O que é este blog?

Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.

Mostrando postagens com marcador Semana de Arte Moderna. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Semana de Arte Moderna. Mostrar todas as postagens

domingo, 13 de fevereiro de 2022

Minha homenagem à Semana de Arte Moderna: O “modernismo” brasileiro chegando aos 100 anos - Paulo Roberto de Almeida (Estado da Arte)

 Um texto e dois anos atrás, mas ainda válido: 

3774. “O ‘modernismo’ brasileiro aos 100 anos”, Brasília, 20 outubro 2020, 5 p. Notas para um futuro trabalho reflexivo. Divulgado no blog Diplomatizzando (link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2020/10/o-modernismo-brasileiro-aos-100-anos.html). Revisto e ampliado em 11/11/2020. Publicado no Estado da Arte (17/11/2020, link: https://estadodaarte.estadao.com.br/modernismo-100-anos-pra/); disponível no blog Diplomatizzando (17/11/2020; link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2020/11/de-volta-para-o-futuro-nossas.html). Relação de Publicados n. 1473. 

Transcrevo novamente aqui: 


O “modernismo” brasileiro chegando aos 100 anos

por Paulo Roberto de Almeida……

Ideias movem o mundo?

Certamente! O historiador Felipe Fernandez-Armesto dedicou um livro inteiro — Idéias que mudaram o mundo (São Paulo: Arx, 2004) — às grandes ideias que mudaram o mundo, desde a mais remota Antiguidade até a mais recente modernidade.

Uma delas foi o “modernismo”, movimento cultural e artístico que emergiu lentamente a partir da belle époque, mas que se consolidou no imediato seguimento da Grande Guerra, a partir das novas formas de organização econômica e política que foram sendo moldadas com a industrialização e a urbanização das sociedades ocidentais. A Grande Guerra foi o evento cataclísmico e seminal que mudou irreversivelmente a face do mundo, mas que só foi chamada de Primeira retrospectivamente, depois que os desastres incomensuravelmente maiores do grande conflito de 1939-45 se acumularam justamente por causa das heranças não resolvidas daquele primeiro grande conflito global.

Modernismo foi também a designação que se convencionou atribuir ao movimento de ideias que realmente “movimentou” o Brasil desde essa época, tendo sido simbolizado, e consagrado, na Semana de Arte Moderna de fevereiro de 1922, o ano em que o Brasil estava se preparando para comemorar, alguns meses à frente o primeiro centenário da independência (o que realmente foi feito, por meio de uma exposição internacional). Esse “modernismo” brasileiro tomou impulso a partir de algumas ideias que já vinham sendo expostas desde mais de uma década antes pelo “futurismo” de Marinetti, um conjunto perfeitamente contraditório de ideias, pretensamente de avant-garde, que começou cultuando o industrialismo, a rapidez e a automação da segunda revolução industrial, mas que também se posicionou a favor das “virtudes eugênicas” das guerras. O manifesto de Marinetti, lançado em fevereiro de 1909, proclamava de modo provocador:

Non v’è più bellezza se non nella lotta . . . Noi vogliamo glorificare la guerra — sola igiene del mondo — il militarismo, il patriottismo, il gesto distruttore dei libertari, le belle idee per cui si muore… (Filippo Marinetti: Manifesto del Futurismo)………………………..

‘Vive la France’, Filippo Marinetti, 1914–15 (Reprodução: MoMA)

…………………

Se essa era a intenção, ele foi amplamente contemplado pela carnificina dos campos de batalha do norte da França, nos quais milhares de soldados morriam inutilmente em busca da conquista de algumas polegadas de terreno, se tanto. Várias dessas ideias acabaram desembocando no militarismo e no fascismo de Mussolini, com todos os horrores que daí decorreram para a Itália burguesa e parlamentarista que se tinha dificilmente construída a partir do “transformismo” dos líderes políticos da unificação de algumas décadas antes. Olhando da perspectiva dos horrores ainda maiores da Segunda Guerra — que vitimou o dobro dos 20 milhões de mortos da Primeira —, o fascismo de Mussolini constituiu uma espécie de bolchevismo elitista, mas que também se refletiria, poucos anos mais tarde, no nazi-fascismo de Hitler, que foi o suprassumo dos instintos mais primitivos de destruição de tudo o que não se enquadrasse nos moldes eugênicos da raça pura.

