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sábado, 1 de setembro de 2018

Governanca democratica: minhas diferenças com os companheiros (2003)

Em agosto de 2003, estando eu mais uma vez como Encarregado de Negócios ad interim em Washington, recebi despacho telegráfico da SERE cobrando resposta a uma circular telegráfica solicitando comentários a discurso do chanceler do lulopetismo (ele, visivelmente, não só admirava seus próprios textos, talvez escritos por colaboradores, como fazia questão que todos os diplomatas lessem e comentassem), o que tive, talvez em meu próprio detrimento, de comentar, o que fiz abundantemente, numa proporção ainda maior do que o próprio texto original. Esses comentários nunca foram publicados em sua versão original, o que faço agora, para registrar que esse trabalho (n. 1092), pode ter contribuído para “agravar” o meu caso junto à nova administração, pois nele está refletida uma concepção bastante diferente daquele mantida pelos companheiros.

1092. “Governança Democrática: comentários da Embaixada em Washington”, Washington, 6 agosto 2003, 10 p. Argumentos e comentários oferecidos a discurso do Ministro de Estado das Relações Exteriores por ocasião da XXXIII Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos, realizada em Santiago do Chile em 9/06/2003, sobre o tema geral da “Governabilidade Democrática nas Américas”. Texto inédito nesse formato. 

Transcrevo primeiro o despacho telegráfico de cobrança de uma resposta da embaixada em Washington, depois o próprio discurso do ministro, seguido, finalmente, de meus comentários, como sempre prolixos e abundantes.
Paulo Roberto de Almeida 
Brasília, 1/09/2018

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(Expedientes oficiais) 


Da SERE em 01/08/2003

Circular Telegráfica para Brasemb Washington

CARAT=Ostensivo
PRIOR=Normal
DISTR=SPD/DEA
DESCR=PEMU-OEA
REF/ADIT=CIT 46364
CATEG=MG
//
OEA. XXXIII Assembleia Geral.
//

Nr. 46740/553
Muito agradeceria o obséquio de uma resposta à Circtel de referência, pela qual solicitam-se os comentários de Vossa Excelência sobre os conceitos abordados na intervenção do Senhor Ministro de Estado perante a XXXIII Assembleia-Geral da Organização dos Estados Americanos.

EXTERIORES

PAC

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Da SERE em 20/06/2003

Circular Telegráfica para Brasemb Washington

CARAT=Ostensivo
PRIOR=Normal
DISTR=SPD/DEA
DESCR=PEMU-OEA
CATEG=MG

//
OEA. XXXIII Assembleia Geral.
//

Nr. 46364/451

RESUMO=
Encontra-se disponível na internet a intervenção do
MERE perante a XXXIII Assembléia Geral da OEA.

O Senhor Ministro de Estado das Relações Exteriores realizou em 9 de junho corrente intervenção perante a XXXIII Assembléia Geral da Organização dos Estados Americanos. A íntegra do texto já se encontra disponível na página de Discursos, Artigos e Entrevistas do site www. mre.gov.br na internet. Em sua intervenção, o Senhor Ministro de Estado aborda questões relacionadas à governabilidade democrática nas esferas nacional e internacional, às condições para a sua plena consecução e ao papel a ser desempenhado pelo Estado nesse contexto.
2.Muito agradeceria os comentários de Vossa Excelência sobre os conceitos abordados na intervenção, à luz das peculiaridades desse país.

EXTERIORES

APG

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Ministro de Estado das Relações Exteriores

Santiago, Chile, 09/06/2003

Discurso pronunciado pelo Ministro das Relações Exteriores, Embaixador Celso Amorim, durante a XXXIII Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos - "Governabilidade Democrática nas Américas"

