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Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.

segunda-feira, 20 de abril de 2020

Uma esfinge na Presidência - Miguel Lago (Piaui)


REvista PIAUÍ, EDIÇÃO 163 | ABRIL_2020

tempos da peste

UMA ESFINGE NA PRESIDÊNCIA

Bolsonaro precisa do impeachment para fazer sua revolução

MIGUEL LAGO

O saldo nas redes: a internet permite falar com um público muito mais diverso, entretanto também traz uma dificuldade extra – a fragilidade e a superficialidade do engajamento ILUSTRAÇÃO: REINALDO FIGUEIREDO_2020
Em um mito grego, um monstro chamado Esfinge aterroriza a cidade de Tebas com um enigma: “Que criatura pela manhã tem quatro pés, à tarde tem dois e à noite tem três?” Ao que adiciona: “Decifra-me ou devoro-te.” O mesmo faz Jair Messias Bolsonaro nos dias que correm: lança um enigma às instituições para ver se elas respondem. Se não o fizerem, serão devoradas.
Nas últimas semanas, o presidente fez acenos aos seus seguidores e os encorajou a participar das manifestações de 15 de março contra o Congresso e o Supremo Tribunal Federal. Ele próprio compareceu em uma delas e cumprimentou o público. Chegou a compartilhar um vídeo em que elogiava a iniciativa ao se dirigir a militares, policiais e empresários. Não fosse o coronavírus, teríamos visto um número muito maior de pessoas manifestando-se a favor do presidente e contra as instituições da República.
A atuação de Bolsonaro foi criticada pelo estamento político. O ministro Celso de Mello, do STF, declarou que o presidente não estava à altura do cargo; o governador de São Paulo, João Doria, criticou aquilo que chamou de “governo de ódio”. No dia da manifestação, Davi Alcolumbre, presidente do Senado, e Rodrigo Maia, presidente da Câmara, criticaram a atuação de Bolsonaro na saúde pública, uma vez que, ao participar dos protestos e saudar os manifestantes, o presidente da República desrespeitou os protocolos do próprio Ministério da Saúde para conter a epidemia de coronavírus.
Em entrevista à CNN Brasil, foi dado ao presidente um largo tempo de tevê para que esclarecesse sua atitude. Bolsonaro provocou Alcolumbre e Maia convidando-os a comparecerem nas manifestações também, dizendo que política se faz por intermédio do povo. Por fim, disse que as negociações políticas não poderiam ser feitas nos bastidores e sim publicamente, com a participação da população. O discurso da ligação direta entre o líder e o povo, que ignora a intermediação das instituições, é a definição mais clássica de populismo.
O fato de o presidente incitar subversão aos poderes instituídos pela Constituição faz parte de um movimento mais antigo, que remonta aos tempos de campanha, quando, repetidas vezes, ele desacreditou os procedimentos, os pesos e contrapesos da República. Esse movimento coloca as instituições diante de um enigma: como evitar que Bolsonaro destrua as instituições sem estimular, com isso, a adesão popular ao presidente?
Repreender exemplarmente Bolsonaro pode aumentar o ódio da parcela da população que o apoia. Deixá-lo falar abertamente contra as instituições democráticas pode levar descrédito a essas mesmas instituições. Mas o enigma de Bolsonaro subiu um degrau quando ele próprio, presidente do país, apoiou manifestações que pedem o fechamento do Congresso e do Supremo. É um ponto-limite que exige uma resposta firme do Congresso.
Do ponto de vista institucional, a resposta mais adequada talvez seja o impeachment, como sugeriu o governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel – ex-aliado do presidente, eleito graças ao poderio cibernético do clã Bolsonaro. O Congresso instauraria um processo de impedimento como resposta para mostrar que as instituições não tolerarão qualquer discurso e ação golpista por parte do Executivo.
Tal medida configuraria uma decisão acertada, que reafirmaria o equilíbrio de poderes: impedir que um eleito de perfil totalitário se torne um totalitário de fato. A medida transmitiria em alto e bom som ao país a mensagem de que as instituições de controle são mais fortes do que os arroubos ditatoriais do Executivo, e por conseguinte as instituições sairiam mais fortalecidas. Existe, inclusive, embasamento jurídico para fundamentar o pedido, segundo juristas. No entanto, do ponto de vista político, aos olhos dos simpatizantes do presidente, um pedido de impedimento confirmaria a tese de que o Congresso e o STF querem inviabilizar o seu governo. Consequentemente, esses seguidores se voltariam contra as instituições em definitivo, abrindo ainda mais espaço para a radicalização.
Uma alternativa, que evitaria a radicalização do movimento anti-Congresso e anti-STF, seria criticar publicamente essas posturas, sem tomar qualquer medida concreta contra as ações do presidente – caminho que, aparentemente, os líderes do Congresso decidiram seguir. Dessa maneira, a bandeira principal do séquito bolsonarista não encontraria fundamentação, e o discurso que teima na tese da perseguição ao presidente seria esvaziado. Entretanto, essa medida coloca as instituições numa postura passiva, contribuindo para a normalização do discurso antidemocrático.
O enigma, portanto, não pode ser esclarecido recorrendo às ferramentas clássicas da ciência política. É melhor analisá-lo à luz do ativismo digital.

Ahistória política dirá se Bolsonaro prepara um golpe de Estado, um autogolpe, para ser mais preciso. Como qualquer líder populista, ele cria uma conexão direta com a população, visando colocá-la contra o Congresso, enquanto busca o apoio das Forças Armadas para fechá-lo. O presidente peruano Alberto Fujimori, populista eleito como outsider da política, deu um autogolpe em 1992 e fechou o Congresso.
Mas não acho que Bolsonaro busque um autogolpe, que é um estratagema daqueles que falharam em criar um movimento verdadeiramente popular e precisam recorrer a uma força desproporcionalmente maior que a do regime vigente. Militares dão golpes, pois são politicamente medíocres. Empresários dão golpes, pois também são politicamente medíocres. O udenismo (corrente política relacionada à União Democrática Nacional, legenda de direita que existiu de 1945 a 1965) precisou de golpes para sobreviver, pois sempre foi incapaz de conquistar a maioria da população.
A ciência política nos mostrará, no entanto, que basta olhar o mundo atual para verificar que golpes de Estado não são mais dispositivos úteis para subverter as democracias liberais. No livro Como as Democracias Morrem, os professores Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, da Universidade Harvard, traçam paralelos entre as táticas hoje utilizadas por lideranças iliberais em diferentes partes do mundo. Nas Filipinas, o presidente Rodrigo Duterte persegue jornalistas e prende adversários políticos. Na Índia, o premiê Narendra Modi, oriundo do grupo nacionalista hindu responsável pelo assassinato de Mahatma Gandhi, aproveitou sua reeleição para estimular expurgos e limitar os direitos da minoria muçulmana (que é do tamanho da população brasileira). Na Turquia, o presidente Recep Erdoğan censura acadêmicos que ousam falar do genocídio da população armênia realizado pelo governo otomano na segunda década do século XX. Na Venezuela, Nicolás Maduro mantém seus adversários políticos na prisão. Nos Estados Unidos, Donald Trump avança sobre as regras do bom convívio democrático. No Reino Unido, o premiê Boris Johnson desafia a convenção política, colocando em risco a credibilidade da monarquia. Casos semelhantes ocorrem em El Salvador, Egito, Hungria, Polônia e, é claro, no Brasil. Nenhum desses governantes precisou recorrer ao golpismo militar, bastando a eles ir erodindo pouco a pouco as instituições, com método, rito e calma.
O liberalismo está morrendo em todas as partes, e no Brasil não é diferente. Bolsonaro se diferencia, porém, dos outros líderes iliberais por ter se recusado a estabelecer uma aliança sólida com o estamento político, ainda que esse fosse o desejo mais íntimo desse estamento. Se tivesse comprado o apoio de parte das pessoas que ocupam posições estratégicas, por meio da distribuição de cargos, de emendas ou de doações eleitorais, teria certamente conseguido acelerar de maneira mais eficiente a erosão democrática. Bolsonaro fez isso apenas com o Exército agraciando centenas de militares com cargos comissionados e outros privilégios. O caminho da cooptação do estamento político foi seguido pelas principais lideranças radicais no mundo, menos pela nossa. Há quem atribua falta de capacidade de negociação a Bolsonaro, mas eu concluo que se trata de uma estratégia extremamente calculada da parte dele.
Bolsonaro não quer que a democracia morra como aspiram outros líderes, em diferentes países. Ele apenas busca outro formato de democracia. Bolsonaro não precisa dar um golpe porque pode fazer uma revolução autoritária. A primeira revolução verdadeira da história do Brasil. Muito mais profunda do que a ocorrida em 1930, quando, apesar da bagunça, no fundo tudo se resumia a uma disputa entre elites estaduais. Muito mais verdadeira que o golpe de 1964, em que as Forças Armadas apenas cumpriram o papel daquilo que é esperado de quase todos os Exércitos que, como o brasileiro, não lutam guerras: derrubar regimes democráticos e populares. Trata-se de uma revolução de fato, e não apenas da transformação de um regime democrático em regime autoritário, como ocorre nos países acima citados.