Cabe não esquecer que o eugenismo e a busca insana da raça pura do nazi-fascismo tomaram impulso em tendências que já estavam em evidência no pensamento dos racistas europeus do final do século XIX e início do XX, mas que assumiram importância igualmente nos Estados Unidos desde o pós-guerra civil, quando o racismo e o Apartheid segregacionista em prática nos estados do Sul (mas igualmente partilhado ao Norte) acabaram sendo confirmados pela Suprema Corte e “federalizados” pelo presidente Woodrow Wilson, considerado um idealista internacionalista, mas que que era também um notório racista da Virgínia. Tais concepções racistas foram, durante largo período da transição entre os dois séculos, consideradas perfeitamente adequadas ao conceito de superioridade ariana de Rosenberg, que por sua vez foi o influenciador de Hitler, nas suas “ reflexões de cadeia” que resultaram no Mein Kampf. O tema das ideologias racistas nos Estados Unidos já tinha sido abordado, muitos anos atrás, no livro do paleontologista Stephen Jay Gould, The Mismeasure of Man (New York: Norton, 1981), mas foi abordado de forma mais incisiva na obra mais recente de James Q. Whitman: Hitler’s American Model: The United States and the Making of the Nazi Race Law (Princeton: Princeton University Press, 2017).

Muitas dessas ideias, por sinal, se originaram em reflexões preliminares formuladas no Brasil por Gobineau, um “inimigo cordial do Brasil” segundo George Raeders (Le comte de Gobineau au Brésil, 1934). Este ministro de Napoleão III no Rio de Janeiro, amigo de Pedro II, tinha verdadeiro horror à degenerescência da raça exemplificada pelos mestiços brasileiros, que levariam o Brasil a ser um completo desastre no contexto das nações civilizadas (todas elas supostamente de loiros dolicocéfalos). Tais ideias, numa época de darwinismo social e de teorias eugênicas, acabaram desembocando nas teorias do “branqueamento da raça”, que tiveram muito sucesso no Brasil, dos anos 1870 até praticamente o final da Segunda Guerra, tal como analisado por Thomas Skidmore em Preto no Branco (Black into White: race and nationality in Brazilian Thought, 1974).

Esse encadeamento de ideias e de formulações “civilizatórias”, que partem de pressupostos ingênuos, aparentemente tendentes a “melhorar” a humanidade e as sociedades, geralmente redundam em verdadeiros desastres para povos antigos e civilizações inteiras. Os liberais ingleses do século XIX, por exemplo, não acreditavam que a democracia fosse “fitted for touaregs and bedouins”, justificando-se portanto o grande empreendimento imperialista e colonizador, à la Kipling, que levou o Reino Unido da era vitoriana a adquirir toda a Índia da Companhia das Índias Orientais britânica, e a conquistar metade da África, do Cairo ao Cabo.

Pouco depois, nesse mesmo impulso, o vigoroso novo presidente americano Theodore Roosevelt, proclamando o “Corolário Roosevelt” à doutrina Monroe, recomendava que se falasse macio, mas que se carregasse um “grande porrete”, supostamente para enquadrar povos recalcitrantes que ainda não estavam à altura das maneiras civilizadas dos anglo-saxões (esses “lazy” latinos e caribenhos, por exemplo).

Cabe não esquecer que mesmo um grande conhecedor do imperialismo britânico, como era o Barão do Rio Branco, não demorou muito para reconhecer a “independência” do Panamá, uma “costela” arrancada da Colômbia pelos novos imperialistas americanos, com vistas a apressar a construção do novo canal interoceânico, um pouco atrasada desde o desastre fraudulento da nova aventura de Lesseps, o construtor de Suez, que por sua vez havia entusiasmado Verdi na produção de Aída. As nações mais avançadas, e modernas, podem exibir os comportamentos mais bárbaros, em nome da disseminação do progresso e da defesa da civilização, nos recantos mais recuados do planeta. Ideias podem ser perfeitamente contraditórias e levar a resultados surpreendentes na segunda ou terceira geração desde a sua origem, e não apenas em nações aparentemente pouco propensas ao exercício da soberania.

……………..

“British India”, 1909

…………………..

O grande movimento romântico alemão, que desempenhou um papel importante na conformação da luta pela unificação da Vaterland, conduzida por essa entidade mítica conhecida como das Volk, acabaria redundando na “metapolítica” dos wagnerianos que, fortalecida na música patriótica do grande mestre, e nos seus sentimentos perfeitamente antissemitas, se enquadraria, por sua vez, no caudal racista e supremacista do nazismo. O itinerário histórico dessa ideia apresentada por Peter Viereck em sua tese de doutoramento de 1941, transformada em livro sob o título de Metapolitics: from Wagner and the German Romantics to Hitler (edição ampliada: 2004). O termo metapolítica, tal como criado e usado pelos círculos wagnerianos que seriam mais tarde recuperados pelos seguidores de Hitler, denotava uma ideologia baseada na pseudociência da raça, na devoção ao Fuehrer e na força inconsciente do povo, entre vários outros elementos, inclusive o antissemitismo, muito disseminado na Alemanha desde Lutero até os românticos do século XIX.