Desejo inicialmente agradecer à Chanceler Soledad Alvear a hospitalidade. É um prazer voltar ao Chile, pela primeira vez desde o início do Governo Lula. Gostaria também de expressar reconhecimento pelo trabalho realizado pelo Secretário Geral da OEA, César Gaviria, o qual tem sido inestimável ao longo de seus anos à frente da Organização. Quero referir-me, igualmente, às palavras inspiradoras do Presidente Lagos ontem à noite, durante a cerimônia de abertura da presente sessão.
A governabilidade democrática é a capacidade de exercício eficaz do poder em um quadro político de liberdade e pluralismo, no marco do Estado de Direito.
Mas além de apoiar-se na vontade popular, é necessário que os Governos adotem políticas públicas que promovam valores de solidariedade e de justiça social, que sustentem um projeto nacional sólido, conducente à diminuição das desigualdades e da exclusão social.
O Presidente Luiz Inácio Lula da Silva ressaltou em recente discurso que a "questão social é a grande fronteira a ser defendida e ampliada no mundo globalizado. Quem sabe esteja aí a missão superior do Estado nacional do século XXI." 
A democracia não se limita apenas à representação dos interesses da maioria, mas se expressa também no respeito aos direitos das minorias. Neste sentido, é fundamental buscar assegurar igualdade de oportunidade a todos os grupos sociais, que têm sofrido discriminação, ao longo da história. Não basta que a lei proteja os direitos das mulheres, dos negros e dos indígenas. Deve-se procurar, ativamente, sua maior inclusão social. No Brasil, temos orgulho de nossa composição multiétnica. Mas sabemos que ainda falta muito para assegurar igualdade de oportunidade para as minorias, que são, na verdade, em alguns casos, maiorias numéricas, como as mulheres e os negros. 
O preconceito e a discriminação devem ser enfrentados com determinação no continente. Por esta razão, o Brasil apresentou, durante esta sessão da Assembleia Geral, projeto de resolução sobre o racismo e toda forma de discriminação e intolerância, cujo objetivo é a criação de uma Convenção interamericana sobre o tema.
Avanços importantes foram registrados no campo da democracia em nosso continente. A era dos regimes de exceção chegou ao fim. No esteio dessa transformação, as leis de muitos países incorporaram importantes normas de direitos humanos e mecanismos de proteção ao indivíduo e a grupos minoritários. Foram criadas ou consolidadas instituições como ouvidorias, comissões e procuradorias de direitos humanos. Entidades da sociedade civil passaram a oferecer ao cidadão mais recursos diante de eventuais excessos do Estado. 
Isso não significa que podemos estar desatentos aos esforços para manter e preservar a democracia. Tampouco podemos descuidar da administração do Estado. Nossas nações ainda enfrentam desafios que, por vezes, suscitam questionamentos ao Estado por sua aparente falta de capacidade para resolver os problemas que mais afligem a população, como o bem-estar social e a segurança dos cidadãos. A inaptidão do Estado em enfrentar tais questões desgasta os Governos e corrói a confiança dos cidadãos, sem a qual não há governabilidade possível.
O Presidente Lula tem rebatido duas idéias que vêm sendo defendidas nas últimas décadas como se fossem verdades incontestáveis e que já revelaram sua inconsistência: a primeira é que o Estado nacional deve ser mínimo e, em conseqüência, fraco; a segunda idéia é a de que o mercado resolveria automaticamente todos os problemas da economia e da sociedade. O mercado é, sem dúvida, uma alavanca necessária na vida econômica e devemos assegurar que funcione de forma livre de práticas distorcivas que inibam a competição em detrimento da sociedade. Mas sabemos que há valores que não podem e não devem estar subordinados à lógica mercantil, como o direito de todos a um modo de vida digno, o direito a ter o que comer, o direito à saúde, o direito a ter um emprego decente e uma educação de qualidade e o direito à participação na vida cultural e política, entre outros.
É importante modernizar o Estado, para que esteja apto a lidar com as transformações atuais. Mas é ainda mais fundamental que a ação do Estado se paute por critérios democráticos, em que estejam tratados com prioridade os campos de atuação em que se concentram as maiores necessidades sociais. Tampouco pode o Estado descuidar de atividades que nem sempre o mercado atende satisfatoriamente, como o desenvolvimento tecnológico e o meio ambiente. A construção, sempre que possível, de parcerias com setores da sociedade civil é positiva, reforçando as decisões governamentais e facilitando sua implementação.
A democracia pressupõe também o combate à corrupção, em todas as suas formas e em todos os países, sejam eles desenvolvidos ou em desenvolvimento. Onde há corrupção, não há governabilidade. Nossa luta contra a corrupção, em todos os níveis de governo, deve ser implacável. Entretanto, não podemos desconhecer que, no mundo de hoje, a governabilidade do setor privado é igualmente importante. Escândalos financeiros e de má administração de empresas, sobretudo as de grande porte, provocam impactos que vão muito além de seus dirigentes e acionistas, atingindo consumidores, pequenos investidores e a sociedade como um todo. Os efeitos danosos dessas práticas questionáveis se espraiam pelas bolsas de valores das economias centrais e repercutem nas economias dos países em desenvolvimento, pelo aumento da chamada "aversão ao risco". Assim, ao mesmo tempo em que melhoramos a qualidade moral de nossos governos, devemos propiciar que se desenvolva a ética corporativa e o sentido da responsabilidade social no setor privado.
A estabilidade democrática e o desenvolvimento econômico-social são fenômenos que se reforçam mutuamente. As democracias requerem políticas sólidas, que assegurem um desenvolvimento econômico integral da sociedade. A experiência política dos países americanos demonstra que a governabilidade democrática se fortalece em um ambiente internacional de paz e de segurança. Por outro lado, não podemos ter a ilusão de que seremos capazes de preservar a governabilidade em nosso hemisfério sem um contexto de governabilidade em nível global, o qual só pode ser assegurado por meio do respeito pleno às instâncias multilaterais, a começar pelas Nações Unidas.
Como afirmou o Presidente Lula em Evian, "o multilateralismo representa, no plano das relações internacionais, um avanço comparável ao da democracia em termos nacionais. Valorizá-lo é obrigação de toda nação comprometida com o progresso da civilização, independentemente de sua dimensão econômica e de seu peso político e militar". As ações governamentais decorrentes do processo democrático são duradouras porque se assentam em base legítima. Da mesma forma, decisões emanadas de foros multilaterais gozam de maior apoio e, por isso, são mais efetivas no longo prazo.
A governabilidade democrática em cada país não prescinde da solidariedade e de um ambiente internacional minimamente favorável. Os países em desenvolvimento, inclusive os da nossa região, necessitam de regras de comércio internacional justas, que garantam acesso de seus produtos aos mercados dos países desenvolvidos e não criem constrangimentos insuperáveis à necessidade de promoverem políticas industriais, tecnológicas e de desenvolvimento social, entre outras.
Negociações comerciais complexas, como as em que nossos países estão envolvidos (e que vão muito além do que se costumava entender por Acordo de Livre Comércio) terão efeitos profundos e duradouros no nosso ordenamento socioeconômico. Daí o compromisso do Governo do Presidente Lula de promover a consulta aos diversos setores da sociedade, o que inclui naturalmente os empresários, mas também sindicatos de trabalhadores, associações profissionais, entidades da sociedade civil e, sobretudo, o Congresso Nacional. Isso também é governabilidade democrática.
Igualmente, temos que nos valer de imaginação e ousadia, a fim de encontrarmos soluções para a escassez de recursos necessários ao combate à fome e à pobreza extrema, e aos investimentos em infraestrutura, essenciais ao desenvolvimento e à integração. No recente encontro de Evian, o Presidente Lula sugeriu a criação de um fundo mundial contra a fome. O Presidente mencionou duas hipóteses de financiamento. Uma delas seria a taxação do comércio internacional de armas. Outra possibilidade seria criar mecanismos para estimular que os países ricos reinvistam nesse fundo percentagem dos juros pagos pelos países devedores. Os Chanceleres do Grupo do Rio igualmente discutiram, em Cusco, iniciativa no sentido de estabelecer mecanismos financeiros inovadores com o fim de financiar projetos de desenvolvimento da infra-estrutura. 
Tornamo-nos mais conscientes de que a consolidação da democracia é uma tarefa permanente de todos os povos. Sabemos que as alternativas ao Estado de Direito serão sempre o medo e a violência. Devemos reconhecer a necessidade de promover e defender ações que se apóiam na liberdade, na paz e na justiça social. 
A construção da democracia baseia-se na segurança de que a todos será oferecida a oportunidade de um mundo melhor, independentemente de raça, gênero ou origem social ou étnica. A trajetória pessoal e política do Presidente Lula é a prova de que o sonho e a legítima aspiração por melhores condições de vida podem se concretizar, por meio do diálogo, da convicção e da persistência, sem o recurso à violência e não obstante as adversidades. Enquanto houver pessoas privadas de seus direitos fundamentais, a democracia não estará sendo exercida em sua forma plena. Não é possível continuar convivendo com a exclusão social de centenas de milhões de homens, mulheres e crianças no nosso continente. Nas palavras do Presidente Lula, "a fome não pode esperar. É preciso enfrentá-la com medidas emergenciais e estruturais. Se todos assumirmos nossas responsabilidades, criaremos um ambiente de maior igualdade e de oportunidade para todos". Somente assim asseguraremos a verdadeira governabilidade democrática.
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Governança Democrática: comentários da Embaixada em Washington

Argumentos e comentários oferecidos
a discurso do Senhor Ministro de Estado das Relações Exteriores
pela Embaixada em Washington
(Paulo Roberto de Almeida)



O discurso pronunciado por V.Excia, na XXXIII Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos, realizada em Santiago do Chile em 9 de junho de 2003, sobre o tema geral da “Governabilidade Democrática nas Américas”, contém, simultaneamente, elementos conceituais (e portanto balizadores de uma certa concepção do mundo), argumentos empíricos sobre a materialização dessa ideia no hemisfério e princípios definidores de algumas diretrizes políticas e diplomáticas para a atuação do Brasil no cenário internacional. Pretendo tratar de forma integrada desses três conjuntos de questões, enfocando-os da perspectiva deste posto, como solicitado na circular telegráfica nº 46364/451.

2.           O sistema democrático, na tradição clássica, era de fato caracterizado pela dimensão puramente política, ou institucional, do jogo político, em sistemas nacionais que, seja pelo exercício do voto censitário, seja por diferentes mecanismos de restrição das franquias democráticas, tendiam a excluir uma grande maioria da população não só dos instrumentos de representação mas igualmente dos mecanismos decisionais. A democratização social e política, em escala mundial, ocorrida no decurso do século XX, em especial a vaga de redemocratização registrada na América Latina em suas duas últimas décadas, trouxeram, como complemento das instâncias puramente políticas de governabilidade, a necessidade de serem implementadas políticas setoriais e globais de solidariedade e de justiça social, como justamente observado por V.Excia na abertura do discurso de Santiago. A diminuição das desigualdades e da exclusão social pode ocorrer, mais raramente, mediante convulsões sociais – como foi o caso do México, cerca de cem anos atrás – mas seria bem melhor implementada se resultando de um certo consenso nacional em torno de valores compartilhados (talvez como os dos founding fathersdeste país), como pode ser o caso de processos transformistas conduzidos por elites esclarecidas ou, de forma geralmente mais desejável, pela via de um projeto nacional sólido, como também observado nesse discurso. 

3.           A experiência histórica brasileira, nos quase dois séculos de Estado nacional desde a Independência constitui, infelizmente, uma demonstração de ausência total de transformação pelo consenso, de impossibilidade estrutural de se conjugarem forças sociais para uma mudança de tipo radical, assim como de cabal inépcia das elites para se lançarem em um processo transformista pelo alto, capaz de conjugar conservação do poder político e incorporação social e econômica das camadas ditas subalternas. Foi preciso de fato aguardar a vitória democrática de um partido genuinamente de massas e identificado com essas mesmas camadas para que fosse possível começar a pensar-se na formulação de um projeto nacional de promoção e de inclusão social. É minha interpretação que esse projeto nunca foi explicitado de maneira clara nos EUA, país no qual é a sociedade que exerce a democracia, muitas vezes contra o Estado, em um processo de Nation buildingque carece de um centro organizador claramente definido, ao contrário do que ocorre no caso brasileiro, onde a anomia societal conduziu à hiperextensão e centralização estatais, e daí aos projetos de construção nacional formulados de maneira recorrente ao longo da história.

