não podia moralmente apoiar um ditador que não só lhe tinha preso e torturado por quase 10 anos, como enviado sua mulher grávida para os campos de concentração nazista, Prestes lhe interrompeu agressivamente com um ‘cale-se, você não tem nada a ver com isso’. Tentou falar mais duas vezes e foi novamente hostilizado por Prestes a ponto de ter de efetivamente deixar seus colegas levar a proposta da nova Constituinte sozinhos ao líder comunista. É que FARHAT não percebera que os comunistas estavam todos empregados na máquina estatal criada por Getúlio, a mesma máquina cujos desatinos estão narrados na seção DNABrasil sob o título ‘O Desperdício do Capital Social’.
Felizmente os militares derrubaram Getúlio poucos dias depois, convocando as eleições que elegeram Dutra com apoio dos comunistas contra Eduardo Gomes, o candidato anti-Getúlio. A máquina estatal já estava pronta para dar ao país o resultado de seu retumbante fracasso.
A confusão entre estatismo e o bem do Estado, o bem público, é a tese em que FARHAT se propõe a demonstrar como um axioma matemático: “o estado não é essa coisa vaga, ideal, abstrata, como aparece na imaginação de muitos, mas sim uma coisa muito palpável, que é o grupo político ou partidário que está no poder” (p. 220).
É incrível como, no Brasil, políticos e partidos bem intencionados sempre votaram quase abulicamente todas as leis que criavam ou ampliavam autarquias industriais do Estado. Amedrontados por palavras e por preconceitos, eles não viam que isto era ampliar ao infinito os poleiros eleitorais de um bandoleirismo partidário que, sem nenhum pejo ou escrúpulo, considerava a Nação sua fazenda, e essas empresas os seus currais e galinheiros, onde cevavam seu gado de pelo e pena, para os rega-bofes de boca de urna, que os eternizavam no poder.
E quando os tartufos ‘modestamente’ imaginavam mais uma empresa, para dar vazão às suas necessidades de empreguismo correligionário a granel, os ingênuos retrucavam com ainda maior arroubo ‘progressista’, oferecendo logo o galinheiro de inacabáveis poleiros, de um novo monopólio estatal...
Cegamente, os bisonhos políticos liberais não viam que o grupo estatista-empreguista queria apenas assegurar para si e para os seus a facilidade de ‘dispor’ de mais uma empresa ‘do Estado’, queria a facilidade, que ela sempre assegurava, de seus rebentos e protegidos, correligionários e ‘peixinhos’, nela poder entrar, MESMO SEM COMPETÊNCIA, e nela poder subir, MESMO SEM MERECIMENTO.
Aliás, não há mais político-empreguista pelo Brasil afora que ainda não tenha entrevisto a imensa prestimosidade eleitoreira de uma empresa estatal, por modesta que seja... Já de há muito, certos vivazes assessores palacianos pressentiram existir um inédito e importante ‘fator de produtividade’ a buscar nessas organizações: a sua alta rentabilidade de empregos a serem distribuídos e de cabos-eleitorais a serem atendidos” (FARHAT, 1968, p. 221-222).
Reitero ao leitor que essas observações são de 1967. Com as privatizações no governo FHC, boa parte do descalabro foi eliminado, especialmente no setor siderúrgico e de telecomunicações, passando os entes estatais privatizados a dar recursos à Nação, de cuja estabilidade proporcionou a ascensão da demagogia populista dos últimos anos. Agora, começa a voltar a ressurreição dos cadáveres daquela época, como a recente recriação da Telebrás, consubstanciada em empreendedorismo de um governo sindicalista que vai na direção da mesma tragédia, e confirma o que Emil FARHAT enfatiza com sua lucidez cristalina: o estatismo é uma aliança entre correntes políticas divergentes para uma mesma finalidade política, e neste balaio de gatos não por acaso estão empresas inspiradas na estreiteza estratégica dos antigos comandantes militares junto aos sindicalistas do século XXI.
Para FARHAT, o estatismo deve ser analisado como um fenômeno só: do nazismo ao comunismo, da pseudo-democracia ao subdesenvolvimento social. E modernamente até como um esbulho da religião, como no caso das teocracias islâmicas. Em plena guerra fria, ele apresenta o contraste entre as economias do leste europeu e as do oeste, as diferenças sociais e culturais, a opressão humana na negação da liberdade de empreender, de manifestar um pensamento fora do âmbito oficial, as diferenças no nível de vida. E não deixa de manifestar sua perplexidade com a questão do petróleo no Brasil:
A Petrobras informava, retardatariamente, em 1964, que, valendo-se de todas as suas facilidades e das verbas imensas de que dispunha, e ainda dos seus (então) 30 mil funcionários, havia atingido a ‘performance’ total de 441 poços perfurados nos anos de 1961 a 1962; isto quando indivíduos e empresas particulares ‘atiçados pela ambição’ perfuravam no mesmo período 1.033 poços na Venezuela, 4.450 no Canadá e ‘apenas’ 90.000 nos EUA.
Na própria Argentina, após quase 50 anos de monopólio estatal do petróleo (YAPF), fora finalmente admitida a associação de empresas privadas, tendo sido perfurados, de imediato, no período 1961-1962 (governo Frondizi) nada menos que 2.906 poços. Isto bastou para tornar o país autossuficiente, e até exportador (para o Brasil) de gasolina e gás butano... ...Aliás, o Brasil, apesar de ter supostamente “um sexto das prováveis reservas mundiais de petróleo’, também é ‘beneficiado’ há quase 3 décadas (desde a fundação do Cons. Nac. do Petróleo) pelo mesmo raciocínio de antimatemática financeira, no que diz respeito à exploração do nosso subsolo eventualmente petrolífero.
Estabeleceu-se aqui o monopólio estatal do petróleo para impedir que estrangeiros, tirando-o do subsolo brasileiro, tivessem lucros que poderiam ser ‘nossos’. Ora, pelo VOLUME ATUAL (1967) das nossas compras forçadas de petróleo ao exterior, as companhias alienígenas que aqui extraíssem essas quantidades dos campos locais, e as entregassem ao consumo interno, estariam, pelo montante das vendas, obtendo um lucro líquido máximo de 8 a 15 milhões de dólares – quantia que certamente remeteriam para fora, se aqui não precisassem reinvestir nada. O RESTO, porém, FICARIA NO BRASIL, sob a forma de ‘royalties’ ao governo brasileiro (como na Argentina e Venezuela), de outros impostos inclusive o de renda, ou de taxas assistenciais, ou em salários ou em compras de material de toda natureza necessário para escritórios e armazéns, ou ainda em alugueis, etc.
Resultado objetivo, no presente, da ‘matemática’ antibrasileira do ‘raciocínio nacionalisteiro: para impedir que os ‘imperialistas’ viessem a remeter de 8 a 15 milhões de dólares em lucros do seu negócio brasileiro de petróleo, estávamos enviando, anualmente, em escala crescente, para os mesmíssimos ‘imperialistas’, 250, 300 e dentro em pouco, 500 ou 600 milhões de dólares para comprar petróleo dos seus negócios kuwaitianos, iemenitas ou venezuelanos... Isto é, o Brasil, estava pagando TUDO, os lucros e as despesas operacionais, que os ‘imperialistas’ eram forçados a fazer nos países de onde extraíam o petróleo que nos vendiam...
... Graças a Deus, impulsionado pela alta octanagem da força de vontade dos brasileiros que produzem, a tendência do progresso nacional será atingir uma energia de expansão algebricamente crescente. Como será que, furando poços com horário de repartição, e tirando petróleo em colheradas, o monopólio estatal irá cumprir a sua parte, de IMPEDIR QUE O BRASIL TENHA DE MANDAR ANUALMENTE CENTENAS, cada vez mais numerosas, DE MILHÕES DE DÓLARES para comprar lá fora aquilo que, segundo os técnicos, forma oceanos intocados no subsolo nacional?
Doze anos após criado o monopólio estatal especificamente encarregado de refinar e extrair petróleo (nota: 1965), ainda estávamos produzindo apenas 35% das necessidades nacionais. Se levarmos em conta a inescondível MAIOR VELOCIDADE DO CONSUMO do que da produção, talvez ainda decorram 20 anos para atingirmos a autossuficiência. Até lá, o Brasil se terá sangrado em DEZENAS DE BILHÕES DE DÓLARES, pagando, como um caipira, no ‘embrulho’ do petróleo que nos vem de fora, também os salários, os impostos, as taxas, e os selos, os dourados ‘royalties’, as despesas todas cobradas pelos países que ‘ingenuamente’ deixam tirar o ouro negro, mas jeitosamente ‘arrancam o couro’ de quem o tira. E, dos tolos, ou coitados, que depois são forçados a comprá-lo” (FARHAT, 1968, p. 241-341).