Por acaso, o mesmo termo “metapolítica” foi usado para designar um blog de combates políticos numa recente campanha presidencial, recheado de diversas outras inovações conceituais, como, por exemplo, a hipótese (ou seria uma “invenção) do nazismo como sendo um movimento “de esquerda”, o ataque furioso ao “globalismo”, essa trouvaille do “comunavirus” e outras bizarrices. Esses e outros exemplos de um tipo de pensamento, que possui incômodas relações com uma extrema direita bem mais violenta e exterminadora, podem ser encontrados aquiMais, passons

Vamos voltar ao nosso modernismo de 100 anos atrás. Ele parecia prometer um futuro de vanguarda, mas por razões desconhecidas ele não parece ter refletido os horrores que tinham sido registrados poucos anos antes pela carnificina da Grande Guerra, que vitimou entre 15 e 20 milhões de vítimas, talvez pelo fato de que o Brasil praticamente não participou do teatro de guerra europeu. Quando os primeiros contingentes se aproximavam do velho continente o armistício de novembro de 1918 já estava sendo assinado. Mas o Brasil foi, sim, atingido pela pandemia universal da “gripe espanhola”, na verdade americana, que causou a morte de 50 a 100 milhões de pessoas, algumas dezenas de milhares no Brasil.

O modernismo no Brasil foi muito mais risonho e franco do que o furor belicista, militarista, expansionista, do pré-fascista Marinetti, a despeito de algumas críticas acerbas de um outro modernista instintivo como foi Monteiro Lobato, considerado por muitos, mas equivocadamente, como um “inimigo” da Semana de Arte Moderna.

Nosso modernismo não foi só antropofagia cultural, aquela herança de canibais autóctones deglutindo o infeliz bispo Sardinha, mas também tentando romper os cânones dos mais contemporâneos europeus. Ele também resultou na consciência do nosso atraso, agitou os jovens tenentes na luta contra a corrupção política e congregou os primeiros reformistas consequentes a se unirem em associações pela melhoria da educação de massas que, dez anos mais tarde, resultou no Manifesto dos Pioneiros da Educação, a primeira grande revolução das elites do Brasil pós-Abolição (que, aliás, permaneceu inacabada).

A Semana de Arte Moderna foi uma espécie de frenesi transformador, que agitou momentaneamente os corações e mentes da nossa République des Lettres, mas que depois hibernou na mesmice de Artur Bernardes e de Washington Luís, exasperando os jovens paulistas afoitos do novo partido “democrata”. Tudo bem: acabou confluindo para a Aliança Liberal que resolveu passar às vias de fato para liquidar de vez com a política “carcomida” da primeira República, nossa esperança jacobina, mas frustrada, de Revolução Burguesa que se transformou rapidamente em Ancien Régime.

Como se vê mais uma vez, ideias e movimentos são surpreendentes e contraditórios, podendo conduzir a resultados inesperados. Que algumas ideias estejam ou não em seu lugar, elas podem chegar ao Brasil com certo atraso, ou então sofrem de inadequação funcional. No ano do primeiro centenário da independência, a “república das letras e artes” queria fazer do Brasil um país moderno, embora sem dispor do apoio necessário entre os dirigentes políticos e, mais importante, dos donos do capital (rural e urbano, agrário e industrial), para levar a cabo aquele impulso decisivo para um futuro efetivamente moderno.

A Semana de Arte Moderna causou aquele “agito” temporário, coloriu telas provocadoras, inovou na composição visual e gráfica da nova literatura, na prosa e na poesia, mas parece ter feito “chabu” em pouco tempo mais. Tanto é assim que um dos seus patrocinadores mais exaltados, Mario de Andrade, reconhecia, alguns anos depois, no provocador poema “O Poeta Come Amendoim”, e de forma algo frustrada, que “progredir, progredimos um tiquinho, que o progresso também é uma fatalidade”.

…………………

Mario de Andrade

……………..

A fatalidade, talvez não da forma esperada, acabou atingindo o Brasil alguns anos depois, sob as patas dos “cavalos castilhistas”, importados do Rio Grande do Sul e apeados no Obelisco do Rio de Janeiro”. O castilhismo é aquele movimento supostamente positivista do Homem que Inventou a Ditadura no Brasil (Decio Freitas, 1998), que fez com que um de seus discípulos, o timorato, mas maquiavélico Vargas, desse início a um “breve período de 15 anos”, que realmente transformou o Brasil (para o bem e para o mal). Os militares que se acomodaram no poder em 1964, para um “breve período de 21 anos”, todos eles se formaram nas academias militares da “era Vargas”, com algumas concepções “prussianas” de “ciência bélica” e várias outras concepções quase “nazistas” de “ciência econômica” (autarquia, nacionalização vertical) e até algumas pontas de “stalinismo industrial” (mas para os ricos tão somente).

