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domingo, 9 de janeiro de 2022

História virtual do Brasil: um exercício intelectual - Paulo Roberto de Almeida (2007)

 Um exercício intelectual, consolidado em 2007, do qual transcrevo apenas as duas primeiras partes. Para a íntegra, remeto a este link na plataforma Academia.edu: 

https://www.academia.edu/5913637/1841_Hist%C3%B3ria_virtual_do_Brasil_um_exerc%C3%ADcio_intelectual_2007_

Paulo Roberto de Almeida


História virtual do Brasil: um exercício intelectual

 

Paulo Roberto de Almeida (www.pralmeida.org)

Brasília, 1841, 29 novembro 2007, 16 p. Consolidação, em arquivo único, de ensaio de história virtual do Brasil, com base nos trabalhos 1063, 1064 e 1075, feitos em Washington, em 18 e 21 de junho de 2003 e em 7 de julho de 2003.

 

Primeira Parte

Questões metodológicas relativas à história virtual

 

Parece trivial, e sem maiores consequências práticas, fazer conjecturas em direção do passado, já que a linha contínua do tempo não nos permite operar qualquer mudança no curso efetivo da história, com a ajuda de alguma máquina do tempo imaginária. Especular é, contudo, possível em direção do passado, sendo em todo caso menos perigoso do que fazê-lo no presente e ainda menos arriscado do que “contra” o futuro. Um famoso historiador europeu, Johan Huizinga, chegou mesmo a afirmar que o historiador deveria se colocar de um ponto de vista que o permitisse considerar fatos conhecidos como podendo conduzir a resultados diferentes: e se os persas tivessem vencido em Salamina? e se Napoleão tivesse fracassado em seu 18 Brumário? 

Assim, é possível selecionar alguns dos turning points da história para realizar exercícios controlados de imaginação, que não são, todavia, completamente arbitrários ou puramente aleatórios. Uma das boas regras da história virtual, já explorada por historiadores fecundos como Niall Ferguson, é a de que o novo curso estabelecido deve ser “plausível” ou “possível”, isto é, seus desenvolvimentos poderiam estar inscritos na lógica histórica do momento imediatamente antecedente. De fato, o próprio Ferguson responde à questão de saber quem se importa com desenvolvimentos que nunca ocorreram. Diz ele que, nós mesmos, na vida cotidiana, estamos sempre nos colocando questões “contrafactuais”: por que eu não obedeci aos limites de velocidade? por que ter aceitado aquele último copo? quanto eu teria ganho se tivesse apostado naquele número? [1]

Nos imaginamos, assim, acertando no milhar, escolhendo uma outra profissão ou simplesmente evitando alguns erros cometidos no passado. Um outro famoso historiador, Thomas Carlyle, via a história como um eterno caos, que o historiador deveria avaliar cientificamente. As consequências alternativas poderiam, para ele, levar a resultados totalmente aleatórios, ou divergentes do curso real da história, um pouco como na atual alegoria do bater de asas da borboleta sugerido pela teoria do caos. Seria mesmo assim?

O argumento a favor da história virtual consiste em seu poder de despertar uma certa curiosidade pela própria trama da história real, ao sugerir desenvolvimentos diversos do que aqueles que efetivamente ocorreram e que, segundo o curso sugerido, poderiam ter provocado outras consequências, algumas até decisivas do ponto de vista do curso ulterior. Mas a história virtual não é o reino do arbítrio, e sim uma construção cuidadosa sobre as vias alternativas da vida humana, explorando fatores contingentes do processo histórico, onde os homens podem, sim, fazer uma grande diferença, ao contrário da aparente rigidez do determinismo histórico. Desse ponto de vista, a história virtual possui virtudes eminentemente didáticas, pois que ela permite isolar o que é únicoespecial ou peculiar num determinado evento ou processo histórico, ao imaginar que esse fator ou essa ação particular poderiam ter deslanchado um curso totalmente inesperado (do ponto de vista do que efetivamente se passou), mas que estaria inteiramente inserido na lógica e na trama do curso precedente. 