4.           É minha interpretação, igualmente, que o atual projeto brasileiro não se encontra ainda acabado, uma vez que o que resultou vencedor no escrutínio de outubro de 2002 vem sendo aperfeiçoado pelo teste da governança prática, que deve necessariamente aliar demandas ilimitadas por parte da sociedade – resultado de décadas, senão de séculos de políticas excludentes – com as naturais limitações físicas de recursos para o exercício do processo transformador acima assinalado. Sem dúvida que a grande fronteira ainda a ser conquistada no mundo moderno é a das barreiras internas à inclusão social, que constituem ao mesmo tempo a fonte principal e a alavanca política das demais barreiras e divergências existentes no sistema internacional. A questão social é de fato e de forma dramática o fator singular mais importante que diferencia o Brasil – país satisfatoriamente industrializado e de certa forma capaz de acompanhar o progresso tecnológico da humanidade – do resto dos países medianamente desenvolvidos (aqueles de industrialização relativamente tardia, coincidente com a segunda revolução industrial) e, a fortiori, dos países mais avançados, para os quais simplesmente não existe um problema de desenvolvimento, mas tão simplesmente o da administração das necessidades “supérfluas”. 

5.           Em contrapartida, como bem detectado de forma instintiva pela liderança natural representada pelo presidente Lula, o Brasil possui um grande problema de desenvolvimento, que é também o leit-motiv de nossa diplomacia desde meados do século XX, pelo menos. Esse problema não se limita a assegurar progresso social e inclusão econômica de forma ampla e generalizada, mas também deve corrigir distorções ainda mais gritantes de nossa iníqua estrutura social, que se traduz na dupla exclusão sofrida pelas minorias étnicas (negra e indígena) e pela componente feminina da população brasileira, como também identificado corretamente no referido discurso. Essa exclusão muitas vezes se desdobra na prática intolerável do racismo, que deve ser combatido não apenas com todo o rigor da lei, mas igualmente pelo exemplo, com manifestações de tolerância e de inclusividade étnica, como vem justamente sendo demonstrado pela experiência histórica do Brasil. Em contrapartida, os EUA não têm, minimamente, um problema de desenvolvimento social, mas tão somente um de administração de recursos alocados pela sociedade, de modo amplamente democrático diga-se de passagem, para usos alternativos definidos correntemente na teoria econômica, inclusive de forma irracional e perdulária, como podem ser alguns programas militares ou de subvenções setoriais. Os EUA também exibem, em contraste com a experiência brasileira de mistura étnica, um verdadeiro apartheid racial, que se manifesta na existência de uma cultura negra – ideologicamente chamada de afro-americana – totalmente estranha, e de certa forma oposta, às demais correntes étnicas do melting-pot.

6.           O Brasil, como também referido no discurso de V.Excia., ofereceu ao continente, no decurso do último processo eleitoral, um exemplo de transição democrática e de estabilidade institucional que há muito faziam falta na região, não obstante a amplitude da mudança de orientação política de fato registrada por meio das urnas e sobretudo na consciência cidadã. Isso significou que a maioria absoluta da população aderiu a um conjunto de mensagens que visavam não apenas valorizar a participação política e social de todos os cidadãos no processo de mudança “societal”, como também buscavam impulsionar uma série de políticas tendentes retomar o projeto nacional indutor de desenvolvimento que vinha sendo sugerido pelo partido que finalmente converteu sua maioria sociológica em maioria congressual. Assim, se parece razoável afirmar que a democracia já não mais constitui um “problema” no Brasil, tendo sido superadas as amarras que a faziam restrita e canhestra até um passado ainda bem recente, parece claro, também, que persiste um grave problema de inclusão social e de desenvolvimento econômico, revelado, de modo amplo, nas carências terríveis que afligem grande parte da população brasileira. Esse problema não é somente do Estado, mas da Nação, pois que o Estado detém apenas instrumentos administrativos para selecionar políticas setoriais e nacionais indutoras de progresso técnico ou tecnológico, mas não consegue, por si só, mudar a face de todo o País, tarefa acima de suas forças (sobremodo restritas num país imenso e ainda parcialmente indevassado como o Brasil). 

7.           Por isso mesmo, me parecem totalmente pertinentes os argumentos do presidente Lula quanto à inconsistência da ideia de Estado mínimo e à ineficácia dos mecanismos de mercado para corrigir as mais graves distorções sociais e econômicas existentes na sociedade. Estado ativo e sistema político aberto à participação ampla da cidadania foram aliás os fatores de progresso social nos países modernamente democráticos e economicamente avançados, ainda que em alguns deles – aqueles que justamente não conheceram revoluções burguesas, como evidenciado na obra de um antigo intelectual do PT, como o sociólogo Florestan Fernandes – o processo de industrialização possa ter sido feito, no passado, ao abrigo de regimes autoritários e socialmente excludentes (como de resto ocorreu também no Brasil). Em nenhuma dessas experiências históricas bem sucedidas em termos de inclusão das camadas subalternas, a correção das mais graves iniquidades sociais se fez pela via do mercado, mas pela da promoção educacional e pela redistribuição fiscal induzida por políticas tributárias progressivas aplicadas em bases nacionais. Os EUA não conheceram redistribuição tributária antes de já iniciado o século XX – ainda no final do século XIX a Suprema Corte declarava inconstitucional o imposto de renda individual – mas, em contrapartida, tiveram estruturas educacionais contemporaneamente à própria formação da sociedade nacional. 

8.           Os campos do desenvolvimento tecnológico e do meio ambiente, identificados no discurso de V.Excia. como exemplos relativamente indiferentes à ação “cega” do mercado, me parecem, efetivamente, constituir aqueles nos quais externalidades negativas podem dificultar o processo de catch-upe de correção de perdas globais que penalizam a sociedade como um todo. Eles são, portanto, suscetíveis de receberem sinalizações adequadas por parte do poder público como forma de corrigir aqueles fatores de “cumulatividade negativa” que penalizam o processo brasileiro de desenvolvimento, já identificados em obras de economia política como as de Celso Furtado. O correto funcionamento da máquina estatal, com uma justiça eficiente e a ausência de mecanismos de rent-seekinge de redistribuição pelo alto, como muitas vezes ocorreu no Brasil – com elites mais ou menos predatórias do patrimônio público – também me parecem condições essenciais para o progresso e a inclusão sociais. Mesmo a corrupção que ocorre inteiramente no setor privado é suscetível de ser coibida pelo Estado, pois que podendo dilapidar os recursos de pequenos poupadores individuais, confiantes no funcionamento adequado dos mercados de valores e dos fundos de investimentos. Também aqui o exemplo americano oferece uma experiência positiva, tanto pelo lado da sustentação estatal de programas de pesquisa científica, como pela existência de uma justiça eficiente, rápida e relativamente transparente. Os sistemas constitucional e federativo, porém, funcionam de modo muito diverso nos EUA e no Brasil, a despeito de similaridades superficiais. 

9.           Todos esses elementos – que se identificam com os princípios da chamada “good governance” e da “accountability”, para usar dois conceitos em voga neste país – podem ser transpostos no plano internacional, cenário no qual se observam iniquidades e divergências de níveis de vida tão ou mais brutais do que aqueles existentes no interior de sociedades de outra forma relativamente industrializadas, como o próprio Brasil. As duas últimas décadas do século XX assistiram ao crescimento das divergências sociais e das disparidades de renda, dentro dos e entre os países, aprofundando tendências que se encontravam latentes desde a segunda revolução industrial. Essa situação conspira contra a democracia dentro dos países e na própria comunidade internacional, como revelado, em outra dimensão, pela ascensão aparentemente irresistível da potência imperial ao píncaro do poder e da supremacia tecnológica na atualidade e as deformações daí decorrentes para uma governança global legitimamente democrática. 

10.         Tenho dúvidas, porém, de que as divergências socioeconômicas e os déficits persistentes de democracia no mundo, possam ser corrigidos pela “ação natural” do sistema multilateral – que não pretendo comparar, mecanicamente, às forças do mercado –, em virtude de uma contradição que vejo como decisiva e fundamental na forma de representação de uma e outra instância, a nacional e a internacional. Na primeira, pode-se efetivamente assegurar a validade e a legitimidade do princípio “uma voz, um voto”, ao passo que na segunda, pela natural assimetria do corpo representativo, a proporcionalidade “real” se encontra totalmente deformada pela observância formal do princípio vestfaliano da soberania absoluta das nações. Dito em uma palavra, Timor Leste e China possuem cada qual um voto no sistema onusiano, ainda que esta possa abrigar milhares de “Timor Leste” se observado o princípio estrito da proporcionalidade. Como “obrigar” democraticamente ambas as nações a determinados compromissos internacionais se subsiste tal desproporção na representação? Não preciso dizer que os EUA desprezam solenemente qualquer sistema “universal” que busque sobressair-se ao poder indivisível do Estado soberano “vestfaliano”, não porque ostentem qualquer anti-multilateralismo arrogante ou anti-democratismo visceral, mas porque acreditam que seu modo de vida – que eles chamam freedom– só pode ser preservado nos quadros do Estado nacional. 

