Da quantidade à qualidade: o significado dos números coincidentes
Paulo Roberto de Almeida
[Objetivo: puramente comemorativo; finalidade: balanço da produção]
Em uma obra inacabada, elaborada por Friedrich Engels em 1883, A Dialética da Natureza, o amigo de Marx, recentemente falecido, propunha três leis gerais que, em contraste com a metafísica, comandariam ao movimento geral da natureza e da história humana. A primeira era a lei da transformação da quantidade em qualidade (e vice-versa); a segunda, a lei da interpenetração das oposições, e a terceira, a lei da negação da negação. Todas as três derivariam, segundo Engels, da obra de Hegel, mas nela essas leis existiam apenas em sua forma idealista, como pura abstração, ou como leis do pensamento. Apenas na dialética materialista, desenvolvida por seu amigo autor do Capital(1867), e proponente da “lei da mais-valia” – que explicaria o modo de reprodução ampliada do capital –, essas leis se tinham convertido em ferramentas para explicar o desenvolvimento da natureza, e portanto, também, para ajudar a construir o pensamento científico sobre ela e sobre a história humana.
Engels explicava a sua primeira lei argumentando que, na natureza, de uma maneira exatamente fixada em cada caso individual, mudanças qualitativas podem ocorrer apenas pela adição ou subtração quantitativa da matéria ou do movimento, também chamado de energia. (Para maiores desenvolvimento sobre o pensamento engelsiano expresso na sua Dialética da Natureza, os interessados podem buscar a obra original neste link: https://www.marxists.org/archive/marx/works/1883/don/ch02.htm). De minha parte não pretendo confrontar a dialética materialista de 140 anos atrás com os desenvolvimentos do pensamento científico contemporâneo. Minha única intenção foi a de oferecer um começo bem humorado a um outro exemplo de transformação da quantidade em qualidade (ou assim pelo menos espero), no momento em que escrevo este trabalho que está destinado a receber o número 3333.
Existe alguma magia nos números repetidos? Provavelmente não, embora muitos queiram ver significados especiais em determinada combinação de números coincidentes; o 666, por exemplo (mas eu não sou absolutamente adepto de qualquer significado metafórico ou religioso para essa centena cabalística). O fato é que ao deparar-me com a numeração repetida neste domingo 23 de setembro de 2018, resolvi verificar o que poderia haver de especial na repetição de números similares para fazer a lista de meus trabalhos. O que descobri? Nada, ou seja, nenhum significado numa simples coincidência que surge totalmente ao acaso, uma vez que tenho dezenas de trabalhos em preparação, e eles só recebem um número definitivo depois que eu coloco um ponto final, e os considero terminados. Em outros termos, a minha listagem serial, ou quantitativa, de trabalhos acabados, não adquire nenhuma qualidade especial apenas pelo fato desses trabalhos se verem atribuídos esse tipo de numeração repetitiva, que não expressam em absoluto quantidade intrínseca, tão somente um lugar numa longa fila de trabalhos originais (existe uma outra lista para os trabalhos publicados).
Apenas por curiosidade, fui verificar o que era feito dos trabalhos anteriores, que também receberam números similares, ou coincidentes. Começo pelo anterior, nesta sequência, com um dígito a menos: 333. Encontro este trabalho em minha lista consolidada:
333. “O Mercosul no contexto regional e internacional”, Brasília: 5 abril 1993, 26 p. Texto-guia para palestra no Seminário “Mercosul e Comunidade Europeia: Os Trabalhadores no Processo de Integração” (IRES-DESEP-CESIT, Campinas, 5-6 de abril de 1993). Revisto em 14 de abril de 1993 e apresentado no Seminário Latino-Americano de Planejamento Urbano, promovido pelo Programa de Estudos Latino-Americanos da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, UFMS e realizado em Campo Grande/MS, de 4 a 8 de maio de 1993. Publicado nos Anais do seminário: O Desafio do Desenvolvimento(Campo Grande, UFMS, maio de 1993, p. 191-203). Publicado na revista Política Externa(São Paulo: vol. 2, n. 2, setembro-outubro-novembro 1993, p. 86-103). Relação de Publicados n. 127 e 147.