Aos que recusam a utilidade da história virtual pode-se observar que ela está de certa forma contemplada numa vertente mais séria, e quantitativamente embasada, da disciplina, identificada, por exemplo, com a chamada “cliometria”, na qual argumentos contrafactuais são mobilizados para determinar o peso de determinados fatores ou processos históricos. Um dos mais conhecidos utilizadores desse tipo de exercício é, obviamente, o prêmio Nobel americano Robert William Fogel que, numa obra famosa (Railroads and American Economic Growth: Essays in Econometric History, 1964), tenta isolar o papel das ferrovias no desenvolvimento econômico dos Estados Unidos. [2]

Assim, o que teria acontecido com o Brasil – que talvez não fosse nem “Brasil” – se a linha divisória de Tordesilhas, por desatenção dos portugueses ou resistência dos negociadores espanhóis, tivesse ficado lá mesmo onde a tinha colocado a bula do papa Alexandre VI, no meio do oceano? Teriam as Américas permanecido uniformemente espanholas, contentando-se os portugueses com seus domínios apenas africanos? O mais provável é que incursões de conquistadores concorrentes – franceses, holandeses, ingleses, entre outros – tivessem “esquartejado” bem mais cedo o hemisfério ocidental entre reinos e impérios mercantis europeus.

Muitos outros eventos ou processos podem ser sugeridos nessa linha da “história alternativa”. Cursos diferentes para episódios conhecidos devem, contudo, guardar conexão com o desenvolvimento possível ou com o curso efetivo de cada um deles. É o que se poderia chamar de plausibilidade histórica, o que significa que o curso sugerido não pode ser nem “anacrônico”, nem totalmente arbitrário, no sentido em que a alternativa selecionada poderia ter sido efetivamente “oferecida” aos, ou considerada pelos homens que tomaram tal ou tal decisão em momentos por vezes dramáticos para seus países ou para si mesmos. 

A ideia da contingência na história, uma das bases da história factual, milita, assim, contra o determinismo histórico, muitas vezes exemplificado pela famosa frase de Marx na abertura do seu 18 Brumário de Luís Napoleão, segundo a qual os homens fazem sua própria história, mas o fazem em condições determinadas por forças que estão fora do controle desses mesmos homens.

Resumindo, ideias virtuais também podem constituir uma “boa” matéria prima para a história real, desde que ela se faça em condições aceitáveis de causalidade e de encadeamento das ações humanas. Afinal, o Rubicão, Waterloo, a batalha da Inglaterra, Stalingrado, poderiam, sim, ter conhecido outros desfechos e ter apresentado outras consequências. A relação (sempre ambígua) entre a liberdade e a necessidade nunca está determinada previamente e é isso, justamente, que constitui um dos fascínios da história. 

 

 

Segunda Parte

Momentos decisivos da história do Brasil

 

Os eventos selecionados abaixo, construídos sem outro cuidado de pesquisa histórica que não o desfilar de datas ao fio da memória, constituem exemplos relevantes dos principais “tijolos construtores” de uma história virtual do Brasil. São eles, em todo caso, que oferecem oportunidades significativa de “distorção” do processo histórico, tal como ele efetivamente ocorreu, em direção de outras possibilidades e alternativas de desenvolvimento do itinerário conhecido, que poderiam ser considerados como possíveis ou plausíveis. Vários outros elementos – e não apenas eventos singulares – poderiam ser considerados como passíveis de “inflexão criativa” no registro dos fatos, tais como processos de mais longa duração, que de toda forma se prestam aos critérios de “opções factíveis” ou de fatores contingentes, em função dos quais o desenrolar do processo, no caso do Brasil, poderia ter assumido contornos absolutamente inéditos em relação aos dados registrados nos anais e crônicas da história oficial. 

 

1494: Tordesilhas (do contrário o Brasil não teria sido português)

1500: Descoberta (mas o Brasil não era ainda Brasil)

1640-1654: Expulsão dos holandeses do Nordeste

1750: Tratado de Madri (e seus sucedâneos, El Pardo e Santo Ildefonso)

1759: Expulsão dos jesuítas do Brasil por decreto de Pombal

1763: Transferência da sede do Vice-Reino para o Rio de Janeiro

1792-98: Derrota da inconfidência e decreto de proibição de teares

1808: Abertura dos portos: fim do exclusivo colonial

1810: Tratado de 1810 de Portugal com a Inglaterra: rigidez tarifária

1817: Revolução Pernambucana: primeiro desafio à unidade nacional

1822: Independência (sem abolição da escravatura)

1828: Perda da Cisplatina e nova composição no Prata

1831: Abdicação de D. Pedro I e experiência “republicana” das Regências

1935-45: Farroupilha no Sul: segundo desafio à unidade nacional

1842: Esmagamento da revolução liberal: consolidação conservadora

1844: Nova tarifa e início do experimento protecionista comercial

1850: Lei de Terras inviabiliza a divisão da grande propriedade rural

1854: Início das ferrovias no Brasil: começo da modernização

1865: O Império se descobre frágil com o ataque de Solano Lopez (Tríplice Aliança)

