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sábado, 1 de setembro de 2018

Vivendo com Livros: minha pouco secreta obsessão - Paulo Roberto de Almeida

O texto abaixo, aproveitando uma introdução a uma coletânea de minhas resenhas de livros feita em Paris, em 1994, deveria servir de Introdução a uma seção de resenhas de livros que eu me propunha fazer para um site eletrônico de cultura, que no entanto desapareceu no meio do caminho. Todas as resenhas, já feitas, e as preparadas especialmente para esse site, ficaram órfãs, portanto, ou na verdade no limbo, pois que não ficaram em nenhum veículo estável, a não ser, ocasionalmente e oportunamente aqui mesmo. Mas eu precisaria recuperar agora a lista das resenhas "publicadas" nesse site descontinuado.
Sem tempo para fazê-lo agora, opto por simplesmente republicar essa Introdução, pois ela faz parte, digamos assim, de minha segunda, talvez primeira, personalidade, a de leitor voraz e a de compulsivo resenhista, ainda que eu não tenha tempo de fazer as grandes resenhas que admiro na New York review of Books. Por isso, também faço mini-resenhas, que publico na revista da ADB regularmente, desde mais de 12 anos. Mas estas são exclusivamente de livros de diplomatas, por isso, "discriminatórias", quando eu gosto de fazer resenhas de todos os livros interessantes que leio.
Até já criei um blog exclusivamente dedicado aos livros e resenhas de livros, mas também descontinuado, pois não tenho tempo de manter todos os blogs que aparecem na lista da direita, ao lado, pois tudo isso é feito exclusivamente por mim.
Em todo caso, aqui vai meu desejo secreto: viver de leituras e resenhas, e de me especializar em resenhas de livros com mais de 150 anos de publicados. Um dia chegará...
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 1/09/2018

Vivendo com Livros
uma introdução quase desnecessária


Paulo Roberto de Almeida
Washington, 19 de julho de 2003

Es, pues, de saber, que este sobredicho hidalgo, los ratos que estaba ocioso... se daba a ler...; y llegó a tanto su curiosidad y desatino en esto, que vendió muchas hanegas de tierra... para comprar libros... y así llevó a su casa cuantos pudo haver dellos. (...) En resolución, él se enfrascó tanto en su lectura, que se le pasaban las noches leyendo de claro en claro, y los dias de turbio en turbio; y así, del poco dormir y del mucho leer se le secó el celebro, de manera que vino a perder el juicio.
Don Quijote, Miguel de Cervantes Saavedra

Ainda não me ocorreu, apesar do excesso de leituras, a fatalidade que se abateu sobre o cavaleiro da Mancha. Em todo caso, meu cérebro não parece ter secado pelo fato de também passar muitas noites na companhia dos livros ou escrevendo sobre eles. Esta nova coleção de resenha-artigos sobre livros, que fala exclusivamente de como os livros me fizeram seu prisioneiro – a ponto de me terem convertido em uma espécie de biblio-addict–, pode ser considerada como o resultado dessas muitas noites (e dias) de leitura.
Quando escrevi, no subtítulo, que se trata de uma introdução quase desnecessária foi porque tenho plena consciência de que seções, ou colunas, de resenhas de livros em publicações regulares não precisam, a rigor, de nenhuma explicação inicial ou de qualquer tipo de justificativa para os leitores interessados. Essas resenhas devem se sustentar por si mesmas, sem qualquer muleta interpretativa. Qualquer leitor sabe o que é uma resenha, ora bolas!
Mas como sempre mantive o desejo pouco secreto de “possuir” a minha própria coluna de livros, sinto que seria uma violência para comigo mesmo se eu decidisse, asi no más, começar a “minha” seção colocando simplesmente uma resenha qualquer e dando o empreendimento por inaugurado. Não! Um événementsimbólico desse tipo requer um tipo qualquer de cerimônia, de fato não um qualquer, mas uma inauguração à altura da glória da missão, dessas com champgneno casco, bandeiras despregadas, banda de música, discursos de cartola e casaca, enfim, un peu de formalité, que diable!
Por isso resolvi “enfeitar” um pouco a inaguração de minha coluna e fazê-la ser precedida de um bom discurso antes de “lançá-la ao mar” com pompas e circunstãncia, ao encontro de seus eventuais leitores e dos poucos náufragos que encontrar pelo caminho. Fico imaginando se alguns desses seres resgatados no imenso deserto livresco em que parece ter se convertido o Brasil não se assemelharão, ao menos parcialmente, ao autor dessas linhas, um bibliovoro voraz e irrecuperável, capaz de fazer de tudo para ficar na companhia dos livros, talvez até trair a família e quem sabe sacrificar a própria saúde. 
De fato, essa “loucura gentil” a que já foi identificado o hábito arraigado da leitura ou a paixão obsessiva pelos livros, é capaz de muitos estragos involuntários, nem todos eles prejudiciais, por certo, à saúde mental ou financeira do “contaminado”, mas todos eles conducentes a um certo isolamento voluntário, a certos hábitos estranhos como o de sair de um livro para mais dois ou três citados no primeiro ou ficar fazendo notas ilegíveis em qualquer pedaço de papel. Encerro por aqui a introdução desta introdução ao confessar que sou, sim, um viciado em livros e, pior, que não pretendo me desfazer facilmente desse hábito compulsivo a menos de um regime forçado (de leituras) e regiamente recompensado (em livros, de preferência!).