Opresidente está conectado, mas difere de outros arquétipos de políticos autoritários. Em um texto que publiquei no site da piauí (“Bolsonaro traz o futuro prometido”) pouco antes do segundo turno da eleição de 2018 e quando já se apontava a dominância eleitoral de Bolsonaro, escrevi o seguinte: “O marco zero do futuro será o dia 28 de outubro de 2018. Um futuro que se desenha também para outras nações, mas do qual os pioneiros somos nós. O Brasil é a vanguarda de um novo modo de fazer política, da concretização de um novo programa de verdade que encerra o ciclo histórico do Iluminismo. A destruição do liberalismo global começa aqui.”
O filósofo Luciano Floridi, da Universidade de Oxford, defende a tese de que sociedades hiperconectadas vivem a transição da história para a hiper-história, uma nova era da humanidade em que as categorias de pensamento e de exercício da política são refundadas à luz das novas tecnologias. De acordo com o pensador, nessa nova era não há mais distinção entre o real e o virtual, entre o offline e o online, e as pessoas já não confiam tanto nas instituições, mas confiam nos perfis das redes sociais. Seguindo essa lógica, afirmei no texto de 2018 que Bolsonaro seria o primeiro chefe de Estado da hiper-história, em todo o mundo.
A ciência política institucional foi incapaz de prever o fenômeno Bolsonaro porque ele não se enquadra em nenhuma evidência que consta da literatura acadêmica, mas acredito que as ferramentas do ativismo digital são úteis para compreender o fenômeno. Sua vitória eleitoral se deu exclusivamente graças às redes sociais, contradizendo os cinco pontos determinantes para o sucesso eleitoral usualmente apontados pelos politólogos. Até 2018, a empiria demonstrava que, para um candidato sair vencedor, precisaria ter uma boa performance durante seu tempo de televisão, firmar-se na memória dos eleitores, saber lidar com a estrutura partidária, construir alianças regionais e obter uma boa estrutura de financiamento da campanha. E de preferência conseguir sair-se bem em todos esses itens.
Bolsonaro tinha muito menos dinheiro, menos tempo de televisão e uma estrutura partidária praticamente nula se comparada à da maioria dos candidatos. Tampouco dispunha de um histórico de gestão memorável que pudesse impulsionar os votos. Dentre os líderes iliberais do mundo, tanto Erdoğan quanto Modi haviam feito gestões de sucesso em governos locais antes de serem eleitos para o Executivo nacional. O húngaro Viktor Orbán tinha uma estrutura partidária formada há décadas e com larga participação em governos locais e no Parlamento. Duterte contava com o apoio de uma ampla coalizão, que incluía até partidos de esquerda.
Donald Trump ao menos tinha financiamento, exposição e alianças durante as prévias do Partido Republicano e fez uso extensivo das redes sociais para vencê-las. Mas a imagem de Trump como empresário bem-sucedido foi construída pela televisão, sendo ele portanto muito mais um depositário da videocracia do que da era digital. Uma vez escolhido nas prévias, Trump foi abraçado pelos republicanos e teve à sua disposição toda a máquina do partido nas eleições gerais de 2016.
Bolsonaro é o primeiro líder a governar exclusivamente por meio das redes sociais. Sua postura beligerante não tem similar, mesmo entre outros líderes iliberais, que acabaram por estabelecer alianças com o estamento político para ir corroendo a democracia por dentro. Se o Partido Republicano ofereceu resistência a Trump durante a campanha de 2016, isso deixou de ocorrer depois que ele assumiu a Presidência. Apesar das barbaridades cometidas por ele, apenas os senadores Mitt Romney e John McCain, este já falecido, foram capazes de enfrentá-lo. O mesmo se pode dizer do estamento político em países como a Turquia e a Hungria.
Ao contrário desses exemplos externos, Bolsonaro não fez essa aliança. E isso ocorreu não por resistência do Congresso ou dos partidos políticos, mas por decisão deliberada dele próprio. O presidente não apenas nunca teve um partido e uma base legislativa sólidos, como atualmente nem sequer está filiado a um partido. Como se elegeu graças ao fenômeno digital, é neste que ele constrói seu modo de governar. Se for bem-sucedido, o Brasil definitivamente será o primeiro país a ter sua vida política determinada pelos parâmetros da hiper-história.

Bolsonaro provou haver uma nova forma de ser eleito, e agora tateia na busca de uma nova forma de governabilidade própria à era digital. Sua estratégia – típica do ativismo – é tentar converter o apoio que tem nas redes online em mobilização offline e constante. Existem três grandes desafios para quem pratica o ativismo em tempos de mídias sociais: primeiro, a formação de uma base de apoio que chamaremos de constituency; segundo, de canal; e terceiro, de continuidade e profundidade do engajamento.
No tempo da tevê e da comunicação de massa, o importante era falar para o maior número de pessoas, seguindo a lógica do broadcasting – de um para muitos. As redes sociais funcionam a partir da lógica do multicasting – de muitos para um. Ou seja, o que importa é conseguir falar com constituencies específicas. É complexo chegar nelas, pois as redes sociais replicam a atomização da sociedade em uma plataforma. Cada pessoa é um perfil que se relaciona a distância e transacionalmente com outro perfil – um e outro refletindo os seus gostos particulares, sua personalidade e sobretudo sua opinião. A arquitetura de redes sociais está desenhada de tal modo que elas estimulam a hiperindividualização: por um lado, o perfil (a pessoa) é estimulado a revelar constantemente suas preferências, por outro tende a apenas se comunicar com aqueles que pensam de forma parecida com ele – fenômeno chamado pelo empresário e ativista Eli Pariser de filter bubble (bolha de filtro).
Do ponto de vista do ativista que quer formar um movimento, as redes sociais são difíceis de penetrar. Mas existem duas estratégias para romper a filter bubble e alinhar audiências diferentes. A primeira é conquistar seguidores a partir de suas opiniões. Sabe-se que algumas plataformas de redes sociais privilegiam o conteúdo que gera mais interação logo depois de sua postagem. Isso favorece postagens que chamem muito a atenção, entre outros motivos por serem sensacionalistas ou contrariarem o “senso comum” e o “politicamente correto”. Quanto mais absurdo o conteúdo da mensagem, mais interações ela gera. Quanto mais interações, maior o seu alcance. Quanto mais numerosa a audiência, maior a capacidade de reunir seguidores.
A segunda estratégia é fidelizar esses seguidores, criando proximidade com ele. A partir do momento em que obtém muitos seguidores, o perfil se torna um influencer, isto é, um perfil seguido por muitos perfis. Manter esses seguidores ativos e sempre em interação é fundamental. De modo que o melhor a fazer é compartilhar tudo que se pode, o tempo todo, trazendo o seguidor para mais perto, quase como se ele assistisse a um reality show do qual o influencer é a estrela, capaz de dar opiniões instantâneas sobre tudo que está sendo debatido, de compartilhar momentos íntimos de sua vida e aproximar os seguidores cada vez mais de seu dia a dia.
Bolsonaro se constituiu como um brilhante influencer, e foi assim que se elegeu. Para fidelizar o público e mantê-lo constantemente engajado foi necessário criar uma trajetória de herói que as pessoas pudessem acompanhar: com adversários, obstáculos, provações e grandes emoções. Mas não basta ser apenas um influencer extraordinariamente ativo: o segredo é fundir diversas filter bubbles em uma só, cujo único denominador comum é o influencer. Assim, este se transforma em canal de comunicação e principal fonte de informação. É como se fosse um mundo paralelo, um simulacro de realidade, em torno do qual giram uma miríade de blogs, perfis e influencers. Durante as eleições, Bolsonaro se constituiu como um canal assim e soube habilmente fundir bolhas diferentes: dos neoudenistas da luta contra a corrupção aos neopentecostais e aos fascistas.
Desde sua eleição, Bolsonaro tem como meta se constituir como canal dominante de uma parcela importante da população. Cada ato seu na Presidência é pensado como um modo de consolidar e expandir uma gigantesca filter bubble que dele dependa. Para isso foi necessário abrir uma guerra contra a imprensa e contra as instituições, transformando qualquer crítica ou denúncia de corrupção a ele dirigida em mensagem inválida para seu público. O objetivo da Presidência com suas “pautas-bomba” não é aprová-las, mas apenas gerar discórdia.
Todas seguem sempre o mesmo fio lógico: quanto mais propostas absurdas são apresentadas, mais a imprensa e as demais instituições são obrigadas a criticar e tentar impedir os atos do presidente. Dessa maneira, a narrativa de Bolsonaro de que é perseguido pela mídia e as instituições se confirma o tempo todo para o público de seus canais na internet. Dentre todas as pautas-bomba, talvez a mais reveladora tenha sido a tentativa de nomear Eduardo Bolsonaro embaixador dos Estados Unidos. Não acredito, sinceramente, que Bolsonaro quisesse nomear o filho embaixador: queria apenas forçar uma enxurrada de críticas de seus previsíveis opositores. Fato é que nenhuma das “pautas-bomba” foi aprovada pelo Congresso, o que leva a nossa elite intelectual e a imprensa a elogiarem a resistência das instituições.