1888: Abolição da escravidão (sem incorporação dos escravos à economia e à sociedade)

1889: Adoção do regime republicano (federalismo na prática, até exagerado)

1891: Constituição republicana (consolida autonomia dos estados, revertida em 1937)

1898: Funding loan e primeira experiência de ajuste fiscal: limites da dívida externa

1902-1912: Configuração das fronteiras nacionais: obra de Rio Branco

1910: Derrota de Rui Barbosa: sistema político de oligarquias-positivistas-militaristas

1922: Início do ciclo tenentista de reforma política brasileira

1930: Revolução “liberal”: fim do regime puramente oligárquico

1931: Suspensão da conversibilidade e início dos controles de capitais (até hoje)

1934: Constituinte corporativa e atração do fascismo

1937: Golpe autoritário: nova centralização e construção do Estado moderno

1938: Derrota do integralismo-fascismo na conquista do Estado

1941: Escolha certa no momento da ofensiva militar nazifascista: com os EUA

1944: Brasil vai à guerra e participa de Bretton Woods

1947: TIAR e doutrina da Guerra Fria: adesão à esfera de influência americana

1947-48: Conferência de Havana: sistema multilateral de comércio

1952: Acordo militar com os EUA: só seria terminado em 1977

1955: Primeiras experiências de liberalização cambial

1957: Industrialização e construção de Brasília: interiorização do desenvolvimento

1961: Golpe e parlamentarismo: ciclo de crises político-militares encerra a era Vargas

1964: República “sindical” é derrotada pelo Exército a serviço da burguesia

1968: Brasil recusa o TNP: autonomia nuclear e projeto próprio termina em 1996

1969: Golpe dentro do golpe: o mergulho na ditadura

1973 e 1979: Duas crises do petróleo: grande impacto econômico e na dívida externa

1975: Acordo Nuclear Brasil-RFA: oposição dos EUA

1979: Começo da transição para a democracia, sob crise econômica constante

1982: crise da dívida externa culmina em 1987, com moratória

1985: Fim do regime militar: início da “quinta” república (Constituição de 1988)

1988: Tratado de Integração com a Argentina (em 1991, Mercosul quadripartite)

1992: Brasil aceita Tlatelolco plenamente e faz “impeachment” do presidente

1994: Plano Real de Estabilização Econômica: vencido o ciclo de ajustes fracassados

1999: Desvalorização e regime de flutuação cambial: consequências para o Mercosul

2002: Vitória do Partido dos Trabalhadores nas eleições presidenciais: grande mudança?

 

 (...)



[1] Ver Niall Ferguson, “Introduction, Virtual History: Towards a ‘chaotic’ theory of the past” in Niall Ferguson (ed.), Virtual History: Alternatives and Counterfactuals (New York: Basic Books, 1997), pp. 1-90, cf. p. 2.

[2] Cf. R. W. Fogel, “The New Economic History: its findings and methods” in Fritz Stern (ed.), The Varieties of History: From Voltaire to the Present (New York: Vintage Books, 1973), pp. 456-473.


Para a íntegra, remeto a este link na plataforma Academia.edu: 

https://www.academia.edu/5913637/1841_Hist%C3%B3ria_virtual_do_Brasil_um_exerc%C3%ADcio_intelectual_2007_


A desgovernança no Brasil atual - Tomas Guggenheim

 Peço licença a meu amigo e colega Tomas Guggenheim para transcrever sua pequena síntese sobre as fontes institucionais e políticas de nossa desgovernança atual:

O quadro descrito é desanimador. Em outros tempos, o eleitor, mesmo desprezando a classe política, tinha fé no seu candidato a presidente, confiando em que ele tinha o poder de melhorar de algum modo a sua situação, mas parece que agora a escolha, para boa parte dos eleitores, seria apenas a do "menor dos males".

