O que é este blog?

Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.

Mostrando postagens com marcador Sergio Leo. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Sergio Leo. Mostrar todas as postagens

sexta-feira, 15 de julho de 2022

Resenha de Laços de Confiança, de Celso Amorim, por Sergio Leo

 *Anotações do ex-ministro Celso Amorim revelam disputa e desconfiança na diplomacia brasileira*

Em “Laços de confiança”, ex-chanceler destaca relação com países vizinhos

Por Sergio Leo — Para o Valor, de Brasília

15/07/2022 05h03  Atualizado há 3 horas


“Por que o senhor dá tanta atenção à América do Sul?”

“Porque moro aqui.”

O diálogo, com um repórter, é contado pelo ex-ministro das Relações Exteriores e da Defesa Celso Amorim, na obra recém-lançada “Laços de confiança”, da editora Benvirá; e traduz a tese que inspirou o livro: a atuação do Brasil no mundo exige maior atenção aos vizinhos, e iniciativas para o desenvolvimento dos países sul-americanos. Sem a integração bem-sucedida com a vizinhança, sugere o ex-ministro, a região corre o risco de ficar a reboque de interesses de grandes potências com grande força gravitacional, como os Estados Unidos.

Amorim, ministro de Relações Exteriores nos governos Itamar Franco e Luiz Inácio Lula da Silva, relata sua intensa - e atribulada - interlocução com um leque variado de governantes, do republicano George W. Bush ao bolivariano Hugo Chávez. O título do livro, “Laços de confiança”, é a citação de um comentário do ex-presidente da Colômbia Álvaro Uribe, um dos improváveis parceiros nas iniciativas diplomáticas do ex-ministro.

“Mostrar que a realidade já foi outra e que é possível a construção de uma América Latina e Caribe fortes, unidos em sua diversidade, é um dos objetivos deste livro”, explicita o diplomata, lamentando o amadorismo na diplomacia do governo atual.

Ao lembrar da disputa acirrada entre argentinos e uruguaios em torno da instalação de poluidoras fábricas de celulose no rio Uruguai, Amorim queixa-se de que a briga foi usada pelos críticos de sua política externa “altiva e ativa”, para desdenhar de suas ambições de tornar o Brasil um mediador confiável - até em desafios distantes da região, como no acordo nuclear com o Irã. Outros momentos mais felizes, porém, como a solução de conflitos entre a Colômbia e vizinhos, credenciaram o país a ser visto como interlocutor confiável e importante na formação de consensos, defende.

Os diários de Amorim que inspiram o livro dão pistas sobre, por exemplo, a visão, à esquerda, sobre o acordo de comércio firmado - e ainda não ratificado nos parlamentos - pelo Mercosul com a União Europeia: temas importantes para os europeus e aceitos sem muito debate nos últimos governos brasileiros, como reforço dos direitos de propriedade intelectual, fim de exclusividade de comprar do governo para fornecedores locais e redução da proteção a setores industriais considerados estratégicos foram e continuam assuntos caros ao antigo chanceler e seu entorno político.

Ao contrário da imagem de leniência com países vizinhos popularizada pelos críticos da política externa durante as gestões de Amorim no comando da diplomacia, as anotações reproduzidas pelo ex-ministro mostram inúmeras disputas e desconfianças na diplomacia brasileira para administrar o jogo político e econômico entre os governos de esquerda que eram maioria no continente.

O então presidente Lula é mostrado ora inclinado a aceitar argumentos dos companheiros governantes de esquerda, ora irritado e duro na negociação com eles, como nas discussões com a Petrobras sobre os interesses da empresa na Bolívia. O petista usa o Itamaraty para fazer um jogo ambíguo com os governos vizinhos, temerosos do “sub imperialismo” brasileiro.

Em uma das passagens mais surpreendentes do livro, Amorim revela a orientação recebida do presidente, digna do “brasileiro cordial” descrito por Sergio Buarque de Holanda: “Celso, é melhor você tomar conta da Bolívia. Eu não posso. Fico com muita pena quando vejo aqueles indiozinhos pobres”.