Infelizmente, FARHAT errou na previsão da autossuficiência em 20 anos, ela só veio ocorrer em 2007, exatamente 40 anos depois da publicação do seu livro. E nada indica que, ao trocar o modelo de concessão pelo de partilha, como temos advertido à Nação, o petróleo brasileiro não entre em declínio. Relativamente ao estatismo, FARHAT (p. 245) continua sua invectiva cristalina e pedagógica:
Em qualquer setor econômico em que o Estado entre com sua mão desajeitada, ou perdulária, ou estéril – EM QUALQUER PAÍS DO MUNDO – as coisas se afrouxam, as regras se amolecem, começam os ‘jeitos’, imperam os achegos, junta-se o compadrismo, floresce o filhotismo. Seja qual for a forma sob a qual o Estado participe de uma atividade econômica, seja como industrial-monopolista, ou acionista majoritário, ou minoritário, ou simplesmente como subsidiário – logo se forma a tessitura das adiposidades burocráticas, estendem-se e enroscam-se os filamentos gordurosos de ‘vantagens’ e ‘percentagens’ que se vão generosamente desprendendo, para os que se colocam no caminho de ir e vir, do fácil dinheiro do povo...
Por que é que o Estado deveria meter-se a ‘grande realizador industrial’, a magnata do ferro e do aço, do petróleo e da eletricidade, dos álcalis, das comunicações telefônicas, telegráficas, ferroviárias e marítimas, e a ‘fabricante’ de automóveis e caminhões – se ainda não dera conta sequer nem da vulgaríssima e primordial tarefa de dar hospitais e centros de saúde, que funcionem, ofereçam cama limpa, médicos atenciosos, enfermeiros competentes e cumpridores dos mais rudimentares deveres profissionais – num país que ainda tinha 20 milhões de opilados, 11 milhões de papeiros (bacíferos), 3 milhões de chagásicos, 4 milhões de esquistossomáticos e 50 milhões de portadores de helmintose, como em julho de 1964 fora corajosamente proclamado pelo então ministro da Saúde, prof. Raimundo de Brito.
Diante da batalha acirrada que se trava entre estatistas e defensores da liberdade de iniciativa do cidadão, há os que indagam perplexos: mas, afinal, que deve o Estado fazer? Que é legítimo e NATURAL, ou LÓGICO, que ele faça na vida do país?...
Mas se atentarmos para as imensas tarefas que cabe ao Estado, ao governo executar – mesmo aos governos sem a preocupação da estatização eleitoreira ou socialisteira – veremos que se trata de uma tremenda carga de ônus, cujo atendimento exige devoção total dos executivos e fertilíssima imaginação administrativa e criadora... pois, além daquilo que é hoje a mais vital e sacrossanta função do Estado – atender os problemas da Educação em todos os graus – ele tem pela frente as tarefas de cuidar e prover: saúde pública, segurança interna e externa, códigos e leis que regulem a vida econômico-social, justiça de todos os graus e tipos, estradas e vias fluviais, portos, correios, finanças e recenseamentos nacionais, urbanismo, defesa florestal, trânsito, acumulação e depósitos de água doce, poluição da atmosfera e dos rios, prevenção e assistência contra as hecatombes, assistência social à invalidez, ao desemprego e à velhice. E isto sem incluir os programas nacionais de habitação para as classes menos favorecidas... Como se vê, encargos que, por si sós, bastam para esgotar a capacidade e a dedicação de quaisquer gigantes que atinjam o poder com a mais alentadora vocação do bem público” (FARHAT, 1968, p. 254 – 255)