Vejamos, agora, o objeto próprio desta coluna ou seção (decididamente, tenho de encontrar um nome próprio, distintivo, para esta série especial). Como se sabe, as resenhas-artigos de livros – que é o que pretendo fazer – têm geralmente o estranho hábito de revelar não exatamente o conteúdo do livro examinado ou o que diz o autor em causa, mas mais frequentemente o que pensa deles e sobre eles o próprio resenhista. Os produtos que serão oferecidos nsta seção não pretendem constitui uma exceção a essa regra não-escrita da prática do book-review, mesmo se ele a implementa de uma maneira particular. 
Com efeito, os resenhistas profissionais costumam ostentar um certo air blaséou de détachementvis-à-visda obra resenhada, típicos de quem se julga no direito de falar bem (ou mal) do autor, sem outros objetivos que os de parecer erudito ou de impressionar o leitor. A grande vantagem desta seção em relação às antologias ou coletâneas “normais” de resenhistas é talvez o fato de que ela não estará sendo feita por um resenhista profissional (sequer decentemente remunerado), mas sim por um simples amante dos livros. Amante, no caso, é uma palavra amena, mas não pretendo retornar agora sobre esse pouco secreto vício de minha existência de resto transparente, esse pecado original de uma vida muito pouco dissoluta, de fato toda ela orientada para uma acumulação muito pouco primitiva de leituras contínuas e de resenhas descontínuas mas regulares.
Os trabalhos aqui coletados foram escritos não por encomenda de algum editor ou diretor de folha literária, mas como resultado de minha livre escolha, ou seja, fui motivado única e exclusivamente pelo desejo de realizar eu mesmo uma espécie de “homenagem voluntária” aos livros ou aos autores selecionados. Essa postura é tanto mais defensável e legítima que muitas das resenhas aqui incluídas não foram escritas para serem publicadas e nem mesmo se referem a obras do momento ou a autores vivos. Motivou-me o simples gosto da palavra escrita, que responde, neste caso, a meu incontrolável, constante e já não tão secreto vício da leitura. Passemos agora, portanto, a alguns poucos elementos de “biografia bibliográfica”, que como se sabe constitui uma categoria especial dentro do gênero biográfico.