11.         O multilateralismo é, sem dúvida, um avanço considerável no plano das relações internacionais, quase tão importante quanto o princípio democrático nos processos de Nation building, mas ele não me parece suficiente, ou adequado, por si só, para corrigir distorções de desenvolvimento ou divergências de progresso tecnológico, que encontram raízes no plano essencialmente interno, ou “societal”, não apenas como resultado de espoliação colonial ou de dominação por economias mais avançadas. A grande tarefa do desenvolvimento me parece uma missão fundamentalmente interna, apoiando-se antes de tudo na educação, ainda que possa vir a contar com aportes de recursos externos e que também possa beneficiar-se de um bom ambiente internacional (comércio e intercâmbio tecnológico, por exemplo). Ainda que a solidariedade possa ser proclamada como princípio válido, ela é mais suscetível de encontrar-se nos casos de assistência, que não trazem de verdade o desenvolvimento, já que, no mais das vezes, as relações interestatais continuam a ser caracterizadas pelos interesses materiais, por vezes de forma bastante egoísta como se sabe (a exemplo do protecionismo e do subvencionismo agrícolas europeu, notoriamente fonte de iniquidades e de injustiças no plano do comércio internacional). 

12.         Ao lado do problema do desenvolvimento, afetando seguramente três quintos da humanidade, situa-se o problema do poder, caracterizado por doses ainda maiores de assimetria no plano internacional, terreno no qual o multilateralismo constitui, sem dúvida alguma, nosso mais potente aliado contra o arbítrio dos poderosos e arrogantes. Ainda aqui, acredito que a eventual correção dessas desigualdades não se situa tampouco no plano multilateral, que não é senão o reflexo de diferenciais de poder construídos no plano nacional, do State making. A diminuição dessas diferenças de poder não se dará pela cooperação internacional, mas por um processo de capacitação tecnológica interna, que não necessariamente precisa enveredar pela via militar, ainda que esta não deva estar excluída tampouco. Não há decisão multilateral capaz de corrigir os diferenciais de poder, assim como dificilmente a cooperação internacional conseguirá, por si só, eliminar as divergências de desenvolvimento entre os povos. Creio que os EUA encarnam, justamente, o melhor e o pior de um sistema internacional tendencialmente democrático, mas ainda marcado por diferenças quase irredutíveis de interesses entre os estados.

13.         Dito isto, concordo totalmente com os argumentos de V.Excia. quanto ao caráter imprescindível de um sistema multilateral de comércio aberto e equitativo para fins de desenvolvimento econômico e tecnológico, suscetível inclusive de praticar “discriminações positivas” em favor dos países em desenvolvimento, assim como no plano interno são justificadas as ações afirmativas de promoção dos estratos mais desfavorecidos da população – negros, indígenas, outras minorias –, que se ressentem de “externalidades negativas” ou do acúmulo de barreiras ao seu processo ascensional, fruto de eras de dominação não democrática. Essas “ações afirmativas” podem ser praticadas sob a forma de políticas setoriais (industriais ou tecnológicas), ainda que nesse terreno eu prefira a transversalidade ou o caráter horizontal desse tipo de política – a exemplo dos investimentos extensivos em educação de pobres e excluídos, inclusive com bolsas-escola para negros ou cursos gratuitos para pobres em geral, antes que quotas ou reservas de vagas –, alternativamente à seleção de determinados beneficiários, o que pode acabar acentuando a regressividade da distribuição estatal e a consequente alocação de recursos de toda a sociedade para os já incluídos, quando não os ricos absolutos (que seriam os industriais paulistas, por exemplo, em face dos sem terra do Nordeste, num caso hipotético). Nos EUA, por exemplo, as políticas industriais (posto que descentralizadas) são conduzidas pela via dos investimentos públicos (nos vários níveis) em instituições de CeT e pelas inversões privadas em ReD, ou então pela indução das compras governamentais (muitas vezes maciçamente, até de forma perdulária, como no caso do Pentágono).

14.         Certamente que os processos negociadores atualmente em curso nos planos sub-regional, hemisférico e do sistema multilateral de comércio terão um impacto decisivo no perfil imediato e futuro do desenvolvimento industrial e tecnológico brasileiro e também concordo com V.Excia. em que determinados aspectos dessas negociações vão muito além do livre-comércio costumeiro e “normal”. Minha tendência é porém a de não superestimar o potencial transformador desses acordos e processos de liberalização para o chamado “ordenamento socioeconômico” do País, por não acreditar que o rabo comercial seja capaz de, sozinho, abanar o cachorro do desenvolvimento. Não desejo tampouco subestimar esse impacto, inclusive porque, como ressaltado no discurso e nas demais manifestações de V.Excia., alguns acordos não são meramente comerciais. Mas retiro essa relativa “desimportância” dos impactos desses acordos – tanto negativos quanto positivos, vale dizer – da experiência precedente de outros acordos de liberalização (como o Nafta, por exemplo) ou de abertura de mercados no quadro das rodadas comerciais anteriores, de resto muito pouco transformadores das estruturas econômicas ou sociais de países como o México ou mesmo Canadá (contra as previsões mais pessimistas, ou mais otimistas, feitas por opositores e partidários desses acordos). São os efeitos indiretos dos aumentos de competitividade e de produtividade (por vezes induzidos por mudanças mais internas do que externas), mais do que a abertura comercial em si, que conseguem produzir impactos mudancistas mais substanciais, como experimentado em processos históricos dignos de nota, como no caso de alguns tigres asiáticos ou mesmo da região. O Chile, por exemplo, modificou a natureza e a orientação de sua política econômica interna muito antes de tornar-se adepto do livre-cambismo irrestrito e universal. Na nossa sub-região, doze anos de Mercosul não lograram transformar decisivamente países como Paraguai e Uruguai, de resto insulados de seus efeitos mais impactantes por exclusões nacionais e setoriais que têm atuado como salvaguardas permanentes a um processo mais amplo de liberalização.

15.         Os EUA, como se sabe, sempre estiveram na vanguarda dos processos de abertura econômica e de liberalização comercial conhecidos pela ordem econômica internacional do último meio século, por vezes de maneira altruística, mas mais frequentemente por interesse próprio, como soe corresponder a uma economia baseada na livre iniciativa e no princípio da vantagem individual. A economia capitalista brasileira não se organiza de modo diferente, mas obviamente não dispõe ainda de condições para enfrentar de modo aberto esse tipo de concorrência darwiniana. Acredito que os EUA estejam dispostos a reconhecer necessidades específicas dos países em desenvolvimento, mas é óbvio que o quadro mental no qual evoluem os negociadores americanos tende a privilegiar os interesses das suas corporações, antes que projetos nacionais de desenvolvimento formulados por Estados soberanos. Daí as diferenças percebidas hoje nos enfoques da liberalização hemisférica ou multilateral privilegiados respectivamente pelo Brasil e pelos EUA. 

16.         O bom relacionamento já alcançado no plano político por ambos os países, em especial por seus dirigentes máximos, conseguirá, no entanto, pelo menos acredito, encontrar um terreno de conciliação entre os interesses parcialmente divergentes dos dois maiores estados do hemisfério no plano econômico. A manutenção de um bom nível de diálogo entre ambos, como demonstrado por V.Excia. nesse encontro hemisférico de Santiago, contribuirá para que se alcance esse objetivo. Finalmente, agradeço a V.Excia. a oportunidade que me foi dada de comentar um texto denso e enriquecedor do debate político na Casa de Rio Branco.