Alguns analistas políticos dizem que as instituições estão resistindo, dado que Bolsonaro não conseguiu emplacar nada além de parte da agenda econômica – e isso é verdade. Outros afirmam que as instituições não estão aumentando o custo do golpismo de Bolsonaro: as declarações do presidente e de seus ministros não costumam surtir nenhum efeito prático – e estes também têm razão. As instituições estão bloqueando as ações concretas, mas deixando passar declarações totalmente absurdas. Ou seja, exercem o contrapoder de um lado, e deixam de exercê-lo de outro.
O ano de 2019 foi marcado por esse estranho equilíbrio geral. Detrás das aparentes batalhas se justapuseram confortavelmente dois conceitos diferentes de comunicação e dois conceitos diferentes de poder. As instituições saíram ganhando nesse conflito, mas Bolsonaro também foi vencedor. O importante para Bolsonaro não é aprovar políticas públicas, apenas autorizar um horizonte aspiracional às suas bases políticas. Bolsonaro ganha apenas propondo. O Congresso ganha apenas impedindo que seja aprovado. Todos ganham.
No ativismo digital, trabalha-se com a noção de “curva de engajamento”: sabe-se que para manter as pessoas engajadas e a audiência atenta é necessário oferecer ações sempre mais profundas para seus seguidores. Se no início um seguidor curtiu os posts de Bolsonaro, ele rapidamente passou a assistir todos os vídeos de Bolsonaro, para em seguida se informar unicamente por meio de blogs bolsonaristas, e por fim ir às ruas no dia 15 de março defender o presidente. Essa foi a curva traçada por Bolsonaro: começar como influencer, que em seguida se torna canal dominante para, ao final, galvanizar esse canal em uma infraestrutura de mobilização constante. “Infraestrutura de mobilização” é aquilo que permite conformar maiorias políticas. Na revolução bolsonariana, as eleições não servem para conformar maiorias, apenas para legitimar institucionalmente a capacidade de organização e mobilização dessas infraestruturas armadas na internet. É por meio delas que pretendem viabilizar uma nova forma de governo que não passe pelas instituições, mas apenas pela vontade de minorias politicamente organizadas. Governar para aqueles que gritam mais alto.
As bases às quais Bolsonaro acena são sempre as compostas por pessoas em posição de poder: brancos, homens, heterossexuais e gente armada, como militares e policiais. O denominador comum desses grupos é o poder que exercem sobre a sociedade.
De um lado, Bolsonaro se aliou aos pequenos poderes; de outro, aos grandes, como o empresariado e o mercado financeiro. Ele teve a inteligência de entender que seria necessário deixar os grandes poderes agirem livremente, de modo que não impedissem a sua revolução. Apesar de nacionalista e intervencionista, Bolsonaro entregou as chaves da economia a esses grandes poderes como jamais nenhum governo liberal e conservador foi capaz de fazer. A aliança dos pequenos poderosos da sociedade com os grandes poderosos do capital, numa sólida formação de maioria política conectada e engajada 24 horas por dia, tornou-se um movimento impossível de ser detido.
A crise do coronavírus abriu uma possibilidade extraordinária para o presidente expandir a sua bolha para camadas mais populares. Consciente de que a única chance de o país não viver um colapso na saúde pública são as medidas de distanciamento social implementadas por governos locais, Bolsonaro faz uma aposta arriscada porém certeira: criticar essas medidas para tomar a frente da revolta popular que, na ausência de uma política assistencial para compensar as perdas de renda provocadas pelas medidas de contenção ao vírus, inevitavelmente emergirá. Bolsonaro joga com essa convulsão e, quando ela ocorrer, poderá dizer que ele sempre alertou para os perigos da “histeria” dos governadores e da imprensa, canalizando a onda de revolta em favor de sua figura. Os vilões que causaram a crise econômica serão as instituições e a imprensa que exageraram e agiram com paranoia.
O equilíbrio geral de 2019 não pode se sustentar em 2020, pois todo engajamento de rede social é superficial e efêmero. Se a internet permite falar com um público muito mais diverso, também traz uma dificuldade extra: a fragilidade e a superficialidade do engajamento. Como manter as pessoas engajadas ao longo do tempo? Para engajar seus seguidores de maneira concreta e profunda, Bolsonaro precisa subir mais um degrau.
Uma lição básica de todo ativismo digital é que, para converter uma audiência passiva em um movimento ativo, é necessário que exista um ponto de tomada de decisão real. Esse ponto imprime urgência e gera no público o que os ativistas chamam de “medo de perder”, isto é, o medo que as pessoas têm de ver uma situação se deteriorar, seja por uma perda de direito, de status ou ainda de poder. No ativismo, as pessoas se cansam quando são instadas a se mobilizar em cima de suposições e teorias conspiratórias. Para fazer o caldo entornar, é preciso uma ameaça concreta e urgente. Bolsonaro perderá tração sobre sua filter bubble se ficar repetindo o mesmo discurso em que se faz vítima da perseguição do Congresso, do STF e da mídia sem ter nenhuma fundamentação concreta. É necessário que um fato novo emerja e gere urgência nas bases do bolsonarismo.
A instauração de um processo de impeachment é o ponto de decisão urgente que Bolsonaro precisa para conseguir mobilizar de maneira profunda e constante a integralidade de seus apoiadores. Com isso, ele ganhará seis meses de intensa mobilização de suas bases, com engajamento cada vez mais profundo dos seguidores. Terá vilões perfeitos que estarão explicitamente engajados em derrubá-lo. Com o impeachment, Bolsonaro coloca as instituições contra a parede e põe em marcha a revolução.
Assim deve ser lido o pronunciamento de Bolsonaro da noite do dia 24 de março: como um apelo desesperado à instauração do processo de impeachment contra ele. A sua atuação na crise do coronavírus, contrariando as recomendações das autoridades sanitárias e científicas, segue o mesmo vetor estratégico das pautas-bomba, das suas declarações anti-democráticas, da convocação de manifestações contra as instituições. A cada nova polêmica, ele elege um novo adversário e o instiga a uma atuação mais enérgica. Se suas ameaças contra as instituições democráticas ou nosso patrimônio ambiental não foram motivos suficientes para o impedimento, Bolsonaro dobra a aposta agora e se apresenta como uma ameaça sanitária. Desse modo, obriga os adversários que ele mesmo escolhe – o Congresso, o Supremo, a imprensa, e agora também os governadores – a tomarem uma medida mais drástica contra a sua atuação.
O enigma colocado ao Congresso e ao Supremo Tribunal Federal é ingrato. Se estes promoverem o impedimento de Bolsonaro, fortalecerão o movimento revolucionário do presidente, levando o país ao caos geral. Se não instaurarem logo um processo de impeachment, terminarão por normalizar mais uma medida autoritária de Bolsonaro, deteriorando a credibilidade das instituições e pavimentando o solo para a construção orgânica da revolução. Não há outro desfecho possível do bolsonarismo que não a guerra. Se for derrotado em 2022, Bolsonaro não aceitará o resultado das urnas. Qualquer que seja a resposta dada pelas instituições, o presidente-esfinge as devorará.
O ano de 2020 parece um remake do 1938 europeu, com atores de qualidade inferior. A ambição colonial de Hitler e Mussolini na Europa já estava clara quando o primeiro-ministro inglês Neville Chamberlain concedeu à Alemanha nazista a anexação da Tchecoslováquia em troca da paz no continente. Naquele momento, o então parlamentar Winston Churchill fez uma afirmação que se confirmaria: “Entre a desonra e a guerra, eles [os ingleses] escolheram a desonra e terão a guerra.” Resta saber se Rodrigo Maia e Davi Alcolumbre estão mais para Chamberlain ou Churchill.

Miguel Lago

MIGUEL LAGO

Cientista político, é cofundador da rede Meu Rio e diretor da ONG Nossas

Diplomacia por Tweets, entrevista completa ao OESP - Paulo Roberto de Almeida

Esta é a versão quase completa, ou pelo menos transcrita – com pequenos problemas de transposição da versão oral para a versão escrita – da entrevista que concedi ao jornalista José Fucs, do jornal O Estado de S. Paulo, que publicou apenas uma pequena parte na sua versão impressa.


‘Fazer diplomacia pelo Twitter é errado’, diz embaixador
Diplomata critica a política externa bolsolavista e o ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, fala dos bastidores do Itamaraty e diz que a reação do embaixador da China às críticas contra conduta do país na pandemia é “indefensável”
Entrevista com Paulo Roberto de Almeida
José Fucs, O Estado de S.Paulo
20 de abril de 2020 | 05h00


O embaixador Paulo Roberto de Almeida, de 70 anos, é um contestador nato. Quando discorda da política externa e das orientações do ministro das Relações Exteriores da hora, não costuma fazer segredo de suas divergências. Suas críticas lhe custaram o ostracismo tanto nos governos do PT, por se opor à postura “bolivariana” do Itamaraty, quanto no de Bolsonaro, por suas investidas contra o ministro Ernesto Araújo e as posições “olavistas” adotadas pela diplomacia brasileira na atual gestão.
Em represália à sua conduta, está relegado a uma função protocolar no arquivo, ao lado de estagiários e funcionários terceirizados, perdeu a vaga no estacionamento interno do órgão e teve até o salário descontado por alegadas faltas e atrasos ao trabalho em 2019. Em março, depois de ver indeferidas as suas justificativas de que estava em eventos oficiais e em atividades acadêmicas, entrou com um processo na Justiça contra o Itamaraty por “assédio moral” e pela “perseguição” de que afirma ser alvo.
“Sempre contestei chefes, com base no meu conhecimento técnico, e procurei fazer da autoridade do argumento um instrumento maior do que o argumento da autoridade”, diz. “Não por mero ‘contrarianismo’, por recusar tudo que os outros propõem, mas por acreditar que qualquer política externa deve ser analisada em seus fundamentos, no seu mérito, no custo/benefício e nos resultados efetivos oferecidos ao Brasil. Como eles não podem me punir por expressão de opinião, ficam procurando pequenas coisas para me prejudicar.”
Nesta entrevista ao Estado, Almeida revela o que está acontecendo nos bastidores do Itamaraty, fala sobre a troca de farpas do embaixador da China, Yang Wanming, com o deputado Eduardo Bolsonaro e o ministro da Educação, Abraham Weintraub, afirma que “fazer diplomacia pelo Twitter é errado” e ironiza a influência “nefasta” do assessor internacional na Presidência, Filipe Martins, e do deputado Eduardo Bolsonaro na política externa do País. Segundo ele, por causa da rejeição ao presidente Jair Bolsonaro no exterior, a entrada do Brasil na OCDE (Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico) e o acordo Mercosul-União Europeia não deverão sair do papel. Em sua visão, “a geopolítica internacional vai mudar depois do coronavírus” e "a China sairá mais forte que os Estados Unidos da pandemia”.