Pelo que vimos nos últimos muitos anos, é provável que nenhum presidente tenha condições adequadas para executar um programa de governo coerente e fazer reformas significativas, dado que o Poder Executivo se fragilizou frente ao Legislativo e este, fracionado em múltiplos partidos, precisa ser cooptado a cada votação, independente do mérito das iniciativas. E o STF, num comportamento inusitado nas demais democracias, interfere constantemente na governança, como se também fosse uma instituição eleita por voto direto.
Boa parte da responsabilidade por essa situação é da Constituição de 1988, que, entre outros equívocos, não limitou o número de partidos, nem regulamentou o seu funcionamento, e não limitou o direito de intervenção do judiciário na política. 
O "check and balances" está desequilibrado, o que ficou mais transparente depois que parte dos congressistas deixou de ser cooptada pela corrupção e - como resultado da lavajato - o poder dos ministros do STF aumentou com a submissão dos políticos enrascados nos processos penais e com a falta de sustentação parlamentar dos presidentes. Nesse contexto, a qualificação do titular do Executivo pode ser um fator agravante ou atenuante da boa governança, mas não decisivo, dada a atual limitação de seus poderes.
No artigo em anexo um acadêmico americano refere-se às atuais dificuldades de governar nas democracias ocidentais e de manter a adesão da sociedade às formas democráticas tradicionais devido a um fator "estrutural" que descreve como o "fracionamento" que ocorre no sistema político. E disso o Brasil tampouco é poupado.  

"The political fragmentation that now characterizes nearly all Western democracies reflects deep dissatisfaction with the ability of traditional parties and governments to deliver effective policies. Yet perversely, this fragmentation makes it all the more difficult for governments to do so. Mr. Biden is right: Democracies must figure out how to overcome the forces of fragmentation to show they once again can deliver effective government".

Dez anos atrás, dois livros sobre os 90 anos da Semana de Arte Moderna - Sergio Leo

 A Semana de 22, e além

Livros de Raul Bopp e do jornalista Marcos Augusto Gonçalves revivem a Semana de Arte Moderna

"Movimentos modernistas no Brasil (1922-1928)", de Raul Bopp

"1922: A semana que não terminou", de Marcos Augusto Gonçalves

Entre favores de poderosos, viagens instrutivas à Europa e saraus elegantes, pariu-se o modernismo brasileiro. Uma de suas erupções, a Antropofagia de Oswald de Andrade, foi concebida por amigos em torno de um prato de pernas de rã deglutidas com goles de Chablis gelado, num jantar ciceroneado pelo gordo provocador e sua mulher de então, Tarsila do Amaral. Das rãs a Hans Staden, Oswald começou falando delirantemente da evolução das espécies e terminou liderando um movimento de poucos desdobramentos práticos e muitas ideias fascinantes.

A importância dos batráquios na concepção do Movimento Antropofágico é contada em tons ligeiros por Raul Bopp, em um dos livros que, como rojões no Réveillon, pipocaram no começo deste ano, em comemoração aos noventa anos da Semana de Arte Moderna de 22, evento singular em que intelectuais se revoltaram contra os antigos modelos estéticos trazidos da Europa e defenderam, para o Brasil, novos modelos fortemente influenciados… pela Europa vanguardista — como nota Marcos Augusto Gonçalves em outro livro lançado neste ano, 1922: A semana que não terminou.

O livro de Gonçalves é um bom contraponto ao simpático livrinho de Bopp, editado pela José Olympio, Movimentos modernistas no Brasil (1922-1928)A semana… é jornalístico, mas detalhado, documentado e profundo o suficiente para contentar a qualquer acadêmico; Movimentos… é descosido, impreciso, impressionista, mas repleto de detalhes divertidos capazes de prender até quem nem tenha tanto interesse assim no modernismo brasileiro. É um exaustivo inventário de uma parte importante da intelligentsia brasileira, num momento chave de nossa formação cultural.

Bopp, participante do movimento, é um caso nada incomum de escritor que marcou lugar na literatura brasileira com apenas uma de suas obras. O épico Cobra Norato, poema mergulhado no sincretismo das lendas amazônicas e no projeto modernista de levar aos livros a fala brasileira, é sua contribuição à “luta para desafogar o ambiente dos canastrões, que ditavam as regras do bom gosto”. Seu livro sobre a Semana, publicado inicialmente em 1966, começa com o percurso dos movimentos de arte contemporâneos (dele), em um resumo fortemente influenciado pelas ideias do futurismo italiano (“a visão que o homem moderno forma … funde-se em valores dinâmicos”, “a arte moderna veio … seguindo os caminhos da máquina”). Futurismo seria, aliás, a palavra usada — e depois renegada — por Oswald de Andrade e colegas. Razoavelmente honesto, o resumo de Bopp derrapa ao falar do dadaísmo, “composto, em parte, de subartistas apátridas”, na visão míope do escritor. Mas cumpre a função de mostrar que, enquanto fervia a cena artística europeia, concentrada em Paris, o “velho conformismo” amarrava a expressão artística em formas que nada tinham a ver com a crescente metrópole industrial.