 PAULO ROBERTO DE ALMEIDA, Encarregado de Negócios

Washington, 5 de agosto de 2003


O presidente hesita (2003), entre a primeira viagem à Africa e a reforma da Previdência

Em meados de 2003, eu tinha recebido convite para trabalhar no “Núcleo de Assuntos Estratégicos”, mas também para assessorar diretamente o seu chefe, enquanto um dos ministros mais próximos do presidente. Durante os dois anos em que o assessorei, elaborei uma série de “memos” sobre os mais diversos assuntos, que talvez um dia consolide numa pequena brochura informativa sobre meu trabalho, à margem da agenda normal do NAE. Mas, comecei a assessorá-lo imediatamente, ainda em Washington, enviando material que considerava útil ou pertinente à própria agenda externa da Presidência da República. Exemplo disso é o trabalho 1083, elaborado numa curta passagem por Brasília (exatamente para definir o meu futuro profissional), quando o presidente hesitava em fazer sua primeira viagem à África, por causa de greve de funcionários públicos – os mandarins da República – contra projetos de reforma da Previdência. Elaborei parágrafos para pronunciamento do chefe de Estado à nação, tocando nas duas questões, mas no caso da África, nunca tive essa ideia, formulada pelos petistas e outros “intelequituais” da mesma vertente, de que nós, brasileiros, tivéssemos uma “divida histórica” com os africanos por causa dos séculos de escravidão. Acredito que meu texto não serviu para nada, como vários outros que elaborei ao longo desse período em que fui colaborador direto do regime (embora nunca tenha abandonado meu olhar crítico sobre o regime e suas políticas). 
1083. “Sugestões para Pronunciamento”, Brasília, 23 jul. 2003, 2 p. Texto em forma de pronunciamento público do Presidente da República sobre reforma da Previdência, contendo igualmente elementos sobre viagem à África. Encaminhado ao Ministro-Chefe da Secretaria de Comunicação de Governo e de Gestão Estratégica (xxx), com cópia ao presidente do IPEA (xxx).
Paulo Roberto de Almeida 
Brasília, 1/09/2018

Algumas sugestões para pronunciamento (do PR)

Caros brasileiros e brasileiras, meus concidadãos,

            Dentro de alguns dias estarei partindo para a África, um continente cujo grau de sofrimento humano, nos últimos anos, não encontra paralelo com o mais iníquo grau de miséria social porventura existente em quaisquer outros continentes, e também no Brasil.
            Estarei levando não apenas uma mensagem de solidariedade do povo brasileiro, o mais africano de todos os povos da América Latina, mas também uma promessa de cooperação que nós, brasileiros, devemos e iremos cumprir em benefício de nossos irmãos africanos. Faremos isso por uma simples questão de justiça e de solidariedade humana e também porque queremos dar um testemunho sincero de que reconhecemos os laços históricos e sobretudo afetivos que nos unem àquele tão sofrido continente.
            A África, não apenas por culpa do colonialismo europeu, conheceu devastações humanas inimagináveis em qualquer outra experiência social em nosso século: guerras civis, epidemias cruéis como a da AIDS, a incúria de elites e das classes governantes, a negligência pouco benigna de nações mais poderosas, bem como barreiras inaceitáveis e a concorrência desleal dos subsídios agrícolas abusivos e do protecionismo deslavado dos países ricos, onde as vacas dispõem de uma renda superior à da média dos africanos.
            Estarei, portanto, levando uma mensagem de solidariedade e de esperança, para dizer que o povo brasileiro deseja e vai participar do processo de soerguimento das nações africanas, com toda a generosidade que permitem nossos limitados recursos para cooperação internacional. Mas faremos um esforço especial em direção de nossos irmãos africanos.
            
            Não quero, porém, partir sem antes dirigir algumas palavras a meus concidadãos, em face das ameaças de greve anunciadas por uma categoria de funcionários públicos contra os projetos de reforma da Previdência, projetos que foram há muito anunciados pelo meu partido e pelo próprio Governo.
            Não desejo entrar em polêmicas públicas sobre o conteúdo mesmo dessas reformas, pois que a responsabilidade pela sua aprovação incumbe soberanamente ao Congresso Nacional, que a elas dedicará o melhor dos seus esforços, com a convicção de que estará restaurando padrões de equidade e de moralidade públicas que há muito todo o Brasil reclama.
            Sinto-me, no entanto, no dever de trazer aos brasileiros e brasileiras, inclusive aos milhares de funcionários públicos que se sentem intranquilos com os rumos dessas reformas, algumas palavras de esclarecimento e alguns elementos de informação sobre o sentido e a justificativa moral da reforma da Previdência.

            Em primeiro lugar, cabe advertir que a reforma da Previdência não está dirigida contra os funcionários públicos. Ela se coloca, sim, a favor e em benefício de todos os brasileiros, de todas as categorias profissionais e de todas as camadas sociais.
            A reforma não está sendo feita para retirar direitos de alguns, mas para garantir a todos os brasileiros, sem qualquer discriminação, o direito de se aposentarem com a certeza de que as suas pensões não serão um dia atingidas pela falência do Estado e pela inadimplência geral do sistema previdenciário injusto e iníquo que existe hoje.
            A reforma não está sendo feita para retirar benefícios de uma categoria para atribuí-los a outras, mas para evitar que os nossos filhos e netos, e provavelmente até nós mesmos, nos deparemos com um rombo criminoso e inaceitável nas contas públicas, rombo que vem sendo construído nos últimos anos e décadas justamento pelo fato de que alguns poucos são absurdamente privilegiados com pensões abusivamente altas, enquanto a vasta maioria dos aposentados sobrevive com pensões ridículas, mas que ainda assim também estão ameaçados pela falência futura de todo o sistema.

            Gostaria que vocês contemplassem estes poucos gráficos para se darem conta do que estou falando. [exemplos em anexo, não transcritos]
            Como vocês podem constatar aqui, a quase totalidade dos brasileiros aposentados, seja no sistema geral, seja no sistema público, tem uma média de proventos de (xxx) reais por mês. Apenas uma porção mínima dos inativos, menor do que (x) por cento, dispõe de uma renda média de (xxx) reais. Estes se situam no setor público (em especial no Judiciário e no Legislativo).
            A média de contribuição dos brasileiros ativos é de (xx) anos, para (xx) anos de benefícios. Na outra ponta, assistimos a funcionários que se aposentam em média com 48 ou 50 anos, e cujos proventos, durante 20 ou 25 anos adicionais, por vezes extensíveis às viúvas ou filhas solteiras durante mais 10 ou 15 anos, superam largamente a média de suas contribuições durante a atividade.
            
            Quero também dizer a vocês que não existe um único país no mundo, mesmo entre os mais ricos dos desenvolvidos, que mantenha, como o Brasil, um sistema segundo o qual o inativo continua a ganhar, na inatividade, tanto quanto, ou por vezes mais, do que ganhava na sua vida ativa.
            Também são muito poucos os países, se é que existe algum, nos quais um trabalhador se aposenta com 48 ou 50 anos, passando a receber a integralidade do que ganhava até então.
            Ao contrário, sei de países que fizeram plebiscitos, sim, para reformar a Previdência, mas foi para elevar a idade mínima de aposentadoria de 60 a 65 anos, com tendência inclusive à equiparação entre o homem e a mulher.
            Eu, pessoalmente, acho que apesar de a mulher viver mais do que o homem, ela merece se aposentar alguns anos mais cedo, em virtude da dupla jornada que as companheiras são obrigadas a fazer, com os encargos domésticos e de criação dos filhos que muitas vezes não são compartilhados pelos companheiros. 

            Por isso eu quero fazer um apelo a todos os meus concidadãos, em especial aos funcionários públicos para que não deixemos que interesses particularistas se sobreponham ao bem comum de todos os brasileiros.

            O Brasil precisa dessa reforma, NÃO para obedecer algum organismo internacional, nem para contentar especuladores externos. 
            O Brasil precisa dessa reforma para que, em primeiro lugar, a justiça social prevaleça nesta terra, e para que, em segundo lugar, nós tenhamos simplesmente o que retribuir para todos aqueles que trabalharam a vida inteira e que têm o direito de se aposentarem com uma pensão condigna.

            O Brasil precisa dessa reforma NÃO para salvar banqueiros e acalmar os mercados. Mas o Brasil precisa dessa reforma para dar dignidade aos seus filhos e para salvar-se a si mesmo.

            Meus caros brasileiros e brasileiras,
            A reforma não é contra ninguém. A reforma é a favor do Brasil. 
            Ajudem-me a fazer deste País uma pátria de todos e não o país de apenas alguns.
            Eu quero fazer do Brasil uma Nação de pessoas que possam ter a certeza de que, ao nascer, TODOS terão oportunidades e direitos iguais.