O Brasil, como se vê, sempre foi fértil de ideias, e continua sendo, ainda que com aplicações nem sempre exitosas. Temos a capacidade de importas as ideias mais generosas, e as mais malucas, misturar tudo no liquidificador da academia e da política, e depois servir para o povo, como grandes símbolos da renovação do país. O humorista Millôr Fernandes, conhecido por muitas outras frases ferinas, dizia que quando as ideias ficavam muito velhas em outros lugares, elas se mudavam para o Brasil, o que é certamente uma injustiça (com as ideias, pois eles estão permanentemente em viagem).

A Semana de Arte Moderna de 1922 foi assim como uma Nova República avant la lettre, um grande impulso renovador que acaba sendo absorvido pelo realismo (e esperteza) da velha política corruptora (mas travestida de moderninha). Ela talvez tenha sido novamente ensaiada no Primeiro Congresso Brasileiro de Escritores, em 1945, patrocinado pelo mesmo Mário de Andrade, no mesmo Teatro Municipal de São Paulo; seus resultados podem ter sido igualmente decepcionantes, uma vez que a República de 1946 oscilou continuamente entre o conservadorismo dos coronéis do PSD e o progressismo sindicalista (mas oficial) do PTB, ambos espicaçados pelo “modernismo golpista” da UDN. O mesmo ocorreu, sob outra roupagem, na Nova República de 1985, cujo entusiasmo renovador da “Constituição cidadã” foi oportunamente recuperada pela mão de ferro conservadora do Centrão, uma inovação na época, mas que se repetiu indefinidamente pelas três décadas seguintes. Foi assim que caímos no novo coronelismo eletrônico de um “curral eleitoral” perfeitamente retrógrado (porque populista e assistencialista), mas que está sempre sendo renovado sob rótulos pouco originais, mas atrativos (como, por exemplo, “Renda Brasil”, “Renda Cidadã”, whatever…).

Cem anos depois, o que restou da Semana de Arte Moderna, do modernismo brasileiro, da angústia então ressentida pelos modernistas quanto à necessidade de “jogar” definitivamente o país no futuro?

Por acaso, a consciência de que deveríamos estar comemorando o bicentenário da independência com um pouco mais de engajamento nas grandes reformas estruturais, como jamais o fizemos, mais de 130 anos depois da Abolição? Talvez engajando, finalmente, a revolução educacional prometida pelos “pioneiros” dos anos 1930, tentativamente retomada por alguns dos mesmos batalhadores no início dos anos 1960 — entre eles Anísio Teixeira e, sobretudo, Fernando Azevedo, mais Florestan Fernandes e outros —, mas frustrada de novo pelo movimento militar de abril de 1964, que cuidou bem mais da superestrutura da formação do que da educação de base, como deveria ser a prioridade? A “substituição de importação” operada no ensino superior, com a pós-graduação finalmente consolidada no país, conseguiu romper as deficiências de formação de professores de primeiro e segundo grau?

Todos os impulsos de crescimento levados a efeito desde um século atrás — na era Vargas, no otimismo dos “50 anos em 5” dos anos JK, no Brasil Grande Potência da era militar, no brevíssimo interlúdio modernizante dos regimes “liberais” de Collor e FHC, na retomada do crescimento empurrada pela demanda chinesa na primeira fase dos mandatos petistas — não lograram, ao fim e ao cabo, retirar o Brasil das misérias da pobreza, da concentração de renda, do racismo sub-reptício, da injustiça social, da má educação de massa, que sempre foram os objetivos mais ou menos explícitos de nossos “modernistas” de todos os tempos e matizes, de José Bonifácio a Hipólito, passando por Mauá e Nabuco, continuando com Rui Barbosa, e depois com Lobato, Roberto Simonsen, Roberto Campos, Celso Furtado e vários outros. Todos eles clamaram por reformas, e todos se chocaram contra o muro do imobilismo. Enquanto essa pequena tribo de sonhadores lutava pelo desenvolvimento do país, o que faziam suas classes dominantes e suas elites dirigentes? Certamente os aplaudiam, mas não se decidiam pelo difícil caminho das reformas, talvez com medo daquele sentimento de que uma vez empreendido esse itinerário, as “coisas” — isto é, os sindicatos anarquistas, o partido comunista, os inimigos da lei e da ordem — se precipitassem fora do seu controle.