Ou seja, não havia nada de especial no trabalho 333. E o que dizer de outras combinações? Vamos partir da combinação inicial, a 111:
111. “Uma Política Externa Sem Resultados”, Brasília, 31 janeiro 1986, 2 p. Visão crítica, de cunho jornalístico, da gestão do Chanceler Olavo Setúbal no Itamaraty. Trechos aproveitados em matéria assinada por William Waack, no Jornal do Brasilde 9 fevereiro 1986.
Ou seja, nada de especial, tampouco, mas eu ainda estava no início de minha produção intelectual, e àquela altura, meados dos anos 1980, não podia imaginar que ela chegaria aos três dígitos. O mesmo ocorre ao agregarmos o mesmo número à série do 1:
1111. “OTAN e o fim da Guerra Fria”, Washington, 14 setembro 2003, 5 p. Revisão completa e atualização do verbete sobre a OTAN. Publicado in: Francisco Carlos Teixeira da Silva (org.), Enciclopédia de Guerras e Revoluções do Século XX - As Grandes Transformações do Mundo Contemporâneo: Conflitos, Cultura e Comportamento(Rio de Janeiro: Campus, 2004, v. 1, p. 650-652).
Mais uma vez, nenhuma comemoração especial pela repetição de números, mas não cabalísticos, pelo menos. Mas se quisermos conferir esse número especial: 666?
666. “Dimensão social da integração: orelhas e capa”, Brasília, 27 fevereiro 1999, 2 p. Apresentação do livro sobre Mercosul, Nafta e Alca. In: Yves Chaloult e Paulo Roberto de Almeida (coords.), Mercosul, Nafta e Alca: a dimensão social(São Paulo: LTr, 1999). Relação de publicados n. 236.
Um simples trabalho editorial, como se pode constatar. Mas, passemos aos trabalhos que poderiam ser considerados “comemorativos”. O que eu andei fazendo quando, ao ultrapassar o cabo do trabalho n. 999, cheguei ao número 1000? Este aqui:
1000. “O Brasil e o FMI: meio século de idas e vindas”, Washington, 22 janeiro 2003, 3 p. Resumo do capítulo preparado para o livro O Brasil e os acordos econômicos internacionais. Publicado no Jornal do Brasil(Rio de Janeiro: 27 jan. 2003, seção Opinião); no Colunas de RelNet(n. 7, jan./jun. 2003); e no Meridiano 47(Brasília: IBRI, n. 32-33, março-abril 2003, p. 17-18; link: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/article/view/4373/3672). Relação de Publicados n. 395, 399 e 402.
E se passarmos ao número 2000? Alguma elaboração especial? Uau! Desta vez encontro um trabalho preparado especialmente para a ocasião; este aqui:
Mas já não é o caso do trabalho n. 3000, imerso em diversas ocupações, dois anos atrás, e que resultou apenas no planejamento feito para um curso, a partir de um livro anterior e possível base de um livro futuro, como registrei aqui:
3000. “Relações Institucionais Internacionais”, Brasília, 23 junho 2016, 3 p. Ementa de curso de curta duração, a ser dado no quadro do programa de MBA de Relações Institucionais do Ibmec Business School, nos dias 25/06/, 9/07 e 6/08, a ser desenvolvido com base no trabalho 585 (Estrutura institucional das relações econômicas internacionais do Brasil: acordos e organizações multilaterais de 1815 a 1997), atualizado no livro Relações Internacionais e Política Externa do Brasil(2012). Feito como trabalho n. 3005, possível base de um pequeno livro nessa área.
E quanto aos trabalhos publicados, então? Eles correspondem a uma segunda lista, pois é evidente que nem tudo o que escreve está destinado à publicação ou serve para tal finalidade. Escrevo muito, mas sobretudo para mim mesmo, raramente para outros ou sob encomenda, e só aceito elaborar algum trabalho a pedido de alguém ou de alguma instituição (editora ou revista, por exemplo), quando o tema, o assunto, o enfoque e o tipo de divulgação estão de conformidade com o que eu mesmo penso, desejo, gosto de fazer. Meus trabalhos, originais, pertencem ao terreno que se poderia definir, em termos goethianos, de “afinidades intelectuais”, assim como aqueles que se destinam a publicação. Por isso mesmo, fiquei “devendo” vários trabalhos solicitados ou sugeridos por editores, geralmente na área de “relações internacionais”, que não é exatamente o meu terreno, a não ser que se insira o “econômicas” entre os dois termos.