            Ajudem-me a dar ESPERANÇA a nossos filhos e netos, e também a nós mesmos.

            Muito obrigado a vocês. Boa noite a todos e a todas.


(PRA: Brasília, 23 de julho de 2003)

Vivendo com Livros: minha pouco secreta obsessão - Paulo Roberto de Almeida

O texto abaixo, aproveitando uma introdução a uma coletânea de minhas resenhas de livros feita em Paris, em 1994, deveria servir de Introdução a uma seção de resenhas de livros que eu me propunha fazer para um site eletrônico de cultura, que no entanto desapareceu no meio do caminho. Todas as resenhas, já feitas, e as preparadas especialmente para esse site, ficaram órfãs, portanto, ou na verdade no limbo, pois que não ficaram em nenhum veículo estável, a não ser, ocasionalmente e oportunamente aqui mesmo. Mas eu precisaria recuperar agora a lista das resenhas "publicadas" nesse site descontinuado.
Sem tempo para fazê-lo agora, opto por simplesmente republicar essa Introdução, pois ela faz parte, digamos assim, de minha segunda, talvez primeira, personalidade, a de leitor voraz e a de compulsivo resenhista, ainda que eu não tenha tempo de fazer as grandes resenhas que admiro na New York review of Books. Por isso, também faço mini-resenhas, que publico na revista da ADB regularmente, desde mais de 12 anos. Mas estas são exclusivamente de livros de diplomatas, por isso, "discriminatórias", quando eu gosto de fazer resenhas de todos os livros interessantes que leio.
Até já criei um blog exclusivamente dedicado aos livros e resenhas de livros, mas também descontinuado, pois não tenho tempo de manter todos os blogs que aparecem na lista da direita, ao lado, pois tudo isso é feito exclusivamente por mim.
Em todo caso, aqui vai meu desejo secreto: viver de leituras e resenhas, e de me especializar em resenhas de livros com mais de 150 anos de publicados. Um dia chegará...
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 1/09/2018

Vivendo com Livros
uma introdução quase desnecessária


Paulo Roberto de Almeida
Washington, 19 de julho de 2003

Es, pues, de saber, que este sobredicho hidalgo, los ratos que estaba ocioso... se daba a ler...; y llegó a tanto su curiosidad y desatino en esto, que vendió muchas hanegas de tierra... para comprar libros... y así llevó a su casa cuantos pudo haver dellos. (...) En resolución, él se enfrascó tanto en su lectura, que se le pasaban las noches leyendo de claro en claro, y los dias de turbio en turbio; y así, del poco dormir y del mucho leer se le secó el celebro, de manera que vino a perder el juicio.
Don Quijote, Miguel de Cervantes Saavedra

Ainda não me ocorreu, apesar do excesso de leituras, a fatalidade que se abateu sobre o cavaleiro da Mancha. Em todo caso, meu cérebro não parece ter secado pelo fato de também passar muitas noites na companhia dos livros ou escrevendo sobre eles. Esta nova coleção de resenha-artigos sobre livros, que fala exclusivamente de como os livros me fizeram seu prisioneiro – a ponto de me terem convertido em uma espécie de biblio-addict–, pode ser considerada como o resultado dessas muitas noites (e dias) de leitura.
Quando escrevi, no subtítulo, que se trata de uma introdução quase desnecessária foi porque tenho plena consciência de que seções, ou colunas, de resenhas de livros em publicações regulares não precisam, a rigor, de nenhuma explicação inicial ou de qualquer tipo de justificativa para os leitores interessados. Essas resenhas devem se sustentar por si mesmas, sem qualquer muleta interpretativa. Qualquer leitor sabe o que é uma resenha, ora bolas!
Mas como sempre mantive o desejo pouco secreto de “possuir” a minha própria coluna de livros, sinto que seria uma violência para comigo mesmo se eu decidisse, asi no más, começar a “minha” seção colocando simplesmente uma resenha qualquer e dando o empreendimento por inaugurado. Não! Um événementsimbólico desse tipo requer um tipo qualquer de cerimônia, de fato não um qualquer, mas uma inauguração à altura da glória da missão, dessas com champgneno casco, bandeiras despregadas, banda de música, discursos de cartola e casaca, enfim, un peu de formalité, que diable!
Por isso resolvi “enfeitar” um pouco a inaguração de minha coluna e fazê-la ser precedida de um bom discurso antes de “lançá-la ao mar” com pompas e circunstãncia, ao encontro de seus eventuais leitores e dos poucos náufragos que encontrar pelo caminho. Fico imaginando se alguns desses seres resgatados no imenso deserto livresco em que parece ter se convertido o Brasil não se assemelharão, ao menos parcialmente, ao autor dessas linhas, um bibliovoro voraz e irrecuperável, capaz de fazer de tudo para ficar na companhia dos livros, talvez até trair a família e quem sabe sacrificar a própria saúde. 
De fato, essa “loucura gentil” a que já foi identificado o hábito arraigado da leitura ou a paixão obsessiva pelos livros, é capaz de muitos estragos involuntários, nem todos eles prejudiciais, por certo, à saúde mental ou financeira do “contaminado”, mas todos eles conducentes a um certo isolamento voluntário, a certos hábitos estranhos como o de sair de um livro para mais dois ou três citados no primeiro ou ficar fazendo notas ilegíveis em qualquer pedaço de papel. Encerro por aqui a introdução desta introdução ao confessar que sou, sim, um viciado em livros e, pior, que não pretendo me desfazer facilmente desse hábito compulsivo a menos de um regime forçado (de leituras) e regiamente recompensado (em livros, de preferência!).

Vejamos, agora, o objeto próprio desta coluna ou seção (decididamente, tenho de encontrar um nome próprio, distintivo, para esta série especial). Como se sabe, as resenhas-artigos de livros – que é o que pretendo fazer – têm geralmente o estranho hábito de revelar não exatamente o conteúdo do livro examinado ou o que diz o autor em causa, mas mais frequentemente o que pensa deles e sobre eles o próprio resenhista. Os produtos que serão oferecidos nsta seção não pretendem constitui uma exceção a essa regra não-escrita da prática do book-review, mesmo se ele a implementa de uma maneira particular. 
Com efeito, os resenhistas profissionais costumam ostentar um certo air blaséou de détachementvis-à-visda obra resenhada, típicos de quem se julga no direito de falar bem (ou mal) do autor, sem outros objetivos que os de parecer erudito ou de impressionar o leitor. A grande vantagem desta seção em relação às antologias ou coletâneas “normais” de resenhistas é talvez o fato de que ela não estará sendo feita por um resenhista profissional (sequer decentemente remunerado), mas sim por um simples amante dos livros. Amante, no caso, é uma palavra amena, mas não pretendo retornar agora sobre esse pouco secreto vício de minha existência de resto transparente, esse pecado original de uma vida muito pouco dissoluta, de fato toda ela orientada para uma acumulação muito pouco primitiva de leituras contínuas e de resenhas descontínuas mas regulares.
Os trabalhos aqui coletados foram escritos não por encomenda de algum editor ou diretor de folha literária, mas como resultado de minha livre escolha, ou seja, fui motivado única e exclusivamente pelo desejo de realizar eu mesmo uma espécie de “homenagem voluntária” aos livros ou aos autores selecionados. Essa postura é tanto mais defensável e legítima que muitas das resenhas aqui incluídas não foram escritas para serem publicadas e nem mesmo se referem a obras do momento ou a autores vivos. Motivou-me o simples gosto da palavra escrita, que responde, neste caso, a meu incontrolável, constante e já não tão secreto vício da leitura. Passemos agora, portanto, a alguns poucos elementos de “biografia bibliográfica”, que como se sabe constitui uma categoria especial dentro do gênero biográfico.