Esta talvez seja uma das poucas certezas da história política e social do Brasil: entre o tráfico e trabalhadores livres, as elites ficaram com o primeiro, enquanto foi possível; entre a abolição do regime escravocrata e o livre acesso de imigrantes a terras do Estado, elas se mantiveram o mais possível no nefando sistema. Não estranha, assim que o sentimento de angustiante e prematuro “reformismo” da pequena tribo de “modernistas” avant la lettre não fosse unanimemente partilhado por todas as elites brasileiras, os grupos economicamente dominantes e os estratos politicamente dirigentes.

Ele não o foi desde a independência, quando Hipólito da Costa e José Bonifácio, nossos primeiros (dentre os pouquíssimos) estadistas, preconizavam a extinção imediata do tráfico negreiro e a eliminação gradual da escravidão africana. Mas essa história começou bem antes, continuou no Estado independente e se prolongou na República. O reformismo foi derrotado em 1789-92, na revolta dos alfaiates uma década depois, na segunda tentativa independentista em 1817, no próprio movimento “autonomista com continuidade”, em 1822-23, novamente em 1824, numa versão federalista e republicana, outra vez em 1842, em torno de alguns princípios liberais, e em várias outras oportunidades, inclusive em 1888, em 1889 e, finalmente, em 1922, mas apenas como ensaio de preparação. A Semana elitista foi seguida pelo início do movimento dos tenentes, na praia de Copacabana, prosseguiu nas revoltas de 1924 em diante, até culminar na “revolução burguesa” de 1930.

……………..

José Bonifácio

………………..

O Brasil oferece fartos exemplos de eventos, processos e movimentos que se enquadrariam perfeitamente nesses exercícios historiográficos do tipo do What If? (o que teria acontecido se…) Mas, curiosamente, a maior parte, ou a quase totalidade, é constituída por agitações elitistas, não exatamente movimentos de massa. Nem uma verdadeira revolução burguesa conseguimos ter, a despeito do esforço de Florestan Fernandes em tentar provar que ela só poderia assumir uma feição autocrática e subordinada ao latifúndio e ao imperialismo.

Antonio Paim, um dos nossos grandes pensadores, que começou na vida como marxista e que acabou se convertendo a um liberalismo lúcido (e, portanto, saudavelmente cético), já tentou um exercício passavelmente similar no seu livro sobre alguns do momentos decisivos na história do Brasil, mas não tenho certeza de que os momentos tenham sido aqueles ou de que as “escolhas” se apresentassem da maneira como ele o fez nessa obra e numa outra imediatamente seguinte, sobre as dificuldades de se reformar o Brasil (Momentos Decisivos da História do Brasil, 2000; O relativo atraso brasileiro e sua difícil superação, 2000).

Resumindo: cem anos depois da Semana “fatídica” de 1922, continuamos com o mesmo sentimento que tiveram os dois grandes estadistas de um século antes, que é o de oportunidades perdidas. Talvez será o mesmo sentimento a aflorar dentro em pouco, no bicentenário da independência: os “modernistas” sempre sonham um pouco mais alto do que a realidade das classes dominantes e das elites dirigentes o permite: as grandes reformas modernizantes tardam a se concretizar.

Esse sentimento deve ser similar ao dos abolicionistas frustrados de 132 anos atrás, ao dos jacobinos republicanos decepcionados com a primeira década de desastres a partir da inauguração do novo regime, ao dos idealistas do Diretas Já e das promessas não realizadas da Nova República, estes igualmente descontentes e provavelmente deprimidos pela voragem inflacionária e pelas revelações da gigantesca corrupção política que tivemos na maior parte do período recente. Quem sabe são os mesmos sentimentos que hoje continuam a angustiar os diversos movimentos que lutaram pelo mais recente impeachment — já tivemos vários, alguns disfarçados de outra coisa — e que mobilizaram muitos que foram às ruas por uma “nova política”, aquela que já deveria ter sido “ética”, segundo nos prometiam, mas que não foi, nem antes, nem depois, e muito menos agora.

Esse sentimento é uma mistura de déjà vu e de desesperança, quase uma desistência: o que exatamente teremos a comemorar em 2022? Pouco, muito pouco, quase nada. Será que vale a pena fazer uma Comissão Nacional para ouvir os mesmos discursos do poder?

Em 1922 havia certa sensação de que algo poderia ser feito, a despeito das frustrações com as primeiras três décadas da República: valia a pena tentar sermos “modernos”; era o que o mundo também tentava, apesar do terrível legado da Grande Guerra, com a Liga das Nações, o pacto de 1928 para evitar novas guerras, todas as conferências econômicas para tentar voltar ao padrão ouro da Belle Époque. Tudo se esvaneceu a partir de 1929, e sobretudo a partir de 1931, e só saímos do túnel quinze anos depois.