Os marxistas sebentos e os ricos fedorentos

É o capítulo em que se lê alternando entre a gargalhada espiralada e a perplexidade de alta suspensão superciliosa. A verve panfletária de FARHAT um dia ainda fará história, se neste dia o país ajustar as contas com seu passado. Com este tipo de retórica a editora Companhia Editora Nacional cravou na contra-capa em letras garrafais: “um livro para ser lido em voz alta pelo Brasil inteiro”:
Os ricos fedorentos são um grupo poderoso, mas cada vez mais reduzido na arejada sociedade moderna; são as últimas perpétuas-fétidas de um buquê de hienas humanas já atirado à vala comum da História. Eles herdaram todos os aleijões do feudalismo; com a boca torta dos vícios do velho capitalismo e a fuça dentuça da sua cupidez egoística, esses malcheirosos empatacados constituem o restolho de horrores de que ainda vivem os saltimbancos comunistas e seus variados amarra-cachorros, são o Belzebu de ouro e azinhavre que os insinuantes doutrinadores vermelhos, em suas cátedras de livrinhos-de-bolso utilizam como burrinhas-de-padre para espantar gerações ingênuas de suaves idealistas, e até para amedrontar curas e outros homens piedosos.
Por causa da existência desses brontossauros remanescentes de um capitalismo retrógrado: que são contrários a livre concorrência; que querem lucros acima da razoabilidade dos seus investimentos; que consideram os impostos uma violentação da sua oportunidade de amealhar mais proventos; que ludibriam a Nação financiando leis e campanhas contra o capital de outras origens que venha ameaçar a sua posse mansa e tranquila de donatários da capitania do mercado brasileiro; que levantam em torno de suas empresas as ameias dos exclusivos interesses familiares; que só fazem empreendimentos que deem dividendos em dinheiro e nenhuma gratidão; por causa deles é que os comunistas, como Galileus do retrocesso humano, insistem em proclamar a única verdade que lhes resta do que diziam do capitalismo: ‘Vejam: eles, os monstros, continuam se movendo’. – E os usam como justificativa de sua luta contra a liberdade de progredir, contra a liberdade de prosperar, contra a liberdade de produzir, que permitem a cada cidadão capaz ampliar os meios e as condições de seu bem-estar, e também enriquecer a comunidade em que vive.
Agarrados nesses chimpanzés, puxando-os pelo focinho ou pela cauda, os comunistas e seus serviçais passeiam pelo país afora a sua teoria carrapaticida de eliminação total do sistema que dá ensejo à existência também desses engordados chupins do regime capitalista.
Muita gente fica, por isto, sem compreender como em tantas ocasiões se entendem afinadamente, dão-se as mãos, oculta ou até abertamente, os comunistas e os tipos de capitalista que exatamente eles caricaturam. Como todos os sócios eventuais de qualquer trama diabólica, eles se ajudam mas se odeiam, porque cada um sempre receia que o outro o atraiçoe – como já é parte da própria história contemporânea.
Não lhes vendo as caudas entrelaçadas por baixo da mesa, muitos bisonhos espectadores da pantomima não entendem a aparente contradição de certos ricaços e riquíssimos mastodontes que deram, e continuarão dando, certamente, ainda, dinheiro grosso aos comunistas e ‘nacionalistas’ para suas campanhas. Ao fazer isto, esses nababos fedorentos estão apenas seguindo uma linha de sua ‘política econômica’ de, desleal e impatrioticamente, fechar-a-raia para o surgimento de outros empresários ou empresas, mais atilados e modernos, mais bem equipados e decididos, mais ágeis e evoluídos e de avançada compreensão quanto à FUNÇÃO SOCIAL DO LUCRO.
Para não ter de reorganizar, redistribuir e reestudar continuamente seu negócio ou indústria, para não ter de cansar-se na mesma luta de estar sempre batalhando para a conquista ou manutenção do mercado que, por esperto açambarcamento ou ‘altas conivências’, JÁ ERA SEU, o capitalista-feudal ia e vai até benzer-se com os pais-de-santo comunistas. Estes, em troca de seu apoio a oferendas, lha dão o jocoso diploma onde, de cabeça para baixo, vem a palavra favo-de-mel – PROGRESSISTA. E asseguram então, ao seu sócio de circunstância, alma e entusiasmo ‘os mais puros’, na luta comum pela ‘libertação nacional’, pela elaboração de mais leis espanta-gringo, e pela criação de dificuldades a todos que ameacem a hegemonia daquele donatário-de-capitania nesse ou naquele ramo de negócio.
No fogo de barragem ‘nacionalista’ que lançam para proteger o seu aparentemente esdrúxulo associado, os comunistas estão mais uma vez e sempre apenas cumprindo novos ângulos da sua inarredável e implacável lei de guerra: ‘Quanto pior, melhor’. Pois eles sabem muito bem o quanto ajuda suas tão acalentadas ‘condições revolucionárias’ que haja só um produtor de alumínio, só um fornecedor nacional de zinco, só um grande comprador-exportador de café, só um produtor de determinada fibra sintética ou tecido, ou só um produtor de vidro plano. Eles sabem muito bem que qualquer monopólio, público ou privado, de qualquer natureza, ainda que de formicida ou pó mata-rato, é prejudicial à economia de um país e à sua salubridade social.
Mas, o espantoso não é que, a esta altura da evolução política dos povos, os comunistas usem esses bodes e essas táticas, que certamente continuarão a usar também lá pelas alturas de 1980 ou no ano 2000 – pois até lá, mesmo com o inevitável desaparecimento do sistema, existirão os comunistas por sebastianismo como ainda há florianistas por aqui, e os bonapartistas na França. O espantoso não é que os vermelhos usem essas excrescências do egoísmo pretendendo apontá-las como flores e frutos inerentes e exclusivos das condições do capitalismo.
O espantoso é que homens de inteligência, de idealismo e piedade se postem ridiculamente no papel de seus caudatários, seus afluentes, sacristãos ou filósofos-de-reboque e insistam, com o automatismo inerme de uma câmara de eco, que a nuvem é mesmo Juno.
É impressionante que Emil FARHAT tenha previsto o fim do comunismo soviético. Sua intuição estava fundamentada na convicção de que o avanço da ciência e tecnologia era privilégio de uma sociedade competitiva que tinha conseguido resolver o problema da educação e com isso priorizar a pesquisa científica como motor da evolução econômica. E prossegue seu manifesto atacando o egoísmo humano:
Como se não houvesse egoístas, e dos piores, em todas as classes sociais, em todas as condições humanas, entre todos os partidários de qualquer sistema econômico ou filosofia. Não é intransferível privilégio da riqueza gerá-los em seus berços de ouro. Como também o opróbrio da miséria não é partejá-los em suas enxergas. O egoísta é erva daninha que ostenta sua ressequida e contorcida esterilidade em todas as latitudes sociais.
Há, sim, ricos que, por seu egoísmo ou por seu amoralismo, não merecem nem a raspa da cuia de feijão de um mendigo. Mas a existência de meia dúzia desses dromedários empatacados não pode ser justificativa para condenar-se uma nação inteira ao nivelamento pelos padrões rasteiros da miséria e a jungi-la à canga anti-humana de uma ditadura marxista ainda que travestida sob o rótulo engana-bispo de ‘democracia popular’....
Egoísta é aquele que julga que a sociedade deve apreciar e valorizar suas qualidades, ainda que não se tenha desdobrado em algo que as demonstre; ou os que recebem dos dinheiros do povo sem cumprir seus deveres para com ele. Egoístas são também aqueles que se encostam em sinecuras, onde nada executam, nada fazem, nada produzem senão o tricô de intrigas dos corações vazios, e onde nada deixam senão o exemplo de suas vidas parasitárias. O egoísmo não tem sua morada apenas nos gordurosos e soturnos corações dos forretas fanatizados pela posse do ouro e do azinhavre. Ele também se acama e se derrama nos canteiros da inércia e da preguiça, onde brotam e florescem todos os úmidos cogumelos do parasitismo, flor típica das bolorentas estufas do Estado.
É preciso que as piedosas marias-vão-com-as-outras, que os comunistas encantaram com a sua bruxaria palavrosa e seus sofismas diabólicos, se lembrem de que, tanto quanto a avareza, A PREGUIÇA É TAMBÉM UM PECADO MORTAL. Por que dar a hóstia da impunidade aos milhares de espertinhos nacional-sinecuristas, que assinam o ponto nos locais de ‘trabalho’ e só voltam para receber no fim do mês, e condenar apenas o bode onzenário, cuja pátria é a sua burra e cujo ‘povo’ são apenas os que vivem da sua sala à sua cozinha?
Opondo o lugar comum das palavras de ordem ‘o mundo marcha para o socialismo’ com a sua convicção de que ‘o mundo marcha para a socialização do consumo’, FARHAT previu que o consumo seria a grande pressão das massas na sociedade tecnológica que se fortalecia como fator indeclinável do pós-guerra. Baseando-se na notícia do colapso dos bens de consumo existentes na União Soviética de então, ele examina as contradições do modo de produção estatal para enfatizar a agonia do modelo.
E depois vai desmanchando os argumentos com que a esquerda em geral se agarra para prometer a satisfação das necessidades humanas no socialismo ao maior número de pessoas possíveis. Mostrando que o novo capitalismo democratizado – o capitalismo avançado – era a fórmula que criava o maior bem-estar social comprovadamente onde tivesse prosperado, em oposição ao modelo estatizante já moribundo, FARHAT demonstra que a prosperidade não é uma questão de conceitos, mas de fatos, de experiência humana, de realização concreta da sociedade quando os valores são o do mérito e do preparo intelectual, completamente deturpados no estatismo do socialismo real.
Mas não aborda uma questão colocada na atualidade: a resiliência do socialismo depois de sua queda. Evidentemente que nos países desenvolvidos ele só renascerá das cinzas de uma crise generalizada. Mas entre nós, pobres emergentes tracionados pela Ásia, podemos conjeturar que são múltiplas: a) um ‘encosto’ para os menos dotados. Trata-se de um componente macunaímico da brasilidade que protege os preguiçosos atávicos, os marcha-lenta da inteligência. b) um sistema de suborno material e moral do Estado, qualificando os piores tipos para os melhores cargos. O suborno material pelas mordomias. O suborno moral pela atmosfera de venalidades corriqueiras que cerca as instituições. O iniciante vai sopesando as conveniências do cargo com os horrores do ambiente e se acomodando em um niilismo embrutecedor. c) Stultorum numerus infinitum est. Não fosse a superficialidade do materialismo dialético, da estrutura de classes da sociedade, do determinismo histórico, e mais meia dúzia de engole-engole de subsumir certas platitudes como “leis sociais”, o marxismo terceiro-mundista não teria tanto êxito. d) as facilidades do capitalismo com o capital alheio: é a melhor e mais promissora forma de emprego de capital. Não há risco, não há sanções, não há fracasso. O contrário causa horror e um alarido esbravejador: a privatização de entes estatais, a lógica da eficiência, o mérito ao mais hábil e perspicaz. Depois basta fazer de conta que não se sabe de nada e deixar os mutuários chupando o dedo, como o caso Bancoop. e) Coroando todo o processo, o reforço da ideologia desculpatória, do vitimismo persecutório, do coitadismo e de uma espécie de autocomplacência que os “explorados” nutrem por si mesmos. Aqui o primitivismo idealista dá as mãos ao romantismo juvenil arregimentado nas ideologias pega-mosca dos bancos universitários.