Efetivamente, tenho vivido comlivros, pelos livros e para os livros uma boa parte de minha vida, provavelmente quatro quintos de uma existência passada na atenta fixação do papel impresso (agora eletrônico, também). Entretanto, até onde alcançam minhas lembranças da primeira infância, não se pode dizer que o gosto da leitura constituísse uma espécie de kismetpessoal ou que ele estivesse entranhado num certo ambiente familiar. 
Não me lembro, por exemplo, que minha casa contivesse muitos livros, pelo contrário, provavelmente muito poucos. Meus pais, típicos filhos de imigrantes pobres, de extração camponesa portuguesa e italiana, tinham sido criados entre a obrigação compulsória do trabalho e a freqüência irregular da escola, processo que conduziu a uma educação primária incompleta nos dois casos. Mas, como todos os imigrantes, ambos davam uma importância muito grande à educação formal dos filhos, o que, dadas as condições de penúria material em que vivíamos, não necessariamente se traduziu em aquisição voluntária de outros livros que não, chegada a hora, os didáticos.  
Foram circunstâncias fortuitas que me fizeram chegar aos livros e com eles passar boa parte de minha vida. Minha casa, na então Chácara Itaim, bairro paulistano do Jardim Paulista, ficava muito próxima de uma biblioteca infantil, que eu passei a frequentar antes mesmo de estar formalmente alfabetizado. Na “Biblioteca Anne Frank” passei todos os anos de minha infância e os primeiros da adolescência. Uma vez treinado nas primeiras letras, na “atrasada” idade dos sete anos, passei a ler furiosamente: lia com avidez, não só na própria biblioteca, como todos os dias retirava sistematicamente um ou dois livros para ler em casa, à noite. Se não li todos os livros da biblioteca, devo ter chegado muito perto disso. Ou digamos que eu tenha lido todos os livros que, por uma ou outra razão, me interessavam, deixando de lado os “livros de meninas” e os manifestamente “antiquados”.
Alguns anos depois, trabalhando durante o dia e estudando à noite, passei a frequentar as bibliotecas do centro de São Paulo: a pública “Mário de Andrade”, a liberal e circunspecta da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, a especializada em economia do Centro das Indústrias, a da USIS, junto ao Consulado dos Estados Unidos, a da União Cultural Brasil-Estados Unidos e várias outras mais. Também comecei a percorrer incessantemente as livrarias do centro da cidade, em especial a velha Brasiliense, na Barão de Itapetininga, e a Zahar, na Praça da República. 
Estranhamente, nunca fui de freqüentar sebos, embora não desprezasse os que encontrasse pela frente, talvez devido ao fato de que eu não sou propriamente um bibliófilo, mas mais exatamente um bibliômano. Ou seja, eu não sou um “colecionador” de livros, não tenho por eles qualquer respeito ou cuidado, mas sou, tão simplesmente e obsessivamente, um “coletor” de livros para fins de leitura crítica e anotação. O dinheiro não permitindo coletas muito extensas ou intensas, tornei-me também um leitor de livros em livrarias, bem menos no Brasil (onde não se dispõe de livrarias decentes, com cadeiras, sofás e cafés) e bem mais no exterior, onde se faz de tudo para permitir ao frequentador, qualquer que seja ele, ler de graça os livros de seu interesse. Nesse caso, é sempre bom levar um caderninho no bolso, para anotações rápidas ou improvisadas (quando se está de pé) ou mesmo para notas mais elaborados, quando se dispõe do conforto de uma poltrona ou mesmo a mesa de um café. Tenho vários cadernos assim, que depois passam a coletar de tudo, desde telefones e compromissos, até algumas idéias malucas que comporão o próximo trabalho.
Enfim, foram anos e anos de contato com os livros, lendo em toda e qualquer circunstância, em casa ou no trabalho, na escola e nos transportes públicos, inclusive andando na rua ou dirigindo carro, sob chuva ou sol quase se poderia dizer. Raramente, ou quase nunca, saía de casa sem um livro na mão ou na pasta: qualquer oportunidade era boa para avançar algumas páginas na leitura, mesmo na fila do recrutamento militar (quando estava acompanhado de Gustavo Corção, uma leitura insuspeita nos anos do regime militar). Aliás, adquiri o hábito, durante a ditadura, de cobrir a capa dos livros “suspeitos” com papel de embrulho, acrescentando às vezes, à mão, o título de alguma glória da literatura nacional
Ao deixar o Brasil pela Europa, no começo dos anos 70, arrastei comigo uma biblioteca que certamente deve ter intrigado mais de um agente alfandegário. No velho continente, como não podia deixar de ser, passei boa parte de uma longa estada de sete anos ao abrigo do sol e voluntariamente encerrado em bibliotecas universitárias, sobretudo a do Instituto de Sociologia da Universidade de Bruxelas. Continuei depois esse hábito nas demais cidades a que fui levado por força de uma vida profissional sempre nômade. 
Desde muito cedo, habituei-me também a fazer fichas de livros, sob a forma de notas sintéticas, algumas compilações mais ou menos longas ou mesmo resenhas críticas, em cadernos ou folhas esparsas. Infelizmente, algumas dessas resenhas pioneiras foram perdidas com os papéis da juventude, entre a partida e a volta da Europa. Minha primeira resenha publicada (não a primeira escrita) parece ter sido a de uma obra do Erich Fromm, A Sobrevivência da Humanidade(tradução brasileira, pela Zahar, de Can Man Survive?), que saiu no jornal do centro acadêmico do Colégio Costa Manso, onde eu cursava o Clássico (em torno dos 16 anos, portanto). Muitos outros trabalhos dessa época, que precedeu minha saída do Brasil, se perderam, todavia: lembro-me de extensos resumos de obras políticas e econômicas (a começar pelo próprio Capital), de leituras anotadas de Sartre, Celso Furtado, Caio Prado, Florestan Fernandes e muitos outros autores brasileiros ou estrangeiros.
Mais tarde, durante minha estada universitária na Europa, preenchi diversos cadernos quadriculados, organizando-os por temas, ali compilando apreciações críticas e resumos de dezenas de livros, sem considerar as simples notas bibliográficas, que tinham seus cadernos especiais. Mas, essas anotações não cobrem senão uma parte de minhas leituras, aquelas ligadas diretamente ao estudo acadêmico ou às preocupações políticas. Dezenas de outros livros, cujos títulos se perderam em agendas extraviadas, permaneceram sem registro, sem falar dos muitos romances, policiais ou literários, que nunca foram objeto de qualquer tentativa de “crítica literária”. Se fosse possível fazer uma lista mais ou menos abrangente de minhas leituras da fase de formação universitária (compreendendo a graduação, o mestrado e o início do doutoramento), ela certamente ocuparia dezenas de páginas e nunca estaria completa.
O início do doutoramento, aliás interrompido quando de minha volta ao Brasil (em 1977), correspondeu à primeira ruptura intelectual e política com o ambiente em que havia vivido até então (grosso modo, os anos 1960 e 70), que poderia ser classificado, à falta de melhor designação, como de esquerda universitária e socialista. Não apenas a leitura atenta, nas bibliotecas universitárias, mas sobretudo o conhecimento prático das realidades existentes (o que inclui obviamente os socialismos reais, e alguns surreais, mesmo), operaram uma revisão conceitual, que se refletiu também na orientação de leituras. Essa “revisão metodológica” (e política) iria manifestar-se plenamente na tese de doutoramento (sobre as revoluções burguesas e o processo de modernização capitalista no Brasil), iniciada com tonalidades francamente “florestânicas” e concluída (já como diplomata, mas isto não tem nada a ver) numa versão marxo-weberiana claramente realista e consistente com os dados da realidade (e não com o universo vago e puramente conceitual do ambiente universitário).

(Um parênteses, neste já longo “manifesto fundador”, que tem mais de biográfico do que de bibliográfico. Se ouso sintetizar, telegraficamente, as grandes etapas de minha produção “bibliográfica”, isto é, de leituras, de notas e resenhas sobre livros e também de trabalhos próprios, ela poderia se apresentar mais ou menos da seguinte forma: dos anos 1960 a 1975, minhas leituras e atividades se situam no típico universo revolucionário-universitário; na próxima etapa, até 1982 aproximadamente, trata-se de socialismo doutrinário (mas não apenas ex-cathedra) e reformista, quando passo do anti-capitalismo ao anti-leninismo. Já na fase seguinte, de 1982 a 1989, que corresponde à elaboração e “exploração” da tese universitária, se trata de uma era revisionista, na qual o capitalismo e a democracia já surgem sem quaisquer adjetivos ou epítetos. Daí em diante pode-se dizer que adentro na era capitalista-democrática, quando não numa fase anarco-liberal, com plena aceitação dos postulados concretos sobre os quais a ação política deve se fazer. Meus trabalhos e escritos devem refletir-se nessas diferentes fases e etapas de minha vida relativamente tranquila, mas atravessada, desde sempre, por intensas paixões políticas e bibliográficas. Faltaria escrever, portanto, uma espécie de biografia intelectual, mas isso será objeto de outro trabalho, na lista dos pendentes.)