Efetivamente, tenho vivido comlivros, pelos livros e para os livros uma boa parte de minha vida, provavelmente quatro quintos de uma existência passada na atenta fixação do papel impresso (agora eletrônico, também). Entretanto, até onde alcançam minhas lembranças da primeira infância, não se pode dizer que o gosto da leitura constituísse uma espécie de kismetpessoal ou que ele estivesse entranhado num certo ambiente familiar. 
Não me lembro, por exemplo, que minha casa contivesse muitos livros, pelo contrário, provavelmente muito poucos. Meus pais, típicos filhos de imigrantes pobres, de extração camponesa portuguesa e italiana, tinham sido criados entre a obrigação compulsória do trabalho e a freqüência irregular da escola, processo que conduziu a uma educação primária incompleta nos dois casos. Mas, como todos os imigrantes, ambos davam uma importância muito grande à educação formal dos filhos, o que, dadas as condições de penúria material em que vivíamos, não necessariamente se traduziu em aquisição voluntária de outros livros que não, chegada a hora, os didáticos.  
Foram circunstâncias fortuitas que me fizeram chegar aos livros e com eles passar boa parte de minha vida. Minha casa, na então Chácara Itaim, bairro paulistano do Jardim Paulista, ficava muito próxima de uma biblioteca infantil, que eu passei a frequentar antes mesmo de estar formalmente alfabetizado. Na “Biblioteca Anne Frank” passei todos os anos de minha infância e os primeiros da adolescência. Uma vez treinado nas primeiras letras, na “atrasada” idade dos sete anos, passei a ler furiosamente: lia com avidez, não só na própria biblioteca, como todos os dias retirava sistematicamente um ou dois livros para ler em casa, à noite. Se não li todos os livros da biblioteca, devo ter chegado muito perto disso. Ou digamos que eu tenha lido todos os livros que, por uma ou outra razão, me interessavam, deixando de lado os “livros de meninas” e os manifestamente “antiquados”.
Alguns anos depois, trabalhando durante o dia e estudando à noite, passei a frequentar as bibliotecas do centro de São Paulo: a pública “Mário de Andrade”, a liberal e circunspecta da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, a especializada em economia do Centro das Indústrias, a da USIS, junto ao Consulado dos Estados Unidos, a da União Cultural Brasil-Estados Unidos e várias outras mais. Também comecei a percorrer incessantemente as livrarias do centro da cidade, em especial a velha Brasiliense, na Barão de Itapetininga, e a Zahar, na Praça da República. 
Estranhamente, nunca fui de freqüentar sebos, embora não desprezasse os que encontrasse pela frente, talvez devido ao fato de que eu não sou propriamente um bibliófilo, mas mais exatamente um bibliômano. Ou seja, eu não sou um “colecionador” de livros, não tenho por eles qualquer respeito ou cuidado, mas sou, tão simplesmente e obsessivamente, um “coletor” de livros para fins de leitura crítica e anotação. O dinheiro não permitindo coletas muito extensas ou intensas, tornei-me também um leitor de livros em livrarias, bem menos no Brasil (onde não se dispõe de livrarias decentes, com cadeiras, sofás e cafés) e bem mais no exterior, onde se faz de tudo para permitir ao frequentador, qualquer que seja ele, ler de graça os livros de seu interesse. Nesse caso, é sempre bom levar um caderninho no bolso, para anotações rápidas ou improvisadas (quando se está de pé) ou mesmo para notas mais elaborados, quando se dispõe do conforto de uma poltrona ou mesmo a mesa de um café. Tenho vários cadernos assim, que depois passam a coletar de tudo, desde telefones e compromissos, até algumas idéias malucas que comporão o próximo trabalho.
Enfim, foram anos e anos de contato com os livros, lendo em toda e qualquer circunstância, em casa ou no trabalho, na escola e nos transportes públicos, inclusive andando na rua ou dirigindo carro, sob chuva ou sol quase se poderia dizer. Raramente, ou quase nunca, saía de casa sem um livro na mão ou na pasta: qualquer oportunidade era boa para avançar algumas páginas na leitura, mesmo na fila do recrutamento militar (quando estava acompanhado de Gustavo Corção, uma leitura insuspeita nos anos do regime militar). Aliás, adquiri o hábito, durante a ditadura, de cobrir a capa dos livros “suspeitos” com papel de embrulho, acrescentando às vezes, à mão, o título de alguma glória da literatura nacional
Ao deixar o Brasil pela Europa, no começo dos anos 70, arrastei comigo uma biblioteca que certamente deve ter intrigado mais de um agente alfandegário. No velho continente, como não podia deixar de ser, passei boa parte de uma longa estada de sete anos ao abrigo do sol e voluntariamente encerrado em bibliotecas universitárias, sobretudo a do Instituto de Sociologia da Universidade de Bruxelas. Continuei depois esse hábito nas demais cidades a que fui levado por força de uma vida profissional sempre nômade. 
Desde muito cedo, habituei-me também a fazer fichas de livros, sob a forma de notas sintéticas, algumas compilações mais ou menos longas ou mesmo resenhas críticas, em cadernos ou folhas esparsas. Infelizmente, algumas dessas resenhas pioneiras foram perdidas com os papéis da juventude, entre a partida e a volta da Europa. Minha primeira resenha publicada (não a primeira escrita) parece ter sido a de uma obra do Erich Fromm, A Sobrevivência da Humanidade(tradução brasileira, pela Zahar, de Can Man Survive?), que saiu no jornal do centro acadêmico do Colégio Costa Manso, onde eu cursava o Clássico (em torno dos 16 anos, portanto). Muitos outros trabalhos dessa época, que precedeu minha saída do Brasil, se perderam, todavia: lembro-me de extensos resumos de obras políticas e econômicas (a começar pelo próprio Capital), de leituras anotadas de Sartre, Celso Furtado, Caio Prado, Florestan Fernandes e muitos outros autores brasileiros ou estrangeiros.
Mais tarde, durante minha estada universitária na Europa, preenchi diversos cadernos quadriculados, organizando-os por temas, ali compilando apreciações críticas e resumos de dezenas de livros, sem considerar as simples notas bibliográficas, que tinham seus cadernos especiais. Mas, essas anotações não cobrem senão uma parte de minhas leituras, aquelas ligadas diretamente ao estudo acadêmico ou às preocupações políticas. Dezenas de outros livros, cujos títulos se perderam em agendas extraviadas, permaneceram sem registro, sem falar dos muitos romances, policiais ou literários, que nunca foram objeto de qualquer tentativa de “crítica literária”. Se fosse possível fazer uma lista mais ou menos abrangente de minhas leituras da fase de formação universitária (compreendendo a graduação, o mestrado e o início do doutoramento), ela certamente ocuparia dezenas de páginas e nunca estaria completa.
O início do doutoramento, aliás interrompido quando de minha volta ao Brasil (em 1977), correspondeu à primeira ruptura intelectual e política com o ambiente em que havia vivido até então (grosso modo, os anos 1960 e 70), que poderia ser classificado, à falta de melhor designação, como de esquerda universitária e socialista. Não apenas a leitura atenta, nas bibliotecas universitárias, mas sobretudo o conhecimento prático das realidades existentes (o que inclui obviamente os socialismos reais, e alguns surreais, mesmo), operaram uma revisão conceitual, que se refletiu também na orientação de leituras. Essa “revisão metodológica” (e política) iria manifestar-se plenamente na tese de doutoramento (sobre as revoluções burguesas e o processo de modernização capitalista no Brasil), iniciada com tonalidades francamente “florestânicas” e concluída (já como diplomata, mas isto não tem nada a ver) numa versão marxo-weberiana claramente realista e consistente com os dados da realidade (e não com o universo vago e puramente conceitual do ambiente universitário).