No governo Bolsonaro, houve uma enorme perda de inteligência na ação diplomática do País.

Como está o Itamaraty hoje, sob o comando do ministro Ernesto Araújo?
O Itamaraty vem sendo conspurcado. Desde a sua indicação ao cargo, logo depois das eleições, o Ernesto Araújo vem atacando de forma vil os diplomatas, nos acusando de sermos petistas, esquerdistas, marxistas, de termos aderido à agenda do lulopetismo. Foi tão agressivo que o (ex-embaixador Rubens) Ricupero se levantou imediatamente em defesa da Itamaraty e virou seu inimigo número 1. Ele promoveu uma guilhotina geracional, demitindo os nove secretários que chefiavam as diferentes áreas do Itamaraty, todos embaixadores com experiência em dois, três postos no exterior, sem oferecer nada em troca. Foram todos demitidos sumariamente, por telefone. Esse extermínio em massa, com tons de humilhação, causou uma comoção muito grande, porque foi um tremendo desrespeito. Ele eliminou todos os sêniores e designou ministros de segunda classe para todas as sete novas secretarias criadas no atual governo, com exceção de um embaixador que já era subsecretário de Economia e foi deslocado para a área de América do Sul.

Qual foi a reação do corpo do Itamaraty a essa mudança?
O Itamaraty é meio autista. Eles não são nem de esquerda nem de direita. São corporativistas, carreiristas e oportunistas. Todo mundo foca primeiro no seu interesse pessoal, na sua promoção, na sua remoção, no seu posto, na sua chefia. As pessoas se dobram, são submissas. Atendem a dois princípios que eu nunca atendi: hierarquia e disciplina. Ou seja, para eles, a chefia tem sempre razão. Eu sempre me revoltei contra isso. Sempre fiz da autoridade do argumento um instrumento maior do que o argumento da autoridade. Sempre contestei chefes, o que me causou alguns problemas na vida, mas com base no meu conhecimento técnico em algumas questões. Não por mero “contrarianismo”, por recusar tudo que os outros propõem, mas por acreditar que qualquer política externa deve ser analisada em seus fundamentos, no seu mérito, no custo/benefício e nos resultados efetivos oferecidos ao Brasil. Como costumo dizer, quando saio para trabalhar não deixo o cérebro em casa nem o deposito na portaria quando entro no trabalho. 

Como essa situação está afetando a diplomacia brasileira?
Houve uma enorme perda de inteligência na ação diplomática, uma grande diminuição da estatura diplomática do País, porque o Ernesto substituiu embaixadores experientes por jovens recém-promovidos a ministros de segunda classe. Agora, é claro, todos já foram promovidos a ministros de primeira classe, mas nunca exerceram chefias de posto. Sabem menos que os subordinados. Isso diminui muito a capacidade do Itamaraty de refletir e de ter diálogo com legisladores, altos funcionários e autoridades no exterior. É uma perda enorme de capital humano, no qual o País investiu muito ao longo do tempo. Esses embaixadores designados pelo Ernesto Araújo, assim como acontecia na época do Celso Amorim (ministro das Relações Exteriores de 2003 a 2011) não têm nenhuma autonomia. Têm de cumprir exatamente as determinações de Brasília.

O Ernesto Araújo era um burocrata comum que aderiu ao olavobolsonarismo por oportunismo.

Como é a relação do ministro Ernesto Araújo com o corpo de diplomatas do Itamaraty?
Não há nenhuma interação do Ernesto com os secretários e os chefes de departamento em qualquer assunto. O secretário-geral é o único que despacha com o ministro. O gabinete é um bunker fechado. Ele só faz coisas com o (deputado federal) Eduardo Bolsonaro (presidente da Comissão de Relações Exteriores da Câmara) e o (assessor internacional da Presidência) Filipe Martins. No dia 2 de janeiro do ano passado, na cerimônia de posse, o discurso do (ex-ministro) Aloysio Nunes foi aplaudido de pé, quando ele defendeu as posturas do Itamaraty frente à previsão de que tudo mudaria. O Ernesto foi aplaudido apenas de forma protocolar, inclusive porque fez um discurso estranho, com citações em latim, grego, alemão e toda uma filosofia recheada com menções a Raul Seixas e Nietzsche. No final do ano passado, aconteceu algo parecido, na cerimônia de promoção promovida pelo Itamaraty. O mais antigo das promoções, que foi promovido a embaixador, falou em nome de todos os 10 ou 12 diplomatas promovidos para diferentes cargos. Fez um discurso puramente burocrático, mas foi intensamente aplaudido. Depois, falou o Ernesto, que foi aplaudido muito parcamente. Ficou evidente que a Casa estava lhe enviando um sinal de reprovação. Ele deve ter sentido muita raiva. Por isso, está recrudescendo nesta questão da intimidação dos diplomatas que não rezam pela sua cartilha.

Por suas críticas à atual gestão do Itamaraty, o sr. foi designado para uma função protocolar e tem sofrido punições administrativas por causa de faltas e atrasos. Há outros diplomatas na mesma situação?
Nenhum outro embaixador tem sido visado e controlado desta forma. Há claramente uma ação discriminatória contra mim, como uma forma de intimidar os demais diplomatas, para que eles não ousem fazer críticas. Agora, você tem outros diplomatas sem lotação ou com lotação meramente formal. Tem uma sala de embaixadores, que chamo de Parque dos Dinossauros, que antes era lá no Anexo 1, aquele prédio de oito andares atrás do Palácio do Itamaraty, e agora foi deslocada para o Anexo 2, o chamado Bolo de Noiva, na qual eles costumam ficar. Há dois diplomatas que estavam lotados diretamente na Secretaria de Administração e tinham, portanto, suas faltas abonadas automaticamente ou não precisavam cumprir as oito horas diárias de trabalho. Há também diplomatas não lotados e que, portanto, não precisam se submeter à catraca eletrônica ou à contagem de horas de trabalho. Alguns já se afastaram, conseguiram emprego em outros lugares da administração. Tem gente que se aposentou e outros conseguiram emprego em representações dos Estados em Brasília ou um estágio na ESG (Escola Superior de Guerra), para ter ausência justificada.

Como o sr. vê a ligação do ministro Ernesto Araújo com o escritor Olavo de Carvalho, que o teria indicado para o cargo?
O Ernesto Araújo era um burocrata comum, talvez fundamentalista religioso ou algo assim, que viu subir a onda bolsonarista e grudou nela. Ele aderiu ao olavobolsonarismo por oportunismo, hipocritamente. Ainda que pudesse concordar com algumas posições do Olavo de Carvalho, como o anticomunismo, porque é filho de um eminente personagem da ditadura (o ex-Procurador-Geral da República Henrique Fonseca de Araújo), de direita e anticomunista, ele se atinha às diretrizes principais da Casa. Tanto que sua tese para ser promovido a ministro, na qual abordava o Mercosul, está dentro da filosofia desenvolvimentista, cepalista (referência à Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe) do Itamaraty. Nada parecia indicar que ele aderiria a uma ideologia de direita, antiglobalista, que vem daqueles direitistas americanos que acham que a ONU e as organizações internacionais são o diabo, que o mundo é dominado pelas grandes corporações e que o (megainvestidor e filantropo) George Soros e a esquerda querem acabar com a soberania das nações e estão à frente de uma conspiração para controlar o planeta. Isso é ridículo. O Olavo de Carvalho grudou nessas ideias malucas e o Ernesto Araújo, para se qualificar, também. Na campanha eleitoral, em 2018, ele criou anonimamente um blog chamado Metapolítica 17, no qual ele falava até da China maoísta, que não existe há 40 anos, para reforçar a sua ligação com o Olavo e se credenciar ao cargo.

O Ernesto até tentou cumprir a agenda olavista, mas os militares, o agronegócio, os industriais e os mais sensatos não deixaram

Recentemente, o sr. comentou em seu blog Diplomatizzando uma publicação do escritor Olavo de Carvalho nas redes sociais, na qual ele chamou o ministro Ernesto Araújo de “prepotente” e “intolerante”, por não ter agido para evitar que o Brasil se tornasse “um protetorado chinês”. Como o sr. analisa esse episódio? Houve um rompimento entre eles?
Sim e não. Isso aconteceu, provavelmente, porque o Ernesto não pode fazer aquilo que o Olavo quer que ele faça. O Olavo quer saber se o Ernesto Araújo está cumprindo ou não as ordens dele, que são a adesão ao Ocidente, ao Trump, aos Estados Unidos, a Israel, e uma agressividade contra os países islâmicos e contra a China, especificamente. O Ernesto até tentou cumprir a agenda olavista, mas os militares, o agronegócio, a (ministra) Tereza Cristina (da Agricultura), os industriais e os mais sensatos não deixaram. O Olavo gostaria que a política externa fosse mais ideológica, mas nem a Casa se dispõe a isso. Agora, ele nunca falou uma palavra contra o Olavo. Há pouco tempo, numa entrevista, ele se esquivou de responder uma pergunta sobre a pandemia, embora o Olavo partilhe da visão da direita americana de que você tem um vírus chinês, de que o Partido Comunista Chinês é responsável pela pandemia e de que se deve isolar a China e impor sanções contra o país. Antes, já haviam perguntado ao Ernesto se a terra é plana, como o Olavo insinuou, e ele falou: “Para mim, a terra é redonda”. Ou seja, ele está procurando se dissociar do Olavo sem dizer isso.