As ‘crises nacionais’ e a indecisão pendular das lideranças

No Brasil não existe nenhum funcionário conhecido, de nenhum escalão federal ou estadual que tenha renunciado ao seu posto em protesto contra uma atitude de governo, como fez Octavio Paz no México em 1968, a propósito do massacre da Plaza Tlateloco em que morreram 50 estudantes durante as manifestações políticas da época. A polícia abriu fogo contra os manifestantes, ocasionando um enorme rebuliço político. Inconformado com a atitude do Estado, Octavio Paz, então um embaixador de carreira, renunciou ao posto e nunca mais voltou ao serviço público.
FARHAT inicia este capítulo com reminiscências do golpe de 37 que entronizou o Estado Novo no Brasil. Dias antes, José Américo de Almeida, o autor de A Bagaceira, fazia comício em Niterói onde aplaudido pela multidão já antevia a presidência da república em suas mãos. Emil FARHAT foi um dos oradores do evento, e o fato de José Américo sucumbir à ditadura, aceitando o cargo de Ministro do Tribunal de Contas da União pouco tempo depois, foi para FARHAT o ato mais decepcionante de sua curta vida política. José Américo fazendo o papel de Judas, de joaquim-silvério-ambulante, de traição às aspirações nacionais e de abandono de toda a resistência com o gesto que congelou a “ebulição de todas as rebeldias que ferviam Brasil afora; imobilizou os braços que se levantavam e os punhos que reagiriam; fulminou as esperanças, estancou as torrentes subterrâneas; desorientou as vozes que liderariam nas reuniões secretas ou articulariam nas conspirações” (FARHAT, 1968, p. 294).
A juventude brasileira, civil e militar, que, através das incandescentes pregações do líder valoroso, já se havia aquecido até o paroxismo do mais vibrante entusiasmo e disposição para a grande arrancada recuperadora e regeneradora, sentiu-se tomada de um verdadeiro complexo de castração cívica, como se com aquilo e diante daquilo terminasse os seus dias viris e sua exuberância humana – e isolada em desorientação e desespero, começou até a descrer que houvesse heróis em nossa História, ou até mesmo a própria História...
Aconteceu então que, empurrado pelo confusionismo de amigos fardados – talvez muito mais tocados de sentimentos de piedade do que por cálculos táticos – José Américo, afogando-se numa poltrona burocrática, pareceu à Nação inteira, já mergulhada na semi-escuridão da ditadura, um boneco sem alma nem crença, sem firmeza nem senso, sem moral nem grandeza. Exatamente o oposto de tudo aquilo que sempre fora, e que precisaria TER MOSTRADO QUE CONTINUAVA SENDO (FARHAT, 1968, p. 295).