Os “futuristas” brasileiros vão recorrer, porém, não à incipiente burguesia industrial, mas ao velho baronato do café, na figura de Paulo Prado, de linhagem aristocrática (para padrões locais) e esclarecida. Um mecenas como até hoje faz falta no cenário da riqueza nacional. Marcos Augusto Gonçalves, um dos melhores jornalistas da Folha, relata em detalhes os saraus da turma quatrocentona paulista, que reuniram e alimentaram a rebeldia de 22, e documenta como o “terremoto” modernista foi uma “rumorosa acomodação de atritos e fissuras nos limites de um mesmo grande campo”.

O projeto modernista, vitorioso, afinal, teve como trilho o esforço da nova elite paulista para assegurar a própria valorização histórica e cimentar a hegemonia intelectual na República nascente, onde a política já mudava de mãos. O discurso hiperbólico dos “futuristas” corria sem atritos pelas estradas de uma São Paulo que, no centenário da Independência, promovia também o revisionismo histórico capaz de fazer dos bandeirantes o modelo de herói nacional.

Em Raul Bopp, a memória afetiva torna leves os detalhes pitorescos do agrupamento de intelectuais e porraloucas bem instruídos transformados pela Semana em pioneiros da verdadeira Virada Cultural paulista. Em Marcos Augusto Gonçalves, o que dá leveza ao pantagruélico esforço de digestão bibliográfica é o texto jornalístico, amoroso nas descrições e carinhoso com os personagens (cada figura de importância no movimento ganha pelo menos um capítulo, todos com poucas páginas).

Pelo texto colorido de detalhes, Gonçalves põe o leitor no Teatro Municipal, nos dias nervosos da Semana. O livro traz uma reprodução do catálogo da mostra e Gonçalves se desdobra em minudências nada cansativas sobre as cerca de cem obras de arte expostas para as distintas famílias e a patuleia que participou do ao evento. O esforço do pesquisador traz, para a história, personagens esquecidos, como Ferrignac, que teria sido autor de misteriosa obra dadaísta (Gonçalvez se pergunta se havia dadaísmo de fato, ou se o termo entrou na descrição para inglês ou paulista ver). O livro desencava depoimentos como o de Menotti Del Picchia revelando que algumas obras foram “besuntadas” às pressas para dar volume à mostra e protestar, assim, contra um “meloso e decrépito academicismo”. Com outros exemplos, como o de Yan de Almeida Prado, nota-se que nem todo modernista era militante da causa; alguns, como esquerdistas dos anos 80 em convescotes da Libelu, se achegaram ao grupo por causa das festas.

Nesse debruçar-se sobre os personagens está um dos segredos do encanto no livro de Gonçalves. Mário de Andrade é descrito com riqueza, após surgir, a princípio, como figurante na polêmica exposição de Anita Malfati desancada de maneira boçal por Monteiro Lobato, num momento infeliz do escritor iconoclasta — de credenciais irrepreensíveis quando se tratava de combater o academicismo bolorento na literatura. (Sempre lamento que as preferências de Lobato em pintura não sejam mencionadas nem por Gonçalves, nem pela maioria dos que citam o famosos artigo “Paranoia ou Mistificação”, com que o escritor avacalhou a semente expressionista trazida pela pintora ao cenário brasileiro. No artigo em que apedreja as “cubices” de Anita, Lobato, revelando sua falta de olho em matéria de arte, cita como artistas exemplares pintores hoje relegados à periferia da história, como o “mimoso poeta das manhãs” Paul Chabas e o “gênio rembrandtesco” Frank Brangwin, pintores chegados ao rococó e popularíssimos na época).

No livro de Gonçalves, aos poucos, com Mário, com Oswald de Andrade e outros responsáveis pelo movimento, as histórias pessoais se desenrolam e se misturam aos eventos que passam pela Semana de Arte Moderna e vão além. Gonçalves leva ao leitor as dúvidas do pesquisador, no emaranhado de versões que contam essa história. O autor fala das dúvidas sobre o folclórico chinelo com que Villa-Lobos teria regido a execução de suas obras (provavelmente um pé enfaixado, por ataque de gota); compartilha as indicações de que pode ter sido armação teatral o começo da brutal vaia lançada na segunda noite como saudação contra Oswald e Mário (a primeira noite do evento, até com aplausos, teria frustrado os modernistas que esperavam choque e espanto da burguesia local); corrige os que atribuem a Mário, como resposta aos apupos, a leitura da “Ode ao Burguês”.