(Um parênteses, neste já longo “manifesto fundador”, que tem mais de biográfico do que de bibliográfico. Se ouso sintetizar, telegraficamente, as grandes etapas de minha produção “bibliográfica”, isto é, de leituras, de notas e resenhas sobre livros e também de trabalhos próprios, ela poderia se apresentar mais ou menos da seguinte forma: dos anos 1960 a 1975, minhas leituras e atividades se situam no típico universo revolucionário-universitário; na próxima etapa, até 1982 aproximadamente, trata-se de socialismo doutrinário (mas não apenas ex-cathedra) e reformista, quando passo do anti-capitalismo ao anti-leninismo. Já na fase seguinte, de 1982 a 1989, que corresponde à elaboração e “exploração” da tese universitária, se trata de uma era revisionista, na qual o capitalismo e a democracia já surgem sem quaisquer adjetivos ou epítetos. Daí em diante pode-se dizer que adentro na era capitalista-democrática, quando não numa fase anarco-liberal, com plena aceitação dos postulados concretos sobre os quais a ação política deve se fazer. Meus trabalhos e escritos devem refletir-se nessas diferentes fases e etapas de minha vida relativamente tranquila, mas atravessada, desde sempre, por intensas paixões políticas e bibliográficas. Faltaria escrever, portanto, uma espécie de biografia intelectual, mas isso será objeto de outro trabalho, na lista dos pendentes.)