Da mesma forma que o sr. critica hoje a influência ideológica na diplomacia brasileira, o sr. também fazia criticava relação à política externa praticada nos governos do PT. Qual a diferença entre o que acontecia nas gestões do PT e o que acontece agora na política externa e no Itamaraty?
Sob o lulopetismo, houve aquele famoso discurso do Celso Amorim em 2003 em que ele dizia que era preciso vestir a camisa do governo. O Celso Amorim aderiu totalmente, fez coisas clandestinas, em acordo com o (então assessor internacional da Presidência) Marco Aurélio Garcia, em relação a Venezuela, Cuba, Honduras, Bolívia, mas era um grande diplomata. Além dele, talvez uns 15% ou 20% do Itamaraty tenham realmente aderido às ideias do governo. Todo o resto era puro Itamaraty: desenvolvimentismo, cepalianismo, unctadianismo (referência à Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento), multilateralismo, regionalismo e antiamericanismo moderado. Agora, poucos são bolsonaristas ou olavistas, porque é uma vergonha. Ninguém cultiva o olavismo, o antiambientalismo, o anticomercialismo o nacionalismo exacerbado. Todas essas invenções estapafúrdias do Olavo de Carvalho absorvidas pelo Ernesto Araújo, pelo Felipe Martins, pelo Eduardo Bolsonaro e pelo próprio presidente são tão absurdas que é impossível para um diplomata normal, tenha ele uma postura de esquerda, de direita ou neutra, ser a favor do que foi anunciado e do que vem sendo praticado na diplomacia brasileira. Hoje, o olavobolsonarismo afeta apenas a superfície, só o gabinete. O corpo do Itamaraty continua produzindo coisas boas, mas quando elas vão para o gabinete são transformadas em votação pró-americana contra Cuba, em apoio ao plano de paz para a Palestina, em posições contra a ideologia de gênero, contra o meio ambiente. Essa é a grande diferença.

Como nos governos do PT, quando o assessor internacional da presidência, Marco Aurélio Garcia, exercia uma grande influência na política externa do governo, o governo Bolsonaro também tem um assessor internacional fora da estrutura do Itamaraty. Como o sr. vê a ação do Filipe Martins, na política externa?
O Filipe Martins é uma influência nefasta sob todas as hipóteses. É um olavista fanático e conseguiu ser designado contra a vontade dos militares, que não o queriam no governo. Nem o (general Hamilton) Mourão (vice-presidente), nem o (general Augusto) Heleno (ministro do Gabinete de Segurança Institucional) nem o (general Eduardo) Villas Bôas (ex-comandante do Exército) queriam esse “garoto”, como eles o chamavam, sem experiência, lá. Mesmo assim, ele conseguiu pelo Olavo e sobretudo pelo Eduardo Bolsonaro, a quem ele é muito ligado, não apenas se firmar, mas ainda colocar o Ernesto Araújo como chanceler. O Ernesto Araújo dependeu totalmente do Filipe Martins e do Eduardo Bolsonaro, que eram a verdadeira ponte com o Olavo de Carvalho para ser escolhido para o Itamaraty e do Nestor Foster (hoje embaixador em Washington) para levá-lo ao Olavo de Carvalho, na Virgínia. Embora tenha um cargo equivalente, o Filipe Martins não tem a mesma proeminência do Marco Aurélio, que foi durante 20 anos secretário de Assuntos Internacionais do PT, amigo fiel dos castristas cubanos, a quem prestou serviços caninamente pelo Foro de São Paulo, do qual ele era um dos coordenadores. O negócio dele era América Latina. Ele tinha uma dimensão muito maior e muito mais leitura e mais abertura do que o Filipe Martins, que é um júnior, um Robespirralho, como costumam chamá-lo por aí.  

O Brasil não é mais prioridade para a China enviar equipamentos para enfrentar o coronavírus

Em meio à crise do coronavírus, o deputado Eduardo Bolsonaro e o ministro da Educação, Abraham Weintraub, fizeram críticas à China pelas redes sociais e acabaram gerando uma forte reação do embaixador chinês no País, Yang Wanming. Como o sr. viu os dois episódios? Que efeitos isso pode ter nas relações do Brasil com a China?
Acho que são duas coisas diferentes. O Eduardo Bolsonaro reproduziu um post que apontava o Partido Comunista Chinês como culpado pela disseminação do vírus. Ele provocou uma celeuma e não quis se retratar. Depois da resposta do embaixador chinês pelo Twitter, o Ernesto Araújo soltou uma nota censurando o embaixador que foi muito ruim. Deve ter sido ditada pelo Filipe Martins, pelo próprio Eduardo Bolsonaro. A coisa ficou tão feia que o pai percebeu e fez aquela ligação para o Xi Jinping e teoricamente acalmou a coisa. Aí, do nada, surgiu o Weintraub e fez aquela loucura, que foi muito mais grave. Pegou os personagens da revistinha do Maurício de Souza, a Turma da Mônica, que circula aos milhões na China, e ironizou os chineses de forma até preconceituosa. Aí, sim, o embaixador exigiu desculpas, mas nem o Planalto nem o Itamaraty se pronunciaram ainda. O próprio Weintraub deu uma desculpa esfarrapada, provocadora, inclusive, falando que se estiver errado dirá que é um imbecil. Recentemente, o ministro-conselheiro da China, Qu Yuhui, apareceu adotando um tom conciliador. Ele chamou de irresponsável o Eduardo Bolsonaro, mas disse que o episódio não vai impedir a cooperação, as boas relações entre os dois países.  Aparentemente vão deixar mesmo a coisa acalmar e continuar fazendo negócios com o Brasil normalmente. Só que, agora, o Brasil não é mais prioridade para envio de equipamentos de segurança para enfrentar o coronavírus. Se não eles teriam atendido o (ex-ministro da Saúde Luiz Henrique) Mandetta rapidamente, mas isso não aconteceu. Embora o setor privado responda por mais de 65% do PIB (Produto Interno Bruto) na China, talvez o governo intervenha em algumas coisas, como em atender os Estados Unidos, Itália, Espanha, para demonstrar boa vontade, deixando Brasil como segunda ou terceira prioridade. 

Como o sr. avalia as reações do embaixador chinês aos posts do Eduardo Bolsonaro e do ministro Abraham Weintraub no Twitter?
Achei muito ruim aquela reação do embaixador chinês, totalmente antidiplomática. Fazer diplomacia pelo Twitter é errado. Os governos expedem notas ou falam oficiosamente quando querem se pronunciar. Ninguém proclama abertamente discordâncias. Isso que o embaixador da China fez não é um comportamento de diplomata. Foi realmente fora da curva diplomática, totalmente despropositado. Ainda que o embaixador quisesse reagir nunca poderia ter feito daquela forma, naquele tom, que é indefensável, dizendo que o Eduardo Bolsonaro havia “contraído vírus mental”. É claro que os chineses podem comprar soja e carne dos Estados Unidos, mas eles dependem muito do Brasil, do agronegócio, de minérios, e outras coisas. Tem todo o interesse de preservar boas relações com o Brasil.

O sr. acredita que o embaixador chinês agiu por conta própria ou teve o aval do Pequim?
Acredito que ele agiu por conta própria, mas Pequim provavelmente não se opôs a que ele reclamasse da família Bolsonaro. Talvez o embaixador tenha procurado ganhar alguns pontos em Pequim ao confrontar os malucos daqui. Pequim sabe que o governo Bolsonaro é nefasto para a China, para bons negócios. Então o que o embaixador fez é algo não veio nem da chancelaria nem foi uma manifestação oficial. Foi um tweet que não vai ficar nas notas diplomáticas. Mas os chineses são muito pragmáticos. Eles separam o que é gente racional no Brasil, a ministra da Agricultura, o ministro da Saúde, todos os setores de interesse deles, e a família Bolsonaro, que eles sabem que é um horror. Eles não perdoam o Bolsonaro desde a viagem a Taiwan, em fevereiro de 2018. Então eles querem dar uma sinalização muito forte de que a família tem que se corrigir se não o Brasil vai ser prejudicado. A China é uma ditadura orwelliana, mas não quer exportar o seu regime político. Ela quer ficar rica, fazer negócios, e apesar do erro inicial em relação ao coronavírus, quando eles reprimiram e censuraram as informações, tem um know-how essencial, além de oferecer equipamentos e recursos humanos para outros países. Ou seja, a gente não pode hostilizar a China.