Uma cooptação vergonhosa acaba com as esperanças dos “jovens estudantes, os trabalhadores, os negociantes, fazendeiros e industriais, os profissionais liberais e os outros distantes escalões militares e civis – aquele povo inteiro que ainda não encontrara seu líder, vir desaparecer melancolicamente, prosaicamente, conformadamente, sob a pilha de papéis burocráticos, o homem que deveria ter ido, de ‘peixeira’ entre os dentes, para os subterrâneos e as cavernas do ‘undergound’, para cavar as trincheiras da liberdade e a catacumba da ditadura.... o MINISTRO José Américo participava, com aquele cargo, do ‘governo’ e do regime que usurparam de modo tão torpe as liberdades e as esperanças de todos.... Aqueles quase dez anos palustres, abafadiços, rasteiros e irrespiráveis do ‘Estado Novo’, em que o Brasil se tornou uma nação vegetal, uma charneca humana, onde só os cogumelos alteavam a cabeça oca, fofa e pastosa, criaram para os náufragos da liberdade um negrume total de naufrágio noturno: não havia luzes guiadoras nem firmes esperanças a que se agarrar. Prostrado, o povo civil não reagia; vendo isto, os militares se conformaram. E ele próprio, José Américo, pelo seu contínuo silêncio disciplinar, sem tentativas, sem gestos, nem rebeldias, deixava sem motivação e sem vida aqueles fantasmas cívicos dos que outrora o seguiriam” (FARHAT, 1968, p. 296).
José Américo só viria a romper o mutismo em entrevista ao então repórter Carlos Lacerda 10 anos depois. O caráter ziguezagueante dos nossos políticos, a ‘indecisão pendular’ é atribuída por Emil FARHAT ao caráter bacharelesco de nossos mandatários. Guindados à administração, quase nada sabem de gestão. Envolvidos no torvelinho da política, optam pelo ‘neutralismo’. Para o político médio governar significa “uma contínua operação ‘deixa-disso’, em que a Nação, por mais que cresçam seus problemas, deve, afrouxadamente, sempre estar cedendo, sempre condescendendo com os relapsos e incapazes, e sendo generosa com os preguiçosos e viciosos, e cheia de recompensas para aqueles ‘coitados’ que nada fizeram nem querem fazer. Sua obsessão político-eleitoral é APOSENTAR. Aposentar todos os trabalhadores, antes mesmo de saírem para seu primeiro emprego... A sua recôndita e simplista filosofia ‘humanista’ é a de que, aqueles que não têm capacidade ou vontade de produzir coisa nenhuma, são por antecipação ‘espoliados’ por aqueles outros que inventam máquinas e técnicas, desenvolvem métodos e processos e organizam empresas para as criarem e produzirem... O Brasil veio sofrendo, ao longo das décadas de 30, 40, 50 e 60, da falta de densidade, ora mental, ora moral, da maioria dos pretensos líderes partidários... (FARHAT, 1968, p. 302)
Esta asfixia espiritual contaminava todos os partidos, todas as lideranças, criando a indecisão pendular característica da política brasileira. Emil FARHAT descreve o partido socialista e sua obsessão em antes de agir ‘saber o que pensariam os comunistas’. A UDN, formada pelos ideais da classe média, totalmente desfigurada de ideais. O trabalhismo brasileiro, sem o idealismo de Fernando Ferrari e Alberto Pasqualini. A democracia-cristã acendendo uma vela a Deus e outra ao diabo era a figura do adesismo.
Uma grande dose da descrença popular na integridade dos partidos, e na do próprio Congresso, vinha da complacência com o bifrontismo e com a duplicidade, e da falta de sanção e penalidade para o vira-folhismo” (p. 308).
Para não ousar perigosamente, para não ter de decidir ou optar, enrodilhavam-se em razões, leis, regulamentos, obrigações, consensos; embarafustavam pelo Dédalo de mil opiniões contraditórias e esticavam ao infinito os motivos para a indecisão, para a procrastinação de qualquer solução corajosa dos problemas (p. 309).
A obstinada e exclusiva preocupação da sobrevivência tem sido a principal força que comanda o vaivém pendular dos políticos sem bagagem nem coragem. Prisioneiros do seu meio, escravos da multidão, obcecados pela aritmética das urnas e pela contagem dos aplausos, eles se tornam presas fáceis das flutuações da opinião pública, espontâneas ou forjadas. E, diante dos nevoeiros, não tendo luzes próprias, caminham desarvorados como fantasmas, tentando apalpar o pulso do povaréu, em busca da rota que todos estiverem seguindo.... (p. 310)
A incapacidade do chamado ‘bacharelismo’ para a visualização das coisas concretas, e sobretudo o seu permanente temor em quebrar o equilíbrio de forças e ferir a imutabilidade da paisagem humana e social, se entremostram repetidos melancolicamente ao longo de nossa História. Somente a enfadonha sucessão desses búdicos e cautelosos cultores do imobilismo é que explica em nossa vida pública a prolongada sobrevivência de males, erros ou situações intoleráveis – como, por exemplo, a escravatura – só resolvida praticamente pela incontível violência da crise ou pelo apodrecimento dos grupamentos ou reações a ela contrários (FARHAT, 1968, p. 312-313).
Temos algumas lições a tirar dessas observações dos anos 60? Considere a transposição do São Francisco, um projeto acalentado desde o Império em que o atual governo (representado por um nordestino que se gaba de seus 80% de popularidade) se acovardou por causa de um bispo e meia dúzia de esbravejadores. E assim podemos desfilar projetos, estratégias de desenvolvimento, todas esquecidas na poeira dos escaninhos, na escuridão dos arquivos. A ‘indecisão pendular’ faz parte da nossa constituição como sistema político. O político indeciso não consegue se mover quando se colocam os interesses da Nação: tudo se procrastina. Se não há lucros concretos de seus agentes envolvidos na definição de metas, então as ideias se decantam no lodo do tempo. Mas quando os interesses patrimonialistas entram em ação tudo se move rápida e celeremente. Então os papeis andam, os carimbos ribombam nos ares, as assinaturas garatujam pomposamente os processos, as ordens perfilam a máquina burocrática com indisfarçável fluidez e cobrança do suborno em ação na apropriação do capital social.
O flagelo da seca do nordeste já era laconicamente apontado por FARHAT:
O primeiro que procurou uma solução mais sistematizada do problema foi o grande homem público que se chamou Epitácio Pessoa. O governo Epitácio concentrou o que parecia ser o melhor de suas forças administrativas na construção de numerosos pequenos açudes. Mas um deles, o de Orós, era gigantesco e, não tendo sido completado no período do presidente que o iniciou (1922) caiu também sob as consequências da falta de continuidade administrativa, tão característica das coisas governamentais – e só veio a ser terminado 40 anos depois, em 1960 ... com um espetacular rompimento de sua barragem, que estava em vias de conclusão...
Ainda aí, infiltrada nessa boa vontade que tentava resolver em ritmo de cágado o problema das secas, aparece também a indecisão pendular, o receio de enfrentar frontalmente a consequência mais imediata da açudagem: os problemas político-sociais do SEU APROVEITAMENTO POR TODA A COMUNIDADE. Nunca se decidiu de que maneira – ou nunca se executou a decisão do modo por que – as populações regionais, e não apenas os proprietários das terras ribeirinhas, tirariam proveito das massas d’água acumuladas mediante aqueles imensos gastos públicos. Ficaram adiadas indefinidamente as redes de canais que poderiam levar as águas dominadas a ter a utilidade primacial que delas se buscava: a irrigação das centenas de milhares de propriedades que esperavam o seu benefício.
Em entrevista concedida a vários jornais e publicada no ‘Diário de Notícias’ do Rio em julho de 1964, o ministro Marechal Juarez Távora confirmava e lamentava: ‘Orós tem 2,3 bilhões de metros cúbicos represados, mas sem qualquer vantagem para a região, pois até hoje não há um palmo verde de irrigação, nem 1 kw de instalação e nada se produz lá’.
Essa maneira de fazer a meio, de adiar a solução final dos problemas, de continuamente contornar as conveniências do ‘status quo’, tornou os açudes nordestinos muito mais um embelezamento da paisagem do que uma correlação da economia; dir-se-ia uma açudagem literária, feita para atender às vigorosas e emocionantes mensagens dos escritores da região que, com a maravilhosa carpintaria das suas páginas candentes, conseguiram por diante dos olhos e do coração do Brasil, num palco, único, o drama da terra comburida pelas secas e o das almas ressequidas pela miséria e pela secular desassistência.
Os sintomas mais característicos do ‘bacharelismo’ – a falta de objetividade e o imobilismo búdico – depois de tantas décadas, vindos das estufas veludosas do Império e cultivados nas prateleiras da República, contagiaram o corpo administrativo do Brasil, dando uma ‘fisionomia profissional’ única aos homens de governo em todos os escalões do poder: presidentes, ministros, governadores, prefeitos. Todos tinham a mesma inerte postura, a mesma prudência de ‘não fazer nada’, não tocar na caixa de marimbondos da cobrança EFICIENTE dos impostos, não brincar com o fogo das inovações incômodas e revolucionárias, ou cuidar apenas das fachadas sem remexer nas velharias, aleijões, imundícies ou escombros do fundo do quintal (FARHAT, 1968, p. 317-318).
A interpretação deste site, no entanto, difere da fornecida por FARHAT. Insistimos no ponto de que o subcapitalismo brasileiro é mantido pelo sistema político-burocrático para fins de drenagem de recursos permanentes da União para as oligarquias regionais. Uma inversão do colonialismo onde a metrópole determinava a direção do fluxo de capital, passa na república do semicapitalismo como uma força permanente para reivindicar recursos que só poderão chegar se os problemas FICAREM SEM SOLUÇÃO. Portanto, toda a atividade política deve ser canalizada para a escassez, para garantir a necessária intervenção das verbas, para ‘resolver os problemas’, que devem ficar ainda irresolvidos, ao menos em parte, ou até quem sabe, sabotados (rebentando a barragem) para que o problema não se solucione, e a miséria e a carência possam em novo ciclo requisitar o concurso da proteção política que novamente irá para os bolsos da canalhocracia e o problema continuar ‘impávido colosso’. INSISTIMOS NESTE PONTO: o subdesenvolvimento brasileiro é perfeitamente elaborado para não resolver os problemas e todos os políticos que saem fora do diapasão das promessas (tão necessárias em campanhas) logo são arrastados para a calúnia e ignomínia e terminam no limbo da inelegibilidade: quem não aprendeu esta lição nunca esteve na intimidade da política e não conhece o Brasil fora das cátedras, dos institutos de estudos, das bibliotecas recheadas de obras inúteis, de papagaiadas ridículas, de teorias sociológicas lamentáveis.
O colonialismo por inversão, em que as elites locais constituem uma oligarquia confiscadora dos recursos públicos de Brasília, tem se mantido estável e permanecerá como tal enquanto os fundamentos do sistema político permanecerem como tal. O nordeste tem sua história de secas no antigo Departamento Nacional de Obras contra a Seca (DNOCS), fechado por avassaladora e incontornável maré corruptora, e agora em vias de ressurreição. E a destinação dos royalties do pré-sal para estados e municípios só fará aumentar a corrupção no país e enrijecer o sistema político com um braço no cangaço e outro no voto.

As ‘chaves’ comunistas: terror intelectual e terror econômico

Neste capítulo, contando quase anedotas da vida política, FARHAT mostra como os políticos ficaram emparedados nos anos 60 com o medo atroz da pecha de ‘reacionários’, ‘vende-pátria’ e qualquer outra denominação que a emergência comunista atribuía a seus adversários. Qualquer iniciativa para resolver problemas de infra-estrutura que contasse com o capital privado, ou com empréstimos internacionais era logo forçada à desistência sob o pesaroso medo de comprometer-se com o ‘imperialismo internacional’.
O nosso último episódio de terrorismo político ocorreu em 2006, com a campanha de Alckmin andando para trás ao ser denunciadas suas intenções de privatizar a Petrobras. Em vez de enfrentar a empáfia inimiga, Alckmin recuou atemorizado, colocou um jaleco ridículo com os símbolos do BB, BR e CEF e saiu desmentindo as calúnias, como se não tivesse de fazer o contrário, isto é, acuar os adversários com o sucesso espetacular para os cofres públicos das privatizações do setor siderúrgico e das telecomunicações do governo FHC.
E às voltas com mais uma eleição (2010), novas lavas de terrorismo político serão expelidas do vulcão traiçoeiro do marxismo sebento como erupções de fumaça e cinzas prontas para embaciar a visão dos eleitores com o medo atroz da privatização, da destinação do pré-sal para fora do círculo vicioso de ‘estados e municípios’.
Por terrorismo econômico, FARHAT argumenta a equação do ‘quanto pior melhor’ da estratégia leninista de sublevação e conquista do poder. De nossa parte, não é preciso ir tão longe: a simples visão sistêmica de empreendimento estatal versus privado, ampliação da presença estatal versus particular, já é por si só suficiente para garantir uma enorme massa de miseráveis servindo uma pequena oligarquia. É o modelito do eterno subdesenvolvimento, e todo reforço estatal significa acender uma vela ao atraso.
Ethevaldo Siqueira, colunista do Estadão, faz eco hoje (junho/2010) do mesmo bordão sobre a reativação da Telebrás, ao criticar o esvaziamento da ANATEL e do Ministério das Comunicações para passar decisões dessas pastas à Casa Civil:
... Na visão do grupo petista que comanda as mudanças, quanto menor for a capacidade de atuação da Anatel, mais problemas surgirão no setor de telecomunicações. Para esse grupo, quanto pior, melhor. O que lhe interessa é exatamente isso: torpedear a agência reguladora para desmoralizar o novo modelo institucional das telecomunicações e provar à opinião pública que a privatização “fracassou e não deu certo”. E, assim, justificar o avanço do projeto estatal. (http://blogs.estadao.com.br/ethevaldo-siqueira/)
O livro de FARHAT parece velho? Não há um traço sequer na sua argumentação que possa ser dada como superado sistemicamente, o que sugere uma lei da brasilidade: “conservando-se o sistema político, todas as mazelas sociais permanecem inalteradas em uma sociedade tripartite”. Por tripartite entendemos os nossos 3 sistemas: o subcapitalismo da pobreza, o semicapitalismo do governo e o capitalismo avançado e acuado da era Lula. Porque a pobreza é chaga resultante da estatização (não só de empresas, mas dos recursos gerados pelo sistema político), do loteamento político de seus cargos, depois dos déficits crônicos com o dinheiro dos impostos fluindo para sustentar o monstro estatal encarquilhado. E este ciclo sempre se sustenta pendularmente no Brasil, cuja sociedade em que por maior que sejam as reformas, por mais avanços que se façam em um momento de crise, logo a demagogia política, o empreguismo, o eleitoralismo e o concessionismo tratarão de implementar o DESMANCHE estatista e mergulhar o país em nova fase de retrocesso: “Quando os EUA ainda nada eram, o Brasil já tinha sido o maior produtor de madeira do mundo, o maior produtor de açúcar do mundo, o maior produtor de ouro do mundo, o maior produtor de trigo das Américas, o maior produtor de borracha do mundo, o maior produtor de café do mundo” (FARHAT, 1968, p. 370).
Quase ninguém sabe que na primeira metade do século XIX a experiência tritícola do Brasil foi pioneira, adequando-se esta lavoura em diversos locais do sul e centro-oeste, sendo suas mudas exportadas para o Uruguai e Argentina, de onde o trigo passou a ser importado no século XX e o Brasil nunca mais recuperou sua autossuficiência no cultivo do trigo.