O que teremos em 2022, 37 anos após a inauguração de uma “Nova República” que já tinha envelhecido menos de dez anos depois de seu início? Existe algo a ser comemorado num bicentenário de retrocessos, de ignorância e de obscurantismo? De elogios a torturadores e de destruição do patrimônio natural? De subserviência a uma potência estrangeira, ou a um dirigente ainda mais ignaro e preconceituoso do que os velhacos arrogantes do passado?

Em 2020, ainda não temos respostas a essas perguntas, a essas dúvidas.

Por enquanto, só nos cabe retirar o ponto de interrogação do título de uma bela, mas triste conferência feita pelo embaixador Rubens Ricupero na Academia Brasileira de Letras: “Um futuro pior que o passado? Reflexões na antevéspera do bicentenário da Independência” (29/08/2019; disponível em formato de vídeo aqui). Foi uma grande e profunda reflexão sobre o modernismo que poderíamos ter tido, mas que não conseguimos mais ter, desde 1922, ou talvez desde o primeiro 22. No terceiro 22 será uma nova tentativa de avançar, ou teremos de nos conformar com mais um terrível retrocesso, antes de uma possível, mas incerta, “volta para o futuro”? Temos menos de dois anos para inverter essa nova marcha da insensatez.

Conseguiremos?……………….

A lua de Tarsila do Amaral

…………

…………..

Paulo R. de Almeida

Paulo R. de Almeida é Doutor em Ciências Sociais (Université Libre de Bruxelles, 1984), Mestre em Planejamento Econômico (Universidade de Antuérpia, 1977), Licenciado em Ciências Sociais pela Université Libre de Bruxelles, 1975). É diplomata de carreira, por concurso direto, desde 1977; serviu em diversos postos no exterior e exerceu funções na Secretaria de Estado, geralmente nas áreas de comércio, integração, finanças e investimentos. Foi professor de Sociologia Política no Instituto Rio Branco e na Universidade de Brasília (1986-87) e, desde 2004, é professor de Economia Política no Programa de Pós-Graduação (Mestrado e Doutorado) em Direito do Centro Universitário de Brasília (Uniceub).

domingo, 9 de janeiro de 2022

Dez anos atrás, dois livros sobre os 90 anos da Semana de Arte Moderna - Sergio Leo

 A Semana de 22, e além

Livros de Raul Bopp e do jornalista Marcos Augusto Gonçalves revivem a Semana de Arte Moderna

"Movimentos modernistas no Brasil (1922-1928)", de Raul Bopp

"1922: A semana que não terminou", de Marcos Augusto Gonçalves

Entre favores de poderosos, viagens instrutivas à Europa e saraus elegantes, pariu-se o modernismo brasileiro. Uma de suas erupções, a Antropofagia de Oswald de Andrade, foi concebida por amigos em torno de um prato de pernas de rã deglutidas com goles de Chablis gelado, num jantar ciceroneado pelo gordo provocador e sua mulher de então, Tarsila do Amaral. Das rãs a Hans Staden, Oswald começou falando delirantemente da evolução das espécies e terminou liderando um movimento de poucos desdobramentos práticos e muitas ideias fascinantes.

A importância dos batráquios na concepção do Movimento Antropofágico é contada em tons ligeiros por Raul Bopp, em um dos livros que, como rojões no Réveillon, pipocaram no começo deste ano, em comemoração aos noventa anos da Semana de Arte Moderna de 22, evento singular em que intelectuais se revoltaram contra os antigos modelos estéticos trazidos da Europa e defenderam, para o Brasil, novos modelos fortemente influenciados… pela Europa vanguardista — como nota Marcos Augusto Gonçalves em outro livro lançado neste ano, 1922: A semana que não terminou.

O livro de Gonçalves é um bom contraponto ao simpático livrinho de Bopp, editado pela José Olympio, Movimentos modernistas no Brasil (1922-1928)A semana… é jornalístico, mas detalhado, documentado e profundo o suficiente para contentar a qualquer acadêmico; Movimentos… é descosido, impreciso, impressionista, mas repleto de detalhes divertidos capazes de prender até quem nem tenha tanto interesse assim no modernismo brasileiro. É um exaustivo inventário de uma parte importante da intelligentsia brasileira, num momento chave de nossa formação cultural.