A ONU, é verdade, tornou-se um grande dinossauro ao longo dos anos

O sr. faz duras críticas à política externa atual, mas não é natural que com a ascensão de um governo de direita, que estava afastada do poder há décadas, tenha havido uma guinada na política externa, como aconteceu quando o Lula assumiu a Presidência em 2003?
Eu o desafio a me dizer qual é a política externa deste governo. Não há nenhum documento, nenhum statement do presidente, do chanceler ou de qualquer outra fonte neste sentido. Existem slogans, instintos proclamados, invectivas. Não há política externa nova. O que há é um amálgama de más ideias. O Ernesto Araújo, que tem algumas ideias, que eram as do mainstream do Itamaraty, aderiu a um amálgama mal concebido de instintos primitivos que estão guiando ações da política externa, sem doutrina, sem fundamento, sem teoria, sem nada. Claro que a nossa tradição do Itamaraty, que é mais ou menos progressista, avançada, politicamente correta, se encaixa um pouco nisso, na social democracia, de um liberalismo social como dizia o (filósofo José Guilherme) Merquior, no comércio internacional, na ajuda aos pobres. Você nunca teve aqui liberais puros. O próprio Roberto Campos, que nunca foi um liberal de origem, foi o homem que comandou a maior estatização da história brasileira no regime militar. Eles têm instintos primitivos da direita anticomunista como se o comunismo fosse um problema hoje. Não é. Esse pessoal é um retrocesso absoluto nas ideias. Aliás eles não têm ideias, tem instintos anticomunistas, religiosos, pró-americanos ou pró-Trump, anti-China, pró-Israel, que não têm nada a ver com a postura tradicional do Brasil, não têm nada a ver com o que a gente defende que são os nossos interesses nacionais. Tanto que os militares, o agronegócio e outros bloqueiam todas essas bobagens.

O sr. critica a posição antiglobalista do atual governo, mas quem a defende diz que ela se baseia na visão de que instituições multilaterais, como a ONU e até a OMS (Organização Mundial de Saúde), muitas vezes se colocam acima dos interesses dos países e têm forte viés de esquerda. Na ONU, por exemplo, muitos países têm regimes autoritários, são governados por ditaduras, e acabam aprovando as propostas mais estapafúrdias. Faz sentido isso?
É importante fazer uma distinção importante: as organizações internacionais não são supranacionais. Elas são intergovernamentais. Elas dependem em tudo e por tudo do acordo dos países. Então, todas essas resoluções aprovadas por maioria de 170, 180 membros do Terceiro Mundo, contra os Estados Unidos, contra Israel, contra alguns poucos aliados americanos, como o Japão e a Grã-Bretanha, não têm nenhuma função executiva. Se forem esquecidas na gaveta não vai acontecer nada. Todas essas bobagens que são aprovadas na Assembleia Geral não têm nenhum efeito prático, porque o Conselho de Segurança não vai implementar. Agora, você tem a burocracia desses órgãos internacionais. A ONU, é verdade, tornou-se um grande dinossauro ao longo dos anos. O General De Gaulle chamava a ONU de Le Grand Machin (a grande geringonça), porque havia se transformado num dinossauro mesmo que existia pela sua própria sobrevivência burocrática. Metade da agenda da ONU vem dos países e a outra metade vem da burocracia, que faz aquilo para se multiplicar e para justificar o seu trabalho. Os Estados Unidos da era Reagan saíram da Unesco pela primeira vez porque ela estava dominada por um africano só apoiava projetos esquerdistas e gastava 75% do seu orçamento em Paris, realizando seminários, pagando passagem para todo mundo, diárias.  Agora, você tem também organizações como o Clube de Paris ou Bretton Woods, que não são “assembleísticas”, como a ONU e outras agências públicas. São órgãos por ações. Quem domina o capital domina a política. Infelizmente no mundo, você tem crises de dívida, crises fiscais e outros problemas econômicos e tem de apelar a quem tem dinheiro, como o FMI (Fundo Monetário Internacional), o Banco Mundial, os bancos multilaterais e o Clube de Paris.

Um exemplo que é muito usado pelo antiglobalistas é a União Europeia e o poder exercido pela burocracia de Bruxelas sobre os países-membros.
Esse globalismo na Europa é mais avançado pela supranacionalidade, que não existe em nenhum outro lugar. Como eu disse há pouco, nenhuma entidade internacional é supranacional. Todas são intergovernamentais e dependem da vontade dos países. A única entidade supranacional é a Comissão de Bruxelas, que tomou uma rasteira do Parlamento. Havia um projeto de Constituição Europeia que o Giscard d’Estaing (ex-presidente francês) formulou e criaria um presidente europeu, um federalismo na Europa. Queriam enfiar isso pela guela dos europeus, mas a Holanda e a França rejeitaram e o projeto acabou sendo deixado de lado. Depois, outro projeto mais ameno acabou sendo adotado pela via do Tratado de Lisboa. O Parlamento Europeu também passou a controlar mais o comissariado. Hoje, os comissários têm de ser aprovados pelo Parlamento, que aprova o orçamento e dá palpite na União Europeia. Foi contra essa supranacionalidade que se revoltaram ingleses, poloneses, húngaros, italianos e outros, por diferentes razões. Isso explica essa ascensão do nacionalismo nos Estados Unidos com o Trump, porque tanto o Clinton quanto o Bush e Obama (ex-presidentes americanos) eram internacionalistas e nunca tentaram sabotar os organismos internacionais, exceto [o Bush] ao ignorar o Conselho de Segurança na invasão do Iraque. Esse nacionalismo explícito do (Matteo) Salvini (ex-vice-primeiro-ministro e ex-ministro do Interior da Itália), do (Viktor) Orban (primeiro-ministro da Hungria), dos poloneses, de alguns ingleses e do Trump, é uma coisa que encantou alguns intelectuais que ficam falando contra o globalismo. Agora, nunca vi nenhum deles provar que o globalismo interfere na soberania, retira poderes dos estados nacionais. Aonde está esse complô contra a soberania nacional de que falam os antiglobalistas? Isso não se traduz em nenhuma proposta de trabalho para reduzir o poder dos governos nacionais.

O Itamaraty é terceiromundista, antiamericano, ainda que moderadamente, e desenvolvimentista

Acredito que boa parte das críticas às organizações multilaterais se deve às posturas e resoluções terceiromundistas, que o Brasil muitas vezes apoiou, como no caso da condenação do sionismo como forma de racismo, em 1975, em vez de se alinhar com a visão dos países desenvolvidos. Por que o Brasil não pode seguir um novo caminho neste sentido?
O Brasil, é verdade, votou na maior parte das vezes com o Terceiro Mundo, com a maioria, que é um pouco a orientação do Itamaraty, porque é um pouco o direito internacional, mas sem nenhum efeito prático. O que vale para todos os efeitos são as decisões do Conselho de Segurança. Uma coisa é o direito internacional que a gente sempre defendia enfaticamente, e parou de defender, desde Rui Barbosa, que proclamou a igualdade soberana das nações em 1907, de Oswaldo Aranha, dos vários juristas da diplomacia brasileira, como Raul Fernandes, Vicente Rao, Hermes Lima, Santiago Dantas, e que se manteve até o Celso Lafer, o Fernando Henrique Cardoso. Depois houve uma certa acomodação na era lulopetista, com teses desenvolvimentistas, e agora se acomodou novamente, dentro das orientações antiglobalistas do governo Bolsonaro. Outra coisa são as adequações que você tem de fazer por realismo puro à situação do País em acordos econômicos, comerciais, de cooperação, resoluções sobre transferência de tecnologia, que têm o lado utópico dos países em desenvolvimento na ONU, Unesco, na própria FAO, às vezes, e outras entidades. O que conta são as decisões do Conselho de Segurança, como as sanções contra o antigo apartheid na África do Sul, que você tem que obedecer. A defesa do direito internacional, que a gente agora parou de

Agora, essa tradição diplomática do Itamaraty de que o sr. fala também é passível de críticas. De repente, ela pode ser revista e o Brasil adotar uma nova postura em sua política externa, respeitando o direito internacional. Isso não é possível?
O Itamaraty realmente é terceiromundista, antiamericano, ainda que moderadamente, e desenvolvimentista. O (Fernando) Collor (senador e ex-presidente) procurou mudar isso, ao conferir um perfil mais liberal à política externa e chocou muita gente no Itamaraty. Até o Sarney nós éramos perfeitamente terceiro-mundistas. Aí o Collor veio com a famosa frase: “Nós não queremos mais ser o primeiro dos subdesenvolvidos, queremos ser o último dos desenvolvidos.” Ele acabou com todas as teses desenvolvimentistas do Itamaraty, aceitou patentes farmacêuticas, mudou toda a política externa. A parte econômica foi defenestrada e entrou novo dogma: abertura, liberalização. O Mercosul foi mudado de forma considerável. Já naquela época, ele fez aquilo com ideia de abrir o país e colocá-lo no caminho da OCDE. Mas agora o que acontece é que você adere aos Estados Unidos nas coisas mais estapafúrdias como esse Plano Trump para a Palestina, que é contra o povo palestino e confronta o direito internacional. É favor do Netanyahu e da direita israelense. Isso é vergonhoso para o Itamaraty.

Qual a sua expectativa em relação ao ingresso do Brasil entrar na OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) e ao acordo Mercosul-União Europeia?
Tanto o ingresso na OCDE quanto o acordo do Mercosul com a União Europeia não vão ocorrer sob o atual governo. Por causa do presidente e do chanceler, os países europeus fecharam as portas para o acordo com o Mercosul. Já falei com embaixadores europeus e não há nenhuma chance de eles aprovarem esse acordo. Para o ingresso, na OCDE, o Brasil depende precisamente da aceitação de todos os 35 países que são membros da organização. Embora o (Donald)Trump (presidente americano) tenha falado que os Estados Unidos apoiavam o Brasil, depois de eles terem afirmado que iriam apoiar a Argentina e a Bulgária, deixando o País de fora, nunca houve qualquer formalização disso. Na prática vale o que está escrito. Mesmo que isso aconteça, o ingresso do Brasil na OCDE não deve sair agora, por outras razões, como meio ambiente, direitos humanos, democracia. A Alemanha, a Noruega e a França vão dizer não, por mais que o Brasil siga toda a cartilha da OCDE. Infelizmente não tem mais chance por causa do Bolsonaro e de todos os outros. Será uma grande frustração para a burocracia econômica, que é liberal, defende a abertura econômica e que quer o Brasil na OCDE.