Gonçalves conta como Mário, o tímido intelectual atemorizado pela plateia agressiva, resistiu, como descreveria depois, “enceguecido pelo entusiasmo dos outros”; e descreve polifonicamente a vaia a Oswald, de acordo com as diferentes visões do próprio Oswald e de testemunhas do embate. O gosto pelo detalhe e pela documentação nunca tem, em 1922: A semana que não terminou, o sabor rançoso que deixa a leitura de pesquisas burocráticas: são cenas vivas e personagens divertidos que compõem uma história difícil de largar. O autor consegue uma unidade no relato que falta ao livrinho de Bopp, também com histórias que conseguem ser pitorescas e exemplares, mas a meio caminho entre o depoimento e o ensaio. Há uma tentativa, em Bopp, de resumir e classificar as correntes “modernistas”, que tem o mérito de traçar movimentos em todo o país, não só em Sampa. Cecília Meireles e Murilo Mendes, por exemplo, são etiquetados como “espiritualistas”. Há trechos, felizmente curtos, com cheiro de relatório de mestre-escola.

Por Bopp e Gonçalves, fica claro que Menotti Del Pichia e Di Cavalcantitiveram atuação fundamental na Semana. Di foi quem deu partida à ideia, atestam os autores. Historinhas paralelas pontuam e recompensam a leitura. Fica-se sabendo, por Bopp, que o futurista Marinetti passou por São Paulo e mal foi notado; lemos justificativas para sua tese de que Brasília não vingaria porque tem o “mau olhado dos deuses”; e conhecemos as experiências jornalísticas do autor, como a interessante Agência Nacional, primeiro esforço de uma agência de notícias brasileira, que reuniu simpatizantes da Coluna Prestes e recebia livros até do integralista Plínio Salgado.

O mais interessante entre os relatos pessoais de Bopp, porém, é a narrativa sobre a criação e desenvolvimento do Movimento Antropofágico, que ele acompanhou sem engajar-se inteiramente, como cronista atento. O Clube da Antropofagia, na casa de Tarsila do Amaral, então mulher de Oswald, tinha “feição britânica”, com “criados de luva branca”. Lamentavelmente, para Bopp, a antropofagia não desenvolveu seus achados e teses, como a revisão da história do Brasil a partir de constatações como a de que o país é fruto de imensa grilagem; sem invasão de terras, o Tratado de Tordesilhas teria feito do Brasil um Chile oriental mais gordinho.

São os dois livros uma leitura sem arrependimentos e fonte de consulta permanente. O filão não é esgotado, mas especialmente o leitor do livro de Marcos Augusto Gonçalves descobrirá, se não estava interessado na Semana de Arte Moderna de 22, por que deveria se interessar. Quem sabe, a partir dos achados e recolhidos de Gonçalves, outros autores encontrem ganchos para explicar o ambiente literário nacional contemporâneo, que às vezes repete como farsa o gosto pelos saraus exclusivos da burguesia que se imagina ousada e aprecia chocar-se com o mau comportamento de seus escribas indisciplinados. Quem sabe, o detalhamento da Semana, com obras como essas duas, dê novas luzes para iluminar o percurso criativo do que chamamos cultura brasileira.

::: Movimentos modernistas no Brasil (1922-1928) ::: Raul Bopp :::
::: José Olympio2012182 páginas:::
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::: 1922: A semana que não terminou::: Marcos Augusto Gonçalves :::
::: Companhia das Letras2012368 páginas :::
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Sergio Leo

Repórter especial e colunista do Valor Econômico. Em 2009, seu livro de contos Mentiras do Rio ganhou o Prêmio Sesc de Literatura.

O pior ministro da Saúde - Alberto Hideki Kanamura ( FSP)

 Alberto Hideki Kanamura disse tudo o que era preciso dizer sobre o desgraçado “médico” que atualmente envergonha o Ministério da Saúde:

Paulo Roberto de Almeida 

O pior ministro da Saúde

Ele protelou medida urgente de saúde pública, ato irresponsável e nefasto

Folha de São Paulo, 6.jan.2022

Alberto Hideki Kanamura

(Médico há 45 anos, trabalhou por 30 anos na gestão de serviços públicos e privados de saúde)

Em março do ano passado, acreditei que não poderia haver pior ministro da Saúde do que o que estava sendo exonerado. Hoje descubro que o viés profissional tinha me enganado. Se aquele, por convicção e formação, era subserviente ao seu comandante em chefe, o atual é asquerosamente servil.