Vejamos, antes de mais nada, meu primeiro trabalho publicado, que, como no caso da famosa moedinha do Tio Patinhas, guardada enquadrada em seu cofre forte, pode representar uma espécie de objeto raro, mas que na verdade não é o trabalho primordial (que se perdeu nas publicações juvenis de grêmios estudantis). Ele é este:
001. “L’Etat Brésilien”, La Revue Nouvelle (Bruxelles: 29ème année, Tome LVIII, numéro 11, spécial “Amériques Latines”, Novembre1973, p. 426-432). Postado na plataforma Academia.edu (link: http://www.academia.edu/35833013/13EtatBresilienRevueNouvellePubl.pdf) e no blog Diplomatizzando(4/02/2018; link: https://diplomatizzando.blogspot.com.br/2018/02/letat-bresilien-1973-meu-primeiro.html). Relação de Trabalhos n. 013.
Passemos, então, ao meu trabalho publicado número 100, um texto tipicamente acadêmico, sobre minha área de atividades nessa época, sendo que eu fui um dos negociadores do Protocolo de Brasília:
100. “Solução de Controvérsias no Mercosul: Comentários ao Protocolo de Brasília”, Boletim da Sociedade Brasileira de Direito Internacional(vol. XLV, nºs 81/83, Julho/Novembro 1992, pp. 93-105). Relação de Trabalhos nº 221.
Novecentos trabalhos publicados depois, o trabalho número 1.000 é igualmente integrante dessa lista serial aleatória, que vai alinhando a produção no exato momento em que um trabalho original é concluído ou um outro é publicado. Aqui está:
1000. Guia dos Arquivos Americanos sobre o Brasil: coleções documentais sobre o Brasil nos Estados Unidos(Brasília: Funag, 2010, 244 p.; ISBN: 978-85-7631-274-1; com Rubens Antônio Barbosa e Francisco Rogido Fins, orgs.). Disponível no site da Funag, link:http://funag.gov.br/loja/download/753-guia_dos_arquivos_americanos.pdf). Relação de Originais n. 2200.
O que toda essa quantidade teria a ver com a qualidade dos meus trabalhos, para retomar a equação “dialética” de Friedrich Engels? Provavelmente muito pouco, pois tanto os originais produzidos, quanto os textos publicados vão seguindo uma numeração absolutamente sequencial, ao puro acaso do ponto final colocado no caso dos primeiros e da divulgação pública no dos segundos. Não estou fazendo concurso, nem disputando maratona produtiva com ninguém, e só decidi adotar essa metodologia serial porque do contrário eu me perderia na infinidade algo confusa da produção intelectual. As listas de originais e publicados me permitem organizar (um pouco, não totalmente) uma falta de método na produção, pois vou acumulando textos incompletos em dezenas de pastas em meus arquivos digitais. Provavelmente, os “working files” são ainda mais numerosos do que os terminados, e certamente bem mais do que os efetivamente publicados, que na verdade representam menos da metade da produção primária.
Existe algo a comemorar nessa numeração incessante? Provavelmente não, pois de verdade não considero que quantidade equivale a qualidade. Na vida intelectual, existem autores de uma única grande obra, assim como existem produtores em série, estilo Balzac, Dumas, Simenon, Asimov e autores de novelas curtas. Não estou nesse mercado, tanto porque não me dedico a literatura, e só produzo aquilo que corresponde a meus “instintos” pessoais, ou minhas “afinidades eletivas” com determinados temas e assuntos. O que, sim, exige atenção, para não ocorrer dispersão numa miríade de pequenos trabalhos desimportantes, deixando de lado aquelas “grandes obras” que pretendemos terminar “um dia”. Para não deixar esses objetivos de lado, sempre coloco ao início de cada nova lista anual os títulos dos trabalhos que pretendo concluir ou empreender nas semanas e meses seguintes: tem alguns que passam de um ano a outro, como por exemplo o segundo e o terceiro volumes de minha história da diplomacia econômica, há muitos anos no “pipeline”, e com diversas pastas de material acumulado.
Um dia virão, mas não ouso fixar um número em antecipação. Deveria...
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 23 de setembro de 2018
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