Depois do coronavírus, o comércio não vai crescer duas vezes mais do que o PIB global

Como o sr. avalia as reações do embaixador chinês aos posts do Eduardo Bolsonaro e do ministro Abraham Weintraub no Twitter?
O Trump só anunciou que iria suspender pagamentos até que se investigue o que houve na OMS em relação ao que ele chama de “vírus chinês”. Não houve ainda corte de cota americana na organização, que nem sei se é paga de uma vez só ou por remessas periódicas, O que aconteceu foi só um anúncio do Trump para sua tropa, com fins eleitorais, já que os mortos pelo coronavírus nos Estados Unidos estão se acumulando e ele quer tirar o foco do assunto.

O coronavírus levou a um isolamento da maioria dos países, com o fechamento de fronteiras. Na sua visão, como isso poderá afetar o mundo depois da pandemia? 
A gente já sabe que depois da pandemia o mundo não vai voltar a ser o que era. A geopolítica mundial vai ser diferente. Vai mudar tudo. Infelizmente, para pior. Nos últimos 60 anos, o comércio internacional cresceu praticamente o dobro do PIB (Produto Interno Bruto) mundial. Isso mudou na crise de 2008 e depois voltou ao normal. Mas após o coronavírus o comércio não vai crescer duas vezes mais do que o PIB global. Agora eu aposto que a China vai sair muito mais forte que os Estados Unidos da pandemia. A China está em todas as cadeias de valor do mundo. As empresas americanas dependem dos chineses. É claro que há movimentos nacionalistas, na Europa e nos Estados Unidos, dizendo que eles não podem mais ficar dependentes da China, porque numa hora de desespero ela não consegue atender à demanda nem querendo. A questão é que a China está ficando cara. Quando começou a globalização um operário chinês custava US$ 30 dólares por mês e hoje está custando mais de US$ 200. Fábricas americanas estão mudando para o Laos, o Vietnã, Banglasdesh, Índia, África ou voltando para o México, porque a China ficou cara. Agora, eu lamento profundamente o nacionalismo no combate à epidemia do coronavírus. O mundo estaria muito melhor se houvesse uma coordenação estreita da OMS com os governos nacionais, tanto nas medidas de restrições, que são necessárias, quanto na pesquisa e na cooperação para desenvolvimento de vacina e métodos curativos.

‘Fazer diplomacia e expor divergências por Twitter é errado’, entrevista Paulo Roberto de Almeida a José Fucs (OESP, 20/04/2020)

Esta é a versão reduzida de minha entrevista ao jornalista José Fucs, publicada no jornal OESP, impresso, em  20 de abril de 2020. Vou buscar a versão integral, para transcrever.
Paulo Roberto de Almeida

‘Fazer diplomacia e expor divergências por Twitter é errado’
“Ernesto Araújo vem atacando de forma vil os diplomatas, nos acusando de sermos petistas, esquerdistas, marxistas.” 
José Fucs
O Estado de S.Paulo, 20 Abril 2020 

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Isolamento. ‘Lamento muito o nacionalismo no combate ao coronavírus’, afirma Almeida

O embaixador Paulo Roberto de Almeida, de 70 anos, não poupa críticas ao ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, e às posições da diplomacia brasileira na atual gestão. Em represália à sua conduta, foi relegado a uma função protocolar no arquivo do Itamaraty e teve o salário descontado por alegadas faltas e atrasos ao trabalho. Em março, após ver indeferidas suas justificativas, ele entrou com um processo na Justiça contra o órgão por “assédio moral” e “perseguição” de que afirma ser alvo.
Em entrevista ao Estado, Almeida falou sobre a troca de farpas do embaixador da China, Yang Wanming, com o deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) e o ministro da Educação, Abraham Weintraub, e disse que “fazer diplomacia pelo Twitter e proclamar discordâncias abertamente é errado”.

• Como está o Itamaraty hoje, sob o comando do ministro Ernesto Araújo?
        O Itamaraty vem sendo conspurcado. Desde a sua indicação, Ernesto Araújo vem atacando de forma vil os diplomatas, nos acusando de sermos petistas, esquerdistas, marxistas. Ele promoveu uma guilhotina geracional, demitindo os nove secretários que chefiavam as diferentes áreas do Itamaraty, todos embaixadores com larga experiência no exterior. Esse extermínio em massa causou uma grande comoção, porque foi um desrespeito.

Como o sr. vê a ligação do ministro com o escritor Olavo de Carvalho, a quem se atribui a sua indicação?
     O Ernesto era um burocrata comum que viu subir a onda bolsonarista e grudou nela. Ele aderiu ao ‘olavobolsonarismo’ por oportunismo. Até 2018, nada parecia indicar que aderiria a uma ideologia antiglobalista, que vem dos direitistas americanos que acham que a ONU é o diabo, o mundo é dominado pelas grandes corporações e o (megainvestidor) George Soros e a esquerda querem acabar com a soberania das nações. O Olavo grudou-se nessas ideias malucas e o Ernesto, para se qualificar ao cargo, também.

De que forma o sr. avalia as reações do embaixador chinês às publicações de Eduardo Bolsonaro e do ministro Abraham Weintraub contra a China no Twitter?
Achei muito ruim a reação dele, totalmente antidiplomática. Fazer diplomacia pelo Twitter é um erro. Os governos divulgam notas oficiais ou falam oficiosamente. Ninguém proclama abertamente discordâncias. Ainda que o embaixador quisesse reagir, nunca poderia ter feito isso daquela forma, naquele tom. É indefensável. Os chineses podem comprar soja e carne dos Estados Unidos, mas dependem muito do Brasil, do agronegócio, de minérios. Têm todo o interesse em manter boas relações com o Brasil. Agora, não podemos hostilizar a China. Apesar do erro inicial em relação ao coronavírus, quando censurou informações, a China tem um know-how essencial, além de oferecer equipamentos e recursos humanos para outros países combaterem a pandemia.

Qual a expectativa em relação ao ingresso do Brasil na Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e ao acordo Mercosul-União Europeia?
    Tanto o ingresso na OCDE quanto o acordo do Mercosul com a União Europeia não vão ocorrer sob o atual governo. Por causa do presidente e do chanceler, os países europeus fecharam as portas para o acordo com o Mercosul. Para o ingresso na OCDE, o Brasil precisaria que os 35 países-membros o apoiassem. Em outubro, o (Donald) Trump (presidente americano) falou que os Estados Unidos apoiavam o Brasil, mas isso nunca foi formalizado. Há também outros fatores pesando, como meio ambiente, direitos humanos, democracia.

Como o sr. analisa a ação de Trump contra a Organização Mundial da Saúde (OMS), cortando o financiamento americano?
    O Trump só anunciou que iria suspender pagamentos até se investigar o que houve na OMS em relação ao que ele chama de “vírus chinês”. Não houve ainda corte na cota americana. O que ocorreu foi um anúncio eleitoral do Trump para sua tropa, já que os mortos pelo coronavírus se acumulam e ele quer tirar o foco do assunto.

O coronavírus levou a um isolamento de muitos países. Como isso poderá afetar o mundo depois da pandemia?
A gente já sabe que após a pandemia o mundo não voltará a ser o que era. A geopolítica vai ser diferente. Eu aposto que a China sairá mais forte que os Estados Unidos. As empresas americanas dependem da China. Agora, eu lamento muito o nacionalismo no combate ao coronavírus. O mundo estaria bem melhor se houvesse coordenação da OMS com os governos nacionais, tanto nas medidas de restrições quanto na pesquisa e cooperação para vacinas e métodos curativos.

Feliz aniversário Barão (malgré lui) - José Maria da Silva Paranhos Jr., Paulo Roberto de Almeida

Memórias do Barão do Rio Branco (4)
Uma data para esquecer

José Maria da Silva Paranhos Jr.
Petrópolis, 19 de abril de 1908
[Transcrição e modernização da ortografia destas “memórias” por Paulo Roberto de Almeida, a partir de manuscritos encontrados nos papéis deixados pelo próprio.’