Depois do doutoramento e já iniciada uma carreira acadêmica nas horas livres e interstícios de uma atividade diplomática absorvente e dominadora, continuei meu ritmo de leituras e anotações, desta vez mudando um pouco o enfoque analítico das questões clássicas da sociologia política para os problemas mais práticos (e conectados ao meu trabalho) das relações internacionais e da integração. A partir de então, eu cessei de ser um mero (mas um grande) leitor de livros, para começar a ser, também e principalmente um produtorde livros, sendo o primeiro uma síntese teórico-prática sobre o comércio internacional e a integração no Mercosul, publicado em 1993. 
Todos os meus livros, e muitos outros trabalhos, se encontram disponíveis, para visualização e por vezes downloadde partes ou capítulos, em meu websitepessoal (www.pralmeida.org), elaborado essencialmente para atender a necessidades de alunos e outros estudiosos (à falta de condições de atender a todos individualmente). Ali também pode ser vista, na rubrica “Outros livros”, a primeira versão desta coletânea de resenhas, colocada sob o signo de Vivendo com livros, uma compilação das resenhas mais importantes editada artesanalmente enquanto me encontrava servindo na Embaixada em Paris (em dezembro de 1994, mais precisamente). Esse livro constitui a base, portanto, desta seção ou coluna sobre livros, que eu pretendo seja mais uma obra em construção (um working progress, como se diria nos países anglo-saxões) do que uma idéia acabada ou definida de modo restrito. 
A presente seção, ou coluna, constitui, portanto, um espaço, ou foro, público, para falar delivros, sobre livros e com os livros, e através deles, tocar nos problemas sociais, políticos, econômicos e culturais contemporâneos (ou mesmo passados, já que não pretendo restringir as resenhas a obras do momento). Uma resenha-artigo é uma espécie de oportunidade de diálogo em primeiro lugar com o livro, em segundo lugar com o seu autor (não como pessoa, mas simplesmente como “escrevinhador”) e, em terceiro lugar (mas não menos importante) com o leitor da própria resenha, ou seja com o público “externo” em geral. Uma resenha também representa, como se pode adivinhar, uma oportunidade de diálogo do autor para consigo mesmo, pois é através da discussão das idéias dos outros que se pode revisar e aperfeiçoar as suas próprias ideias. Como diria um cowboyamericano cheio de sensatez, Will Rogers, sempre se aprende alguma coisa com os livros e com pessoas mais espertas.
Se eu tivesse de adotar o equivalente de um ex-libris, o que nunca fiz pois que, como disse, não sou um bibliófilo mas um consumidorde livros, ele teria talvez de conter alguma alusão ao poder superior dos livros, como fonte de saber, e necessariamente uma referência à questão da honestidade intelectual, que reputo a primeira das qualidades naqueles que resolvem se entregar, como eu, às lides das resenhas críticas. Tal referência me leva a tecer algumas breves considerações sobre a relação do autor para com as obras de terceiros. 
Creio, como Machado de Assis, que na avaliação crítica de alguma obra deve-se levar em conta apenas a obra e o escritor, ao passo que o homem atrás daquelas linhas deveria normalmente desaparecer. Algo como o conselho de Flaubert: “Revelez l’art, cachez l’artiste”. De fato, devemos ter uma atitude crítica circunscrita ao mérito mesmo da obra que se expõe e que se discute, com todo o rigor metodológico, deixando de lado qualquer consideração de natureza política ou ideológica que possam influenciar nosso julgamento sobre o autor atrás das linhas, seu papel social ou suas outras ações públicas. Deve-se também procurar a menor adjetivação possível da obra, sobretudo aqueles de fácil recurso: indispensável, magnífica, contribuição essencial, e outras bobagens do gênero. Como ainda diria o “grande” Machado de Assis: “os adjetivos passam, os substantivos ficam”. Minha diretriz, portanto, é portanto a de procurar o máximo de honestidade intelectual possível (tentando evitar os malditos adjetivos) na apreciação destas poucas obras que seleciono num universo imensamente mais amplo de leituras e de anotações. 