Depois do doutoramento e já iniciada uma carreira acadêmica nas horas livres e interstícios de uma atividade diplomática absorvente e dominadora, continuei meu ritmo de leituras e anotações, desta vez mudando um pouco o enfoque analítico das questões clássicas da sociologia política para os problemas mais práticos (e conectados ao meu trabalho) das relações internacionais e da integração. A partir de então, eu cessei de ser um mero (mas um grande) leitor de livros, para começar a ser, também e principalmente um produtorde livros, sendo o primeiro uma síntese teórico-prática sobre o comércio internacional e a integração no Mercosul, publicado em 1993. 
Todos os meus livros, e muitos outros trabalhos, se encontram disponíveis, para visualização e por vezes downloadde partes ou capítulos, em meu websitepessoal (www.pralmeida.org), elaborado essencialmente para atender a necessidades de alunos e outros estudiosos (à falta de condições de atender a todos individualmente). Ali também pode ser vista, na rubrica “Outros livros”, a primeira versão desta coletânea de resenhas, colocada sob o signo de Vivendo com livros, uma compilação das resenhas mais importantes editada artesanalmente enquanto me encontrava servindo na Embaixada em Paris (em dezembro de 1994, mais precisamente). Esse livro constitui a base, portanto, desta seção ou coluna sobre livros, que eu pretendo seja mais uma obra em construção (um working progress, como se diria nos países anglo-saxões) do que uma idéia acabada ou definida de modo restrito. 
A presente seção, ou coluna, constitui, portanto, um espaço, ou foro, público, para falar delivros, sobre livros e com os livros, e através deles, tocar nos problemas sociais, políticos, econômicos e culturais contemporâneos (ou mesmo passados, já que não pretendo restringir as resenhas a obras do momento). Uma resenha-artigo é uma espécie de oportunidade de diálogo em primeiro lugar com o livro, em segundo lugar com o seu autor (não como pessoa, mas simplesmente como “escrevinhador”) e, em terceiro lugar (mas não menos importante) com o leitor da própria resenha, ou seja com o público “externo” em geral. Uma resenha também representa, como se pode adivinhar, uma oportunidade de diálogo do autor para consigo mesmo, pois é através da discussão das idéias dos outros que se pode revisar e aperfeiçoar as suas próprias ideias. Como diria um cowboyamericano cheio de sensatez, Will Rogers, sempre se aprende alguma coisa com os livros e com pessoas mais espertas.
Se eu tivesse de adotar o equivalente de um ex-libris, o que nunca fiz pois que, como disse, não sou um bibliófilo mas um consumidorde livros, ele teria talvez de conter alguma alusão ao poder superior dos livros, como fonte de saber, e necessariamente uma referência à questão da honestidade intelectual, que reputo a primeira das qualidades naqueles que resolvem se entregar, como eu, às lides das resenhas críticas. Tal referência me leva a tecer algumas breves considerações sobre a relação do autor para com as obras de terceiros. 
Creio, como Machado de Assis, que na avaliação crítica de alguma obra deve-se levar em conta apenas a obra e o escritor, ao passo que o homem atrás daquelas linhas deveria normalmente desaparecer. Algo como o conselho de Flaubert: “Revelez l’art, cachez l’artiste”. De fato, devemos ter uma atitude crítica circunscrita ao mérito mesmo da obra que se expõe e que se discute, com todo o rigor metodológico, deixando de lado qualquer consideração de natureza política ou ideológica que possam influenciar nosso julgamento sobre o autor atrás das linhas, seu papel social ou suas outras ações públicas. Deve-se também procurar a menor adjetivação possível da obra, sobretudo aqueles de fácil recurso: indispensável, magnífica, contribuição essencial, e outras bobagens do gênero. Como ainda diria o “grande” Machado de Assis: “os adjetivos passam, os substantivos ficam”. Minha diretriz, portanto, é portanto a de procurar o máximo de honestidade intelectual possível (tentando evitar os malditos adjetivos) na apreciação destas poucas obras que seleciono num universo imensamente mais amplo de leituras e de anotações. 

A seleção de livros que doravante se apresentará não cobre, portanto, senão uma ínfima parte de minhas leituras e anotações, compreendendo as obras efetivamente objeto de apreciação, segundo os padrões formais da resenha crítica. Alguns dos trabalhos aqui reunidos foram parcial ou integralmente publicados em revistas acadêmicas ou periódicos brasileiros, muito embora diversas outras resenhas feitas ao longo de algumas décadas de leituras permaneçam rigorosamente inéditas. Poderei eventualmente fazer algumas exceções ao critério de autoria de terceiros: será talvez o caso da inclusão de resumos de minhas teses de mestrado em economia, de doutoramento em ciências sociais ou de altos estudos, mas que no caso podem servir para explicar melhor minhas posições em relação a determinadas questões da economia brasileira, à obra de Florestan Fernandes ou no tocante à formação da diplomacia econômica no Brasil. Várias outras resenhas não foram escritas pensando precipuamente em sua divulgação em algum veículo público, mas sim sob a forma de uma simples avaliação pessoal no curso de algum estudo específico. Elas serão transcritas em sua forma original, salvo, num ou noutro caso, com pequenas adaptações de forma ou supressões de trechos, por inadequação à atualidade ou limitações de espaço. 
Mais do que simples resenhas, todos estes trabalhos correspondem ao que um habitual leitor do The New York Review of Books, como eu, chamaria de review-article, que na verdade significa aproveitar a oportunidade da publicação de algum novo livro (neste caso, alguns antigos também) para falar sobre os mais diversos problemas de atualidade ou de história. O livro-objeto é, assim, uma simples excusa para uma digressão sobre temas diversos, em outros casos quase que um exercício de estilo ou um divertissement.

Um dia, vou percorrer novamente as bibliotecas de minha infância e adolescência e tomar nota de todos os livros que me fizeram companhia por tantos e tantos anos. Por falta de tempo, isto certamente não ocorrerá antes da aposentadoria, período que já antevejo como de um retorno a intensas leituras. Aliás, acumulei muito mais livros e revistas, ao longo do tempo, do que consegui ler, efetivamente, com os atributos formais e substantivos que associo a essa atividade: o rabiscunhar nas margens, o sublinhar nas linhas, as anotações (agora eletrônicas) em outro suporte, as paradas para reflexão, para selecionar trechos com os quais concordo ou para criticar determinados argumentos do autor que eu poderia eventualmente desenvolver em algum trabalho ulterior. Ou seja, tenho ainda muitos livros para “liquidar”, talvez o equivalente de mais 150 anos de leituras, o que eu precisarei resolver de alguma forma para abreviar o tempo necessário.
Esperando chegar esse tempo, decidi selecionar, à intenção dos amigos e curiosos, algumas de minhas leituras anotadas, isto é, aquelas que resultaram em resenhas formais e que, como tal, podem ser objeto de publicação ou simples divulgação. 
Dedico este empreendimento, com todo amor, a alguém que realiza a proeza de ler ainda mais do que eu, Carmen Lícia, sem cuja compreensão eu não teria cultivado, com tanta intensidade, o vício compulsivo da leitura. Para ser mais preciso, eu teria de dedicar esta minha coluna (e as possíveis coletâneas que dela resultem) a duas mulheres “extremas”: primeiro à ‘vó’ Nicolina, que nunca leu qualquer livro. Imigrante italiana, chegou ao Brasil no começo do século, para trabalhar nas fazendas de café e nunca deixou de contar em “mil réis”. Permaneceu completamente analfabeta até o final de sua vida, mas tinha um orgulho imenso de meus estudos e de minhas leituras. 
Em segundo lugar, e acima de tudo e de todos, à Carmen Lícia, que já leu, e ainda lerá, muitos livros, milhares deles. Igualmente de origem italiana, mas nascida em terras gaúchas, tornou-se economista e professora de história, artista refinada e nômade infatigável, já lidou com dezenas de moedas diferentes, inclusive várias brasileiras. Companheira de leituras, deve ter lido duas ou três vezes mais do que eu. 
A ambas, com amor direto, e o amor partilhado pelos livros e nos livros…

Paulo Roberto de Almeida
Washington, 19 de julho de 2003