Povo burro é povo pobre

Por fim, FARHAT investe contra o grave problema educacional brasileiro: naquela época as deficiências do ensino do Brasil pareciam avassaladoras, mas como um déficit que sempre aumenta, hoje são ainda maiores. Naquela época ainda não existia uma disseminação tão grande da ‘ignorantsia’ universitária em nossas cátedras de ciências humanas, tornando estas ciências quase uma caricatura do ‘pensar marxistóide’ nacional.
A questão da educação talvez seja o ponto de concentração mais discutido por todos os brasileiros carregados de idealismo por sua pátria e de decepção pelos estragos políticos de seus representantes eleitos. É onde o bom caráter dos esperançosos se concentra em busca de saída para a ignorância ululante feita matéria prima da esperteza parasitária em frente ampla com a incompetência administrativa, o espírito de marajaismo, a tendência indeclinável ao descaso com o dinheiro público e à corrupção generalizada.
FARHAT não foi diferente. Em seu livro ‘Educação a Nova Ideologia’ (1975) tratou especificamente do tema. A crônica dos nossos desperdícios com projetos suntuosos, com mega-universidades centralizadas no lugar de cursos técnicos espalhados pelo país, com universidades quase sem alunos e com uma quantidade de professores muito acima da média dos demais países é a pedra de toque de suas análises.
Esse assunto começou a ser apresentado ao país – com mais substância argumentativa – por Rui Barbosa em 1882 (Relatório Sobre o Ensino). Desde então a Educação nunca mais saiu da consciência intelectual e dos discursos políticos, mas, ao mesmo tempo, sempre viveu no precipício da insuficiência, na vertigem da falta de verbas, na iminência de desandar morro abaixo na frouxidão do espírito austero necessário à sua eficácia.
Mark Twain (1835-1910) dizia em um de seus epigramas: ‘I have never let my schooling interfere with my education’, indicando o que talvez somente na era da Internet venha a ter pleno significado: não há mais educação possível baseada apenas nos diplomas universitários, na certificação institucional. O século XXI está aberto àqueles que acreditam em educar a si mesmos, em complementar as lacunas terríveis da escola e a permitir o crescimento pessoal a despeito dos preconceitos e da superficialidade do ensino básico. O CAPITAL HUMANO é para Emil FARHAT a riqueza mais importante da sociedade moderna, e suas frases inimitáveis são a prova contundente de sua superioridade de argumentação e tirocínio.

domingo, 20 de outubro de 2019

Temas de política externa: notas para entrevista

Fui convidado para participar de um programa gravado, com o oferecimento prévio de quatro temas principais, como abaixo relatado. Não vou, evidentemente, ler minhas notas, mas sempre tento alinhar alguns pontos de destaque, para aclarar minhas próprias ideias. Como tampouco sei se o programa será veiculado ou não, permito-me desde já deixar registrado o que mais ou menos pretendo falar a respeito dos temas indicados. Se houver outras perguntas, fica para o improviso da hora...


Temas de política externa: notas para entrevista gravada

Paulo Roberto de Almeida


Notas sumárias sobre a nova postura internacional do Brasil, por parte de um diplomata de carreira, mas que se pronuncia em sua qualidade pessoal, como professor de Economia Política dos programas de mestrado e doutorado em Direito do Uniceub.

1. Discurso do presidente Bolsonaro na ONU
O embaixador Luiz Felipe de Seixas Corrêa, duas vezes Secretário Geral do Itamaraty e sogro do atual chanceler, tem um livro precioso para se conhecer as posições do Brasil no sistema político multilateral sob a égide da Organização das Nações Unidas: é A Palavra do Brasil nas Nações Unidas, publicado em pelo menos duas edições, talvez três, livremente disponível Biblioteca Digital da Fundação Alexandre de Gusmão, que o editou. Trata-se de uma coletânea de todos os discursos pronunciados por representantes brasileiros, geralmente chanceleres, mas, nas duas últimas décadas, presidentes igualmente, a cada abertura anual dos debates na Assembleia Geral da ONU, e isto desde 1946, quanto o primeiro diplomata a se pronunciar em nome do Brasil foi o embaixador Souza Dantas, o grande salvador de vidas judias quando foi embaixador em Paris e sob a França de Vichy, sob ocupação nazista.
Acessando esse livro no site da Funag, os interessados podem verificar o teor de cada um desses discursos. Posso assegurar, contudo, que não existe qualquer outro parecido, nem próximo ou de longe, ao pronunciado pelo presidente Jair Bolsonaro em setembro passado no plenário da Assembleia Geral. Não se trata apenas do seu conteúdo, a anos-luz de distância dos discursos sóbrios lidos por todos os demais representantes brasileiros, incluindo os presidentes Lula, Dilma e Temer. Trata-se sobretudo do estilo, da maneira pela qual o presidente Bolsonaro se referiu aos temas próprios ao Brasil, mais até do que às questões propriamente internacionais, que geralmente ocupam a maior parte desses pronunciamentos.
Não existe, nem nunca existiu algo do gênero, para espanto de muitos diplomatas, brasileiros e estrangeiros, inclusive porque ele tratou de questões essencialmente internas ao Brasil. Tal verificação é fácil de fazer: basta comparar o que disse o presidente com qualquer outro dos demais 73 discursos feitos por representantes do Brasil naquele foro político internacional. Cabem dúvidas, a esse respeito, sobre como fará o embaixador Seixas Corrêa para resumir o discurso de 2019, se por acaso for preparar uma nova edição de sua excelente coletânea de pronunciamentos oficiais brasileiros. Eles sempre ficaram num tom elevado, de estilo rigorosamente protocolar, com a sobriedade que exige tal tipo de manifestação em nome do país, perante a comunidade internacional. Tais peças são dedicadas a examinar o conjunto da agenda internacional, ou pelo menos os seus mais importantes problemas, assim como a postura que o Brasil adota em relação a tais questões, cabendo muitas vezes um apelo do Brasil ao reforço da cooperação mundial para a solução dos problemas mais relevantes, em termos de paz e segurança, de desenvolvimento e combate à pobreza, de oferecimento de soluções aos desafios da comunidade internacional, como o terrorismo e o meio ambiente.
Infelizmente, não foi nada disso que se ouviu da tribuna da ONU no último mês de setembro. Começou-se por alegações duvidosas de que o governo atual tinha salvado [sic] o Brasil do “socialismo”, uma suposta ameaça que não parecia ter sido detectada por qualquer força política nos anos recentes. Seguiram-se invectivas contra líderes e personalidades de outros países, sem que eles fossem nomeados, mas em tom agressivo e claramente pouco diplomático. Atribuo essas características ao fato de que esse discurso do presidente não deve ter sido preparado, como praticamente todos os anteriores, por diplomatas do próprio corpo profissional do Itamaraty, depois burilado por assessores no palácio presidencial, e ainda refinado por algum mestre da língua portuguesa, antes de ser traduzido para o inglês.
O que se sabe é que ele foi feito por amadores em diplomacia, neófitos que agem como aprendizes na política externa do Brasil, que ali resolveram introduzir as teses mais esdrúxulas de que se tem notícia desde o início da ONU. O único diplomata que participou ativamente de sua elaboração no Palácio do Planalto, o próprio chanceler, é confessadamente admirador de um destrambelhado guru instalado na Virgínia que, reconhecidamente, orienta o governo atual, ou pelo menos o seu presidente e familiares, e que pode ser considerado, por qualquer diplomata iniciante, como uma pessoa absolutamente inepta no terreno das relações internacionais ou em política externa brasileira, quaisquer que sejam suas incompetências e outras más qualidades em outras áreas das ciências humanas e sociais. Quanto ao chanceler, veiculou-se pela imprensa, e não foi desmentido pelo próprio, que, em passagem anterior por Washington, ele teria se reunido com o líder da nova direita americana Steve Bannon, para alegadamente discutir ou comentar sobre o discurso que o presidente faria na ONU. Se tal for verdade, trata-se de mais uma iniciativa absolutamente inédita, e inusitada, nos anais da diplomacia brasileira, pelo menos no que se conhece de nossos registros documentais sobre a preparação desse tipo de discurso. A despeito do que se afirma de forma recorrente, trata-se de algo que contraria nossa tradição de autonomia soberana na determinação da postura nacional em matéria de pronunciamentos à comunidade internacional, sendo que não só o corpo diplomático profissional, mas igualmente os militares devem considerar fato bizarro.