A seleção de livros que doravante se apresentará não cobre, portanto, senão uma ínfima parte de minhas leituras e anotações, compreendendo as obras efetivamente objeto de apreciação, segundo os padrões formais da resenha crítica. Alguns dos trabalhos aqui reunidos foram parcial ou integralmente publicados em revistas acadêmicas ou periódicos brasileiros, muito embora diversas outras resenhas feitas ao longo de algumas décadas de leituras permaneçam rigorosamente inéditas. Poderei eventualmente fazer algumas exceções ao critério de autoria de terceiros: será talvez o caso da inclusão de resumos de minhas teses de mestrado em economia, de doutoramento em ciências sociais ou de altos estudos, mas que no caso podem servir para explicar melhor minhas posições em relação a determinadas questões da economia brasileira, à obra de Florestan Fernandes ou no tocante à formação da diplomacia econômica no Brasil. Várias outras resenhas não foram escritas pensando precipuamente em sua divulgação em algum veículo público, mas sim sob a forma de uma simples avaliação pessoal no curso de algum estudo específico. Elas serão transcritas em sua forma original, salvo, num ou noutro caso, com pequenas adaptações de forma ou supressões de trechos, por inadequação à atualidade ou limitações de espaço. 
Mais do que simples resenhas, todos estes trabalhos correspondem ao que um habitual leitor do The New York Review of Books, como eu, chamaria de review-article, que na verdade significa aproveitar a oportunidade da publicação de algum novo livro (neste caso, alguns antigos também) para falar sobre os mais diversos problemas de atualidade ou de história. O livro-objeto é, assim, uma simples excusa para uma digressão sobre temas diversos, em outros casos quase que um exercício de estilo ou um divertissement.

Um dia, vou percorrer novamente as bibliotecas de minha infância e adolescência e tomar nota de todos os livros que me fizeram companhia por tantos e tantos anos. Por falta de tempo, isto certamente não ocorrerá antes da aposentadoria, período que já antevejo como de um retorno a intensas leituras. Aliás, acumulei muito mais livros e revistas, ao longo do tempo, do que consegui ler, efetivamente, com os atributos formais e substantivos que associo a essa atividade: o rabiscunhar nas margens, o sublinhar nas linhas, as anotações (agora eletrônicas) em outro suporte, as paradas para reflexão, para selecionar trechos com os quais concordo ou para criticar determinados argumentos do autor que eu poderia eventualmente desenvolver em algum trabalho ulterior. Ou seja, tenho ainda muitos livros para “liquidar”, talvez o equivalente de mais 150 anos de leituras, o que eu precisarei resolver de alguma forma para abreviar o tempo necessário.
Esperando chegar esse tempo, decidi selecionar, à intenção dos amigos e curiosos, algumas de minhas leituras anotadas, isto é, aquelas que resultaram em resenhas formais e que, como tal, podem ser objeto de publicação ou simples divulgação. 
Dedico este empreendimento, com todo amor, a alguém que realiza a proeza de ler ainda mais do que eu, Carmen Lícia, sem cuja compreensão eu não teria cultivado, com tanta intensidade, o vício compulsivo da leitura. Para ser mais preciso, eu teria de dedicar esta minha coluna (e as possíveis coletâneas que dela resultem) a duas mulheres “extremas”: primeiro à ‘vó’ Nicolina, que nunca leu qualquer livro. Imigrante italiana, chegou ao Brasil no começo do século, para trabalhar nas fazendas de café e nunca deixou de contar em “mil réis”. Permaneceu completamente analfabeta até o final de sua vida, mas tinha um orgulho imenso de meus estudos e de minhas leituras. 
Em segundo lugar, e acima de tudo e de todos, à Carmen Lícia, que já leu, e ainda lerá, muitos livros, milhares deles. Igualmente de origem italiana, mas nascida em terras gaúchas, tornou-se economista e professora de história, artista refinada e nômade infatigável, já lidou com dezenas de moedas diferentes, inclusive várias brasileiras. Companheira de leituras, deve ter lido duas ou três vezes mais do que eu. 
A ambas, com amor direto, e o amor partilhado pelos livros e nos livros…

Paulo Roberto de Almeida
Washington, 19 de julho de 2003

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