Bopp, participante do movimento, é um caso nada incomum de escritor que marcou lugar na literatura brasileira com apenas uma de suas obras. O épico Cobra Norato, poema mergulhado no sincretismo das lendas amazônicas e no projeto modernista de levar aos livros a fala brasileira, é sua contribuição à “luta para desafogar o ambiente dos canastrões, que ditavam as regras do bom gosto”. Seu livro sobre a Semana, publicado inicialmente em 1966, começa com o percurso dos movimentos de arte contemporâneos (dele), em um resumo fortemente influenciado pelas ideias do futurismo italiano (“a visão que o homem moderno forma … funde-se em valores dinâmicos”, “a arte moderna veio … seguindo os caminhos da máquina”). Futurismo seria, aliás, a palavra usada — e depois renegada — por Oswald de Andrade e colegas. Razoavelmente honesto, o resumo de Bopp derrapa ao falar do dadaísmo, “composto, em parte, de subartistas apátridas”, na visão míope do escritor. Mas cumpre a função de mostrar que, enquanto fervia a cena artística europeia, concentrada em Paris, o “velho conformismo” amarrava a expressão artística em formas que nada tinham a ver com a crescente metrópole industrial.

Os “futuristas” brasileiros vão recorrer, porém, não à incipiente burguesia industrial, mas ao velho baronato do café, na figura de Paulo Prado, de linhagem aristocrática (para padrões locais) e esclarecida. Um mecenas como até hoje faz falta no cenário da riqueza nacional. Marcos Augusto Gonçalves, um dos melhores jornalistas da Folha, relata em detalhes os saraus da turma quatrocentona paulista, que reuniram e alimentaram a rebeldia de 22, e documenta como o “terremoto” modernista foi uma “rumorosa acomodação de atritos e fissuras nos limites de um mesmo grande campo”.

O projeto modernista, vitorioso, afinal, teve como trilho o esforço da nova elite paulista para assegurar a própria valorização histórica e cimentar a hegemonia intelectual na República nascente, onde a política já mudava de mãos. O discurso hiperbólico dos “futuristas” corria sem atritos pelas estradas de uma São Paulo que, no centenário da Independência, promovia também o revisionismo histórico capaz de fazer dos bandeirantes o modelo de herói nacional.

Em Raul Bopp, a memória afetiva torna leves os detalhes pitorescos do agrupamento de intelectuais e porraloucas bem instruídos transformados pela Semana em pioneiros da verdadeira Virada Cultural paulista. Em Marcos Augusto Gonçalves, o que dá leveza ao pantagruélico esforço de digestão bibliográfica é o texto jornalístico, amoroso nas descrições e carinhoso com os personagens (cada figura de importância no movimento ganha pelo menos um capítulo, todos com poucas páginas).

Pelo texto colorido de detalhes, Gonçalves põe o leitor no Teatro Municipal, nos dias nervosos da Semana. O livro traz uma reprodução do catálogo da mostra e Gonçalves se desdobra em minudências nada cansativas sobre as cerca de cem obras de arte expostas para as distintas famílias e a patuleia que participou do ao evento. O esforço do pesquisador traz, para a história, personagens esquecidos, como Ferrignac, que teria sido autor de misteriosa obra dadaísta (Gonçalvez se pergunta se havia dadaísmo de fato, ou se o termo entrou na descrição para inglês ou paulista ver). O livro desencava depoimentos como o de Menotti Del Picchia revelando que algumas obras foram “besuntadas” às pressas para dar volume à mostra e protestar, assim, contra um “meloso e decrépito academicismo”. Com outros exemplos, como o de Yan de Almeida Prado, nota-se que nem todo modernista era militante da causa; alguns, como esquerdistas dos anos 80 em convescotes da Libelu, se achegaram ao grupo por causa das festas.

Nesse debruçar-se sobre os personagens está um dos segredos do encanto no livro de Gonçalves. Mário de Andrade é descrito com riqueza, após surgir, a princípio, como figurante na polêmica exposição de Anita Malfati desancada de maneira boçal por Monteiro Lobato, num momento infeliz do escritor iconoclasta — de credenciais irrepreensíveis quando se tratava de combater o academicismo bolorento na literatura. (Sempre lamento que as preferências de Lobato em pintura não sejam mencionadas nem por Gonçalves, nem pela maioria dos que citam o famosos artigo “Paranoia ou Mistificação”, com que o escritor avacalhou a semente expressionista trazida pela pintora ao cenário brasileiro. No artigo em que apedreja as “cubices” de Anita, Lobato, revelando sua falta de olho em matéria de arte, cita como artistas exemplares pintores hoje relegados à periferia da história, como o “mimoso poeta das manhãs” Paul Chabas e o “gênio rembrandtesco” Frank Brangwin, pintores chegados ao rococó e popularíssimos na época).