Quando declarou ser "preferível perder a vida do que perder a liberdade", papagueando o chefe, abdicou da sua autoridade médica ao não prescrever o passaporte vacinal. Depois, questionou a imunização em crianças. Disse que não abria mão, como maior autoridade sanitária, para decidir se a vacina deveria ou não ser aplicada. Consulta pública? A Anvisa não é confiável? 

Ele protelou medida urgente de saúde pública, contrariando a ciência e as entidades de especialistas. Ato irresponsável e nefasto. Adiar tal medida possibilita que suscetíveis adoeçam e até evoluam para a morte. Está prevaricando.

Sua obrigação legal é garantir, por ações, a redução de riscos das doenças e de agravos. Ainda que seja "antivacina" (parece não ser o caso), não deve fazer prevalecer sua opinião quando a Anvisa já se pronunciou, orientando-o à decisão mais acertada, com base técnica e científica. Textos hipocráticos já ensinavam: "depois de termos adquirido o completo conhecimento da medicina, nas idas e vindas, sejamos considerados médicos, não somente de nome, mas de fato. A inexperiência, o mau tesouro e o mau espólio, em sono ou vigília, não compartilhar da alegria e da tranquilidade, alimenta a covardia e o atrevimento. Pois a covardia assinala a falta de capacidade, e o atrevimento, a falta de perícia. São duas coisas distintas, a ciência e a opinião: uma produz saber, e a outra, ignorância".

Errar, todos erramos; para isso, há perdão. Não é perdoável, entretanto, que, deliberadamente, atente contra a população, usando a autoridade de ministro. O médico, quando ministro, não deixa de ser médico e deve seguir os preceitos da profissão. O juramento diz que, se estes forem cumpridos, possa desfrutar a vida afamada junto aos homens, e se os transgredir, que o contrário aconteça.

Quem sou eu para julgar? Mas, como médico, obrigo-me a denunciar um colega que está a transgredir os postulados éticos. Dois fundamentos do Código de Ética Médica foram contrariados. "O médico não pode, em nenhuma circunstância ou sob nenhum pretexto, renunciar à sua liberdade profissional, nem permitir quaisquer restrições ou imposições que possam prejudicar a eficiência e a correção de seu trabalho." Contra a sua formação, diz seguir o que manda o presidente.

"O médico terá, para com os colegas, respeito, consideração e solidariedade, sem se eximir de denunciar atos que contrariem os postulados éticos." Calou-se e até apoiou o presidente da República, que, contrariado com a decisão da Anvisa, jogou seus técnicos às feras no Coliseu das mídias sociais.

Além disso, transgrediu ao menos três artigos do código: 1 - "Ao médico é vedado causar danos ao paciente por ação ou omissão". Retardando a vacinação infantil, está causando danos a esta população; 2 - "Ao médico é vedado acumpliciar-se com os que exercem ilegalmente a medicina", acobertando abertamente quem prescrevia medicamentos sem eficácia; e 3 - "Ao médico é vedado permitir que interesses pecuniários, políticos, religiosos ou de quaisquer outras ordens, do seu empregador ou superior hierárquico, ou do financiador público ou privado de assistência à saúde, interfiram na escolha dos melhores meios de prevenção, diagnóstico e tratamento disponíveis cientificamente reconhecidos no interesse da saúde do paciente e da sociedade".

Faço esta denúncia pública para escrutínio dos colegas por não acreditar que o Conselho Federal de Medicina, que hoje tem lado, vá tomar qualquer medida — a não ser contra mim, que me coloco do outro lado. Conclamo a todos que se dedicaram a ler este texto a refletir e a se perguntar: por que raios o médico quer ser ministro da Saúde?"


Acrescento (PRA): o CFM envergonha a corporação ao ser conivente e omisso com respeito aos atentados à saúde pública que vêm sendo perpetrados por autoridades políticas com a colaboração de profissionais da saúde que descumprem seu juramento de graduação.

Bolsonaro expõe a imundície de suas entranhas e de seu projeto eleitoral - Vinicius Torres Freire (FSP)

 O psicopata se degrada e degrada o país. O degenerado é uma escória ambulante que não consegue sequer ser um líder fascista, pois para  isso seria preciso ter um discurso organizado. O genocida é apenas o que restou do esterco da política, que só emergiu a parte da Grande Destruição lulopetista da economia e da moralidade pública.