Amanhã é o meu aniversário de nascimento, o que sempre me deixa muito irritado, não tanto pela data em si, à qual não dou a mínima importância – agora que estou distante de minha família, que ficou em Paris –, mas pelo fato de que meus assessores, e mesmo gente que eu raramente vejo no trabalho diário, vêm pressurosamente prestar supostas homenagens por mais um natalício que eu preferia esquecer. O que, sim, eu gostaria de comemorar, é o aniversário do meu querido pai, o Visconde, de quem herdei esse glorioso título de “Rio Branco”, que essa nossa República tão bizarra pretende extinguir, nesses arroubos de um jacobinismo tão infantil quanto desnecessário.
O aniversário de nascimento de meu pai transcorreu pouco mais de um mês atrás, em 16 de março, e a não pude comemorar dignamente – talvez inaugurando o seu busto na nossa Secretaria dos Negócios Estrangeiros – porque eu já estava refugiado neste meu chalet de Petrópolis, a cidade do imperador, para onde venho sempre que posso. 
Já não aguento aquele ambiente ainda fétido do munícipio neutro, mesmo depois que o grande Oswaldo Cruz tentou combater os miasmas pestilenciais que sempre afugentaram do Rio todo o corpo diplomático e mesmo visitantes estrangeiros. 
O 16 de março, quando o meu querido pai poderia estar comemorando o seu 89. aniversário, passou em branco, pois, mas espero organizar uma homenagem muito mais merecida, no ano que vem, quando ele estaria completando 90 anos, se ainda estivesse vivo. Sinto muito não ter podido acompanhar seu falecimento quase trinta anos atrás, pois eu já me encontrava em Liverpool – na verdade em Paris –, quando ele nos deixou, com apenas 61 anos, mas com uma grande obra atrás de si. Ainda me lembro perfeitamente bem quando o acompanhei, ainda com cabelos negros, em sua primeira missão no Prata, para tentar resolver aquelas contendas ridículas que sempre surgem entre Blancos e Colorados, e que nos obrigaram, mais de uma vez, a intervir nos negócios internos dos nossos vizinhos da Cisplatina. Sempre desconfiei que essas nossas intrusões nas confusões dos uruguaios – mesmo atuando indiretamente, pelos “bons ofícios do Irineu Evangelista, por exemplo – poderiam ainda causar confusões ainda maiores, como de fato ocorreu logo depois, com a maldita guerra que arruinou o nosso próspero império. 
Não pude fazê-lo em sua segunda missão, da qual ele retornou cabisbaixo, sob as críticas dos seus inimigos na Assembleia e mesmo no Senado. Mas sua defesa de sete horas na Câmara Alta, foi tão memorável no desfilar dos bons argumentos, que nosso grande romancista, o velho Machado – que ficou macambúzio depois da morte da sua doce Carolina – produziu uma das mais belas crônicas que já vi publicadas nos nossos folhetins. Meu pai foi um dos maiores estadistas do Brasil, ainda que meu amigo Nabuco dispute a primazia da lista em favor do seu próprio pai, a quem dedicou dois grossos volumes que ainda não tive a pachorra de terminar. O Quincas também já vai avançado na idade, mas ainda nos tem prestado belos serviços na capital dos yankees, os quais ele passou a admirar, depois de uma fresca paixão pelos pérfidos ingleses; espero que ele consiga com o homem do porrete, Theodore, algum dreadnought desses novos, já que os malditos argentinos continuam a nos bloquear o caminho dos estaleiros britânicos. Se ele conseguisse falar com o Mahan, aposto que o homem do poder naval americano apoiaria a ideia junto ao presidente.

Ontem o Domício [da Gama] subiu a serra para me ver, e pedir que eu descesse com ele, para alguma comemoração do meu aniversário, o que me recusei a fazer. Da última vez que cá vim, suei doze lenços, desde a saída do Rio, em caleche, depois no trem que o Mauá construiu e novamente a força de animal até esta minha casinha que tem me servido bem, desde que aqui recebemos os bolivianos, para aquelas difíceis negociações do Acre. Na verdade, quem deu mais trabalho não foram nossos vizinhos, mas o meu amigo Ruy, que se mostrou intransigente na questão do pagamento do novo território e na cessão de uma nesga do nosso próprio território a eles. Acabou saindo da delegação, o que não me impediu de convidá-lo para chefiar a nossa participação na segunda conferência da paz da Haia, no ano passado, quando teve de impor todo o seu valor contra os imperialistas do velho e do novo continente. 
O Domício insistiu muito, dizendo que todos no palácio da Rua Larga gostariam de me cumprimentar, e que de mim esperavam algumas palavras de estímulo nas confusões que ainda temos de resolver com os nossos hermanos, sempre desejosos de estorvar as nossas boas relações com os amigos do hemisfério e do velho mundo. Eu confessei-lhe que já ando cansado dos problemas que eles nos causam desde sempre, mesmo depois que Roca andou por aqui, quase dez anos atrás, proclamando hipocritamente que nada nos separa. Gostaria que assim fossem, e por isso mesmo respondi a Domício que tínhamos de ver com nossos amigos chilenos se eles estão mesmo dispostos a assinar esse Pacto ABC que eu já propus desde alguns anos. Estou cada vez mais pessimista com o cenário geopolítico nestas bandas do Sul, pois os argentinos só buscam um motivo para nos prejudicar mais uma vez com paraguaios, uruguaios e bolivianos.
Disse a Domício que estava sofrendo da gota, e que assim não poderia ser desta vez que eu desceria a serra. Ele ainda insistiu comigo que o Ruy também queria me ver, para discutir a sua campanha à presidência, que ele chamou de “civilista”, para contrastar com as recentes tendências militaristas que surgiram no horizonte da nação. Domício até chegou a sinalizar que muitos lá embaixo não tinham desistido da investida de me fazer candidato à chefia do país, coisa que eu detestaria, dizendo que eu seria praticamente imbatível, dado meu rol de serviços ao país. Acenei para que ele não me importunasse mais com esse tipo de baliverne, pois eu nunca fui homem de política, menos ainda de partidos: tudo o que me interessa é a glória do Brasil nos negócios de Estado, no grande palco deste novo século tão prometedor.  
Ele se foi consternado, não sem antes me dizer que o Euclides (da Cunha) continuava aguardando algum posto permanente no nosso serviço; fiz mostra de me interessar pelo nosso homem do Conselheiro e da Amazônia, mas nunca tive muita vontade de empregar um criador de casos, sempre afetando uma superioridade que de fato ele não possui. Domício ainda me perguntou, na soleira da porta, se eu não pretendia fazer algum concurso para completar as vagas que estavam sendo criadas pela aposentadoria de antigos monarquistas, homens do meu tempo, quando o prestígio do Brasil no exterior era ainda maior. Respondi-lhe que pensaria no assunto, mas não pretendo mudar meu modo de recrutamento: eu mesmo entrevisto os candidatos segundo os meus critérios, não essas provas parnasianas, montadas por esses escriturários sem o charme necessário ao nosso serviço diplomático de inspiração britânica. 
Encomendei-lhe, ainda, quando chegou a carruagem, que pensasse em algum artista para fazer o busto do meu pai, pois lhe devíamos essa homenagem, pelos insignes serviços que ele prestou à nação, e não apenas na questão servil. Foi Paranhos pai quem, mesmo sendo matemático de formação, criou o cargo de Consultor Jurídico da antiga Secretaria de Estado dos Negócios Estrangeiros, e ainda formulou, de sua própria mão, inúmeros pareceres eivados da mais pura doutrina jurídica, e do maior rigor lógico e matemático, virtudes que se perderam depois que deixaram o posto vacante pelo resto do Império. Fui eu quem tive o prazer de restabelecer o serviço, e resolvi testar as qualidades do jovem Clovis Beviláqua, que me parece prometedor, tendo saído da mesma Escola do Recife do grande Tobias Barreto, um quase anarquista republicano, mas o único em nossas paragens que lia e escrevia perfeitamente na língua de Goethe.
Vou deixar passar o meu aniversário, e só retornar ao Rio na semana que vem, para despachar alguns assuntos no Itamaraty, e despachar alguma correspondência no próximo paquete para a Europa: meus filhos devem estar inquietos deste meu silencia inabitual. Eu espero, sinceramente, que o Ruy possa ter êxito contra aquela mula fardada que ameaça desmantelar a nossa frágil República: o marechal, que arrisca ganhar, tem aquela mesma neurose nacionalista que alimenta alguns dos piores tribunos europeus, e esse sempre foi o germe das guerras e dos conflitos. Folgo em que esses imperialistas europeus se entendam, a despeito das quizílias que andam arrumando no norte e no sul da África, depois de já terem estuprado a China, quando daquela revolução tão infeliz dos Boxers. Ando cansado de todas essas boutadeseuropeias, que pretendem que nós é que somos povos não civilizados, quando eles perpetram as piores barbaridades em todos esses locais, escravizando os indígenas, como faz aquele arrogante Leopold II no Congo; o que ele anda fazendo contra os pobres negros, naquelas terras ricas em minerais preciosos é um verdadeiro horror, segundo me relata nosso cônsul em Anvers. 
Só espero que quando eu voltar ao Rio, por um tempo o menor possível, eu não tenha de aguentar os falsos elogios de todos esses áulicos, que só me querem para uma fotografia, para depois conquistar alguma boa imagem na nossa imprensa volúvel. O Itamaraty não é velho, mas andou envelhecendo precocemente, sob a longuíssima direção do nosso Cabo Frio. Eu ainda lhe inventei um busto, alguns anos atrás, para ver se ele se decidia partir, mas o velho grudou-se como uma ostra no rochedo, e só saiu mesmo à beira da morte. O Visconde, o mais longevo dos nossos diretores gerais, e que ainda vinha dos tempos em que esse cargo tinha o título de Oficial Maior, me escondia os dossiês mais delicados, pois pretendia ter sozinho o controle da chancelaria. Não quero que nenhum dos meus assessores tenha essa pretensão, mesmo aqueles mais devotados dos secretários: vou fazer dois ou três ministros na Europa, para me livrar dos mais subservientes, pois não gosto desses que vivem sem ter opinião própria. O Itamaraty precisa ter personalidade própria e nunca mais dobrar-se aos políticos oportunistas.
Amanhã (...)

[anotações interrompidas neste ponto e o Barão não mais retomou os projetos para o dia do seu aniversário; ele parece nunca ter desistido de fazer o aniversário do seu pai, um dia de homenagem aos diplomatas da nação, como ainda quis fazer em 1909. Falta decifrar muitas outras páginas, na letra críptica do Barão.]