No livro de Gonçalves, aos poucos, com Mário, com Oswald de Andrade e outros responsáveis pelo movimento, as histórias pessoais se desenrolam e se misturam aos eventos que passam pela Semana de Arte Moderna e vão além. Gonçalves leva ao leitor as dúvidas do pesquisador, no emaranhado de versões que contam essa história. O autor fala das dúvidas sobre o folclórico chinelo com que Villa-Lobos teria regido a execução de suas obras (provavelmente um pé enfaixado, por ataque de gota); compartilha as indicações de que pode ter sido armação teatral o começo da brutal vaia lançada na segunda noite como saudação contra Oswald e Mário (a primeira noite do evento, até com aplausos, teria frustrado os modernistas que esperavam choque e espanto da burguesia local); corrige os que atribuem a Mário, como resposta aos apupos, a leitura da “Ode ao Burguês”.

Gonçalves conta como Mário, o tímido intelectual atemorizado pela plateia agressiva, resistiu, como descreveria depois, “enceguecido pelo entusiasmo dos outros”; e descreve polifonicamente a vaia a Oswald, de acordo com as diferentes visões do próprio Oswald e de testemunhas do embate. O gosto pelo detalhe e pela documentação nunca tem, em 1922: A semana que não terminou, o sabor rançoso que deixa a leitura de pesquisas burocráticas: são cenas vivas e personagens divertidos que compõem uma história difícil de largar. O autor consegue uma unidade no relato que falta ao livrinho de Bopp, também com histórias que conseguem ser pitorescas e exemplares, mas a meio caminho entre o depoimento e o ensaio. Há uma tentativa, em Bopp, de resumir e classificar as correntes “modernistas”, que tem o mérito de traçar movimentos em todo o país, não só em Sampa. Cecília Meireles e Murilo Mendes, por exemplo, são etiquetados como “espiritualistas”. Há trechos, felizmente curtos, com cheiro de relatório de mestre-escola.

Por Bopp e Gonçalves, fica claro que Menotti Del Pichia e Di Cavalcantitiveram atuação fundamental na Semana. Di foi quem deu partida à ideia, atestam os autores. Historinhas paralelas pontuam e recompensam a leitura. Fica-se sabendo, por Bopp, que o futurista Marinetti passou por São Paulo e mal foi notado; lemos justificativas para sua tese de que Brasília não vingaria porque tem o “mau olhado dos deuses”; e conhecemos as experiências jornalísticas do autor, como a interessante Agência Nacional, primeiro esforço de uma agência de notícias brasileira, que reuniu simpatizantes da Coluna Prestes e recebia livros até do integralista Plínio Salgado.

O mais interessante entre os relatos pessoais de Bopp, porém, é a narrativa sobre a criação e desenvolvimento do Movimento Antropofágico, que ele acompanhou sem engajar-se inteiramente, como cronista atento. O Clube da Antropofagia, na casa de Tarsila do Amaral, então mulher de Oswald, tinha “feição britânica”, com “criados de luva branca”. Lamentavelmente, para Bopp, a antropofagia não desenvolveu seus achados e teses, como a revisão da história do Brasil a partir de constatações como a de que o país é fruto de imensa grilagem; sem invasão de terras, o Tratado de Tordesilhas teria feito do Brasil um Chile oriental mais gordinho.

São os dois livros uma leitura sem arrependimentos e fonte de consulta permanente. O filão não é esgotado, mas especialmente o leitor do livro de Marcos Augusto Gonçalves descobrirá, se não estava interessado na Semana de Arte Moderna de 22, por que deveria se interessar. Quem sabe, a partir dos achados e recolhidos de Gonçalves, outros autores encontrem ganchos para explicar o ambiente literário nacional contemporâneo, que às vezes repete como farsa o gosto pelos saraus exclusivos da burguesia que se imagina ousada e aprecia chocar-se com o mau comportamento de seus escribas indisciplinados. Quem sabe, o detalhamento da Semana, com obras como essas duas, dê novas luzes para iluminar o percurso criativo do que chamamos cultura brasileira.

::: Movimentos modernistas no Brasil (1922-1928) ::: Raul Bopp :::
::: José Olympio2012182 páginas:::
::: compre na Livraria Cultura :::

::: 1922: A semana que não terminou::: Marcos Augusto Gonçalves :::
::: Companhia das Letras2012368 páginas :::
::: compre na Livraria Cultura :::

Sergio Leo

Repórter especial e colunista do Valor Econômico. Em 2009, seu livro de contos Mentiras do Rio ganhou o Prêmio Sesc de Literatura.

domingo, 28 de novembro de 2021

O modernismo brasileiro chega aos cem anos (ainda não amadureceu) - Paulo Roberto de Almeida

 Já que estamos próximos do centenário da Semana de Arte Moderna de 1922 (em fevereiro), permito-me reproduzir aqui o artigo que publiquei sibre o nosso “modernismo” no Estado da Arte em 2020:

O “modernismo” brasileiro chegando aos 100 anos