2. Indicação para a OCDE
A demanda brasileira de ingresso na OCDE está atrasada em pelo menos trinta anos, desde pelo menos quando o presidente Collor anunciou sua intenção de ver o Brasil como o último dos países avançados, e não como o primeiro dos países em desenvolvimento. A partir de então, alguns esforços de aproximação foram feitos, sem que, no entanto, algum governo, até a gestão Temer, decidisse pela demanda de entrada na organização de Paris. Registro que, em 1996, encarregado do tema no Itamaraty, ao retornar de Paris, onde me ocupei justamente do tema OCDE e providenciei a entrada do Brasil em diversos comitês, no status de observador, eu escrevi uma tese do Curso de Altos Estudos do Instituto Rio Branco, intitulada “Brasil-OCDE: uma interação necessária”, eu proclamava, não a adesão do Brasil à organização, mas a incorporação dos altos padrões de qualidade das normas e protocolos da OCDE às políticas públicas, macroeconômicas e setoriais, no plano interno. Minha tese foi, então, recusada, talvez porque fosse julgada muito destoante das posturas seguidas então pelo Itamaraty, e que continuaram pelas duas décadas seguintes, sobretudo nas três gestões e meia do lulopetismo. A tese, não publicada, está disponível em minha página em Academia.edu.
Pessoalmente, não considero ser necessária a adesão do Brasil à OCDE, mas sim essa incorporação de padrões e normas da organização às nossas políticas, pois ela é, do aviso de quase todos, um clube de boas práticas, não um clube de ricos ou o templo do neoliberalismo, como equivocadamente se proclama, geralmente nas hostes da esquerda. Quanto à indicação pelos Estados Unidos, tampouco a considero crucial nesse processo, embora o país detenha boa dose de poder decisório na organização, como ocorre por sinal no caso de uma série de outras instituições internacionais, a começar pelas organizações de Bretton Woods, FMI e Banco Mundial. Todos os países membros da organização precisam manifestar o seu apoio para o ingresso de um novo membro, inclusive os Estados Unidos, e considero mais um gesto inusitado o fato de o governo Bolsonaro ter concordo de imediato com a imposição dos EUA de renúncia, pelo Brasil, do seu status preferencial de país em desenvolvimento no contexto do sistema multilateral de comércio, como se observou para total surpresa dos observadores, como do próprio governo brasileiro, quando da visita a Washington do presidente Bolsonaro.
A surpresa surgiu logo após, quando o Secretário de Estados dos EUA enviou, em agosto, uma carta ao Secretário Geral da OCDE declarando que os Estados Unidos apoiavam o ingresso na organização apenas da Argentina e da Bulgária, e que não desejavam, no futuro previsível, qualquer nova ampliação da OCDE. De fato, a administração Trump frustrou a estranha disposição do governo Bolsonaro de estabelecer uma aliança, no caso subordinada, unilateral e claramente em ruptura com nossas tradições diplomáticas, que se imaginava manter com a grande potência hemisférica. Atribuo essas frustrações à total inexperiência do pequeno grupo que assessora o presidente na área externa, amadores ou diplomatas de modesto escalão no serviço exterior. Mas, essa recusa dos Estados Unidos de endossar a nossa candidatura, como ingenuamente se proclamou de forma grandiloquente e triunfalista por ocasião da visita, não é tão grave quanto outras medidas que, independentemente do apoio ou não dos países membros, colocam uma barreira prática, talvez intransponível, ao desejo do Brasil de fazer parte dessa organização. Refiro-me à medida totalmente arbitrária do presidente do STF de proibir compartilhamento de informações entre o antigo COAF e outros órgãos da administração pública encarregados de investigar, processar e julgar crimes de lavagem de dinheiro ou outros delitos financeiros, talvez como detectados pelo Conselho de Controle de Atividades Financeiras, encarregado de supervisionar transferências bancárias suspeitas, anteriormente subordinado ao ministério da Fazenda, repassado à Justiça e depois deslocado dessas duas esferas. A outra medida, conectada ao mesmo universo, refere-se à decisão do Executivo de dissolver o COAF e de criar uma Unidade de Investigação Financeira no âmbito do Banco Central, medida inusitada no contexto das demais atribuições e encargos do BC e claramente destinada a reduzir a eficácia do novo órgão no combate à corrupção. Essas mudanças já levantaram críticas no âmbito da OCDE, em especial por parte do Grupo de Ação Financeira Internacional (Gafi), e podem, na prática, inviabilizar o ingresso do Brasil na organização.