O Brasil desgraçadamente caminha para mais um ano de mediocridade degradante com essa imundície no poder.

Paulo Roberto de Almeida 


Bolsonaro expõe a imundície de suas entranhas e de seu projeto eleitoral

Brutalidade, exibição de vergonhas e artes do espectro fascista são projeto eleitoral

Viniciu Torres Freire

Folha de S. Paulo, 9/01/2022

O espetáculo, a massificação da mentira e a propaganda da morte são atitudes típicas de políticos do espectro fascista. Jair Bolsonaro não é lá diferente. Foi assim a virada de ano da extrema direita brasileirinha, ainda mais repugnante na sua decomposição avançada, mas até por isso mesmo capaz de causar mais pestes.

O país se degrada, mais gente padece de fome, doença ou desgraças como as enchentes da Bahia. A administração pública se desorganiza mais, ora em revolta contra caprichos sectários desse tipo que ocupa a cadeira de presidente, que quer agradar polícias a fim de manter consigo falanges armadas.

Há operações-padrão de auditores da Receita, o que ameaça por exemplo a importação de combustíveis; há ameaça de greve geral de servidores. A produção da indústria encolheu pelo sexto mês seguido, o que não se via desde a recessão de 2015. Azares do tempo podem fazer com que a safra de grãos seja menor que a do ano passado —​se esperava recorde, um anteparo mínimo para a recessão que começa a aparecer no horizonte. Mas não há governo, tentativa de reação ou remédio. Ao contrário.

Bolsonaro vai a culto da Igreja Sara Nossa Terra, no Distrito Federal - @Bispo Robson Rodovalho no Facebook

O capitão da morte vadiava, indiferente a sofrimentos e desordens, rindo com sua catadura selvagem e sua boca espumante. Fazia o show do tiozão grosseiro desfilando com brinquedos caros e barulhentos. Era parte da palhaçada da autenticidade, show que em breve voltaria quase à indecência teratológica dos tempos das cirurgias, durante a internação indigesta do tapado. Uma parte do espetáculo de Bolsonaro é a exposição de suas entranhas morais e quase literalmente físicas: intimidades com a mulher com quem se casou, o corpo nu cheio de tubos, as cicatrizes e, agora, sua indigestão monstruosa.

"Foi domingo. Eu não almoço, eu engulo. Foi uma peixada, tinha uns camarõezinhos também. Eu mastiguei o peixe e engoli o camarão", disse, ao explicar sua mais recente internação.

A indecência, a brutalidade e a feiura são parte da estética política do bolsonarismo. Entender porque o despudor ainda comove suas falanges e um tanto mais do eleitorado é um problema, mas desde a irrupção de Bolsonaro tal exposição faz algum efeito. A exibição do desmazelo pessoal, corporal e social, sua boca-suja, seu linguajar iletrado e cafajeste, o chinelão, o leite condensado com migalhas espalhadas pela mesa, tudo faz parte da fantasmagoria da autenticidade.

O espetáculo vai além, claro. Há motociatas e comícios golpistas, assim como a nomeação de inimigos da pátria, do cardápio tradicional do espectro fascista. Há o heroísmo de fancaria de quem diz lutar contra o "sistema" e a difusão de mentiras conspiratórias que tempera esse brutesco. Há o farisaísmo, as blasfêmias e o uso do nome de Deus em vão, o que espantosamente não abala muita gente religiosa. Há a propaganda da morte, a crítica aos "tarados por vacina" e a indiferença quanto à morte de crianças. Tudo isso é tolerado, como se o salvador da pátria e da família tivesse de vir travestido de anticristão (o que também é o caso de Donald Trump).

E daí? Esse é o monstro que, daqui a outubro, tentará obter votos para a reeleição ou algum modo de sobreviver politicamente ou fora da cadeia. Esses são seus recursos. Bolsonaro não tem nada que qualquer governante no limite do universo da razão e da decência pudesse apresentar como realização. Seus instrumentos são a ameaça de morte, baderna armada, golpe e tirania, o grotesco nauseabundo e a apelação aos sentimentos mais baixos e desumanamente lunáticos _o tipo é indiferente à morte de crianças, ressalte-se.

Foi assim o Ano Novo de Bolsonaro. Por que acreditar que o ano eleitoral será diferente? O que mais lhe resta além da fuga? A desordem imunda.