3. Relatório do Human Rights Watch
A Human Rights Watch é uma das mais respeitadas organizações não governamentais no campo dos direitos humanos e das liberdades democráticas, tendo um papel relevante, por seus relatórios anuais e estudos tópicos, na denúncia de graves violações que ocorrem nessas áreas de importância crucial na escala civilizatória, do ponto de vista da observação de altos padrões de respeito nesses campos. Quando servi em Washington, como ministro-conselheiro na embaixada do Brasil, participei de muitos encontros da organização, tomando notas em benefício do governo brasileiro e até respondendo a questões relativas ao Brasil no âmbito de um de seus programas audiovisuais. Considero seus métodos de trabalho inatacáveis e altamente necessários em vista de graves violações que se manifestam a todo momento em diversos quadrantes do globo, como ainda se viu recentemente no caso da Venezuela.
O ex-deputado Bolsonaro, depois candidato, atualmente presidente, supostamente vinculado a normas e princípios constitucionais que protegem direitos humanos e liberdades democráticas, sempre demonstrou respeito muito precário, quando não clara contrariedade nessa área, sendo notórias suas invectivas contra os “direitos humanos de bandidos”, ou contra um suposto “viés esquerdista” da imprensa (em geral), assim como em relação a diversos outros componentes do que ele considera ser uma “agenda anti-família” e anti-religião. Ou seja, já a partir de suas declarações e posicionamentos, já se poderia concluir que seu governo teria posturas claramente contrárias a toda uma agenda avançada naquelas áreas com as quais trabalham não só a Human Rights Watch, mas diversas outras organizações dedicadas aos mesmos temas da agenda social, dos direitos individuais e coletivos vinculados a expressão, às liberdades fundamentais e à defesa dos direitos humanos e da democracia. \
Em visita ao Brasil no mês de outubro de 2019, o diretor da Human Rights Watch, Kenneth Roth, afirmou com todas as letras que o presidente Jair Bolsonaro está "atacando frontalmente" os direitos humanos no Brasil, estimulando a polícia a usar de força letal sem justificativa adequada, assim como vem tentando enfraquecer o poder da sociedade civil e da mídia. Segundo o mesmo alto responsável, o presidente atacou os defensores da floresta, deu aval à exploração de madeira ilegal na Amazônia e tem minado os esforços para combater a tortura nos estabelecimentos públicos de segurança. A delegação da URW foi recebida pelo chanceler Ernesto Araújo, mas este, segundo comentários de membros da delegação, a despeito de estar secundado por outros diplomatas não expressou nenhum comentário apropriado aos temas abordados pelos representantes da ONG. O governador do Rio de Janeiro recusou-se a receber a delegação e o ministro da Justiça e Segurança Pública apenas demonstrou disposição em recebê-la quando seus membros já estavam embarcando de volta.

4. Embaixada em Washington
Trata-se de algo absolutamente inédito nos anais da diplomacia brasileira, tanto pela forma como o anúncio foi feito, quanto pela natureza da indicação, um filho que recém completou 35 anos, a idade mínima fixada na Constituição para tal cargo, e uma designação que só é vista, de forma similar, em ditaduras personalistas e regimes autoritários de base familiar. Mas vamos nos deter em primeiro lugar quanto à forma, pois o presidente parece ignorar não apenas requisitos mínimos de protocolo diplomático, quanto noções elementares de cortesia no caso específico de uma indicação desse tipo.
Toda e qualquer intenção de se designar um enviado diplomático para ser acreditado em um outro país, com o qual se tem relações diplomáticas normais, deve ser mantida em segredo, até a aceitação da pessoa indicada pelo país receptor. Tal comunicação é usualmente feita através de nota secreta enviada à chancelaria do outro país, informando sobre a intenção de designar tal pessoa como representante, e fazendo-a acompanhar de um currículo relativamente extenso do representante a ser designado. Qual o motivo do segredo? O país pode decidir que não quer aquela pessoa. Ora, o que se teve no governo Bolsonaro, tão pronto o aniversário foi consumado, foi um alarde geral aos quatro ventos. Isso representa, simplesmente, uma quebra de padrão diplomático, em linguagem popular uma grosseria. O presidente Bolsonaro não parece exibir nenhum sentido de política de Estado, de relações internacionais, uma vez que trata a presidência da República como se fosse a sua casa, a sua família, a sua seita. É uma coisa histriônica, sobretudo no plano das relações internacionais.
Em segundo lugar, cabe lembrar que a Constituição proíbe o nepotismo. Nesse caso, seria mais que nepotismo, pois nomear o próprio filho para um cargo de alta relevância seria “filhotismo”. O correto, na verdade, seria não só pedir o agrément (aprovação) em segredo, e se o país aceitar, manter ainda em segredo a mensagem para o Senado, uma vez que os senadores têm o direito de, e podem efetivamente, recusar. No caso da designação do filho do presidente para Washington se incorreu, portanto, não apenas em nepotismo, como também se quebrou o princípio da confidencialidade no processamento desse tipo de designação, seja no plano externo, seja no interno.
Em terceiro lugar, existe o problema da capacidade para o cargo, o que notoriamente não parece ser o caso. O personagem em questão não teria provavelmente sequer condições de passar num concurso para oficial de chancelaria, quanto mais para o de ingresso na carreira diplomática, notoriamente exigente. Não possui domínio da língua, não tem noções mínimas de política internacional, de história, de direito internacional, não tem a mínima experiência de vida para ocupar um tal posto. O fato de ter trabalho num fast food nos EUA não o qualifica minimamente para o cargo; isso é até uma ofensa para os diplomatas do corpo profissional do Itamaraty, que poderiam ter como chefe uma pessoa totalmente inepta e desqualificada para missão de tamanha responsabilidade.
A Comissão de Relações Exteriores do Senado jamais se defrontou com um caso desse tipo, tanto mais inédito por se tratar de nepotismo explícito. Não existem precedentes na carreira, ou fora dela, embora filhos de presidentes ou de ministros tenham exercido chefias de postos. Um – Rodrigues Alves Filho –, foi admitido depois da morte do pai; outro – Afonso Arinos, filho –, sem conexão com as funções eletivas do pai e a despeito delas: como é a norma desde 1946, ele e todos os outros têm de passar no concurso do Instituto Rio Branco. Alguns, educados no exterior, nunca lograram êxito nos exames, notoriamente difíceis, talvez por deficiências no Português. Seria de se presumir que esse candidato seja um exímio conhecedor das relações internacionais, tenha domínio perfeito do inglês e de várias outras matérias, além de uma boa familiaridade com a agenda diplomática brasileira e mundial, que é o que se exige nos concursos de admissão do Itamaraty.
Por último e mais importante lugar, o fato de se declarar amigo da família Trump – o que provavelmente não é verdade – já constitui um motivo de impedimento legítimo. Não se pode enviar para um posto dessa natureza alguém que possui tal tipo de viés de empatia, o que é altamente negativo do ponto de vista das informações que possa prestar ao serviço exterior do Brasil. O cidadão em questão já passeou nos Estados Unidos com o boné da campanha de "Trump 2020" por duas vezes, e em ambas teve palavras de desrespeito absoluto para com os brasileiros imigrantes, primeiro ao declarar que apoiava a construção do muro na fronteira com o México, depois ao dizer que os que se encontram no país trabalhando e remetendo dinheiro para o Brasil constituem “uma vergonha” para o país. Vergonha é ver um suposto representante do povo brasileiro ofender de tal maneira seus compatriotas expatriados.
Que tipo de informação objetiva – que é o mínimo que se espera de um embaixador – poderá oferecer à chancelaria brasileira, contendo uma análise equilibrada das políticas de um governo com o qual está empaticamente identificado? Como seria ele visto na Câmara dos Representantes americana, atualmente dominada por uma maioria de oposição ao presidente? Como vai ser com os diplomatas profissionais, eventualmente seus subordinados, dotados de maior experiência em assuntos internacionais do que ele mesmo? E o que farão os ministros, conselheiros, secretários mais antigos, ao se defrontar com um chefe de posto notoriamente despreparado para tratar dos mais diversos assuntos da agenda bilateral, hemisférica e internacional, financeira, política e cultural, como é o caso dessa embaixada que vale quase por uma chancelaria inteira?
A CREDN-SF tem um imenso desafio pela frente, uma vez que o que está em causa é a própria credibilidade da diplomacia brasileira junto ao país com o qual já tínhamos relações ainda antes da independência, e laços formais desde 1824. O primeiro embaixador do Brasil, designado por Rio Branco em 1905, se chamava Joaquim Nabuco, elevado a essa categoria sem precedentes na diplomacia brasileira justamente para servir em Washington. Outros embaixadores de fora da carreira diplomática que passaram por Washington chamavam-se Oswaldo Aranha, depois chanceler, o banqueiro Walter Moreira Salles, duas vezes embaixador em Washington, o almirante Amaral Peixoto, genro de Vargas, e um que tinha sido da carreira e servido em Washington sob Roberto Campos, Marcílio Marques Moreira, depois ministro da Fazenda. Alguma semelhança com o pretenso candidato atual?

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 20/10/2019