Curiosamente, governos à direita, como os dos colombianos Álvaro Uribe e Juan Manuel Santos, mostram-se, nos relatos de Amorim, de mais fácil diálogo, reconhecidas diferenças evidentemente inconciliáveis em questões como a maneira de tratar a guerrilha colombiana. No caso das atribulações com os guerrilheiros, que ocupam boa parte dos relatos sobre a Colômbia, prevaleceu, com Santos, porém, a lógica defendida por Amorim, de tratar os guerrilheiros como insurgentes, e negociar sua incorporação à política democrática.

“A esquerda às vezes dá mais trabalho”, desabafa Amorim, ao relatar atritos com o uruguaio Tabaré Vasquez e o paraguaio Fernando Lugo. Apesar da convicção em favor dos chamados governos progressistas na região, por suas políticas claramente favoráveis à maior distribuição de renda e autonomia econômica, não faltam críticas ao “radicalismo” de Hugo Chávez, na Venezuela, e do governo Kirchner, na Argentina, dos quais o livro dá inúmeros exemplos.

Chávez é criticado por seus “arroubos” e gestos preocupantes e contraproducentes, “entre o burlesco e o provocador”. “Respeitamos o que Chávez quer fazer dentro da Venezuela”, disse o então presidente da República, em conversa com George Bush relatada por Amorim; “mas quando atua na região”. O diálogo, aliás, é um dos bastidores do esforço lulista de mostrar-se como mediador nas relações dos bolivarianos com governos dos EUA.

Para Amorim, Chávez tinha legítimo interesse em melhorar a vida dos venezuelanos, e enfrentar “com coragem uma elite reacionária, que sempre se locupletou com as receitas do petróleo e cuidou pouco da população pobre”. Mas trazia ameaças à estabilidade da região, que o Brasil tinha o dever de administrar diplomaticamente

“A Venezuela nunca poderá promover a ‘revolução bolivariana’ em países de sociedades complexas como o Brasil e a Argentina, mas pode causar estragos de monta em nações mais frágeis e fragmentadas como a Bolívia e o Equador”, comenta Amorim. “Até aqui, nossa estratégia tem sido a de atrair a Venezuela, integrando-a ao Mercosul.”

O cuidado da edição em trazer notas e índices onomásticos, uma excelente característica dos livros de Amorim, ajuda a atravessar a aridez de alguns trechos com mais concessões ao patuá dos negociadores internacionais. O ex-chanceler deixa um documento importante, fonte de abundantes elementos para analisar a política externa recente e seus possíveis rumos no futuro.

https://valor.globo.com/eu-e/noticia/2022/07/15/anotacoes-do-ex-ministro-celso-amorim-revelam-disputa-e-desconfianca-na-diplomacia-brasileira.ghtml

domingo, 9 de janeiro de 2022

Dez anos atrás, dois livros sobre os 90 anos da Semana de Arte Moderna - Sergio Leo

 A Semana de 22, e além

Livros de Raul Bopp e do jornalista Marcos Augusto Gonçalves revivem a Semana de Arte Moderna

"Movimentos modernistas no Brasil (1922-1928)", de Raul Bopp

"1922: A semana que não terminou", de Marcos Augusto Gonçalves

Entre favores de poderosos, viagens instrutivas à Europa e saraus elegantes, pariu-se o modernismo brasileiro. Uma de suas erupções, a Antropofagia de Oswald de Andrade, foi concebida por amigos em torno de um prato de pernas de rã deglutidas com goles de Chablis gelado, num jantar ciceroneado pelo gordo provocador e sua mulher de então, Tarsila do Amaral. Das rãs a Hans Staden, Oswald começou falando delirantemente da evolução das espécies e terminou liderando um movimento de poucos desdobramentos práticos e muitas ideias fascinantes.

A importância dos batráquios na concepção do Movimento Antropofágico é contada em tons ligeiros por Raul Bopp, em um dos livros que, como rojões no Réveillon, pipocaram no começo deste ano, em comemoração aos noventa anos da Semana de Arte Moderna de 22, evento singular em que intelectuais se revoltaram contra os antigos modelos estéticos trazidos da Europa e defenderam, para o Brasil, novos modelos fortemente influenciados… pela Europa vanguardista — como nota Marcos Augusto Gonçalves em outro livro lançado neste ano, 1922: A semana que não terminou.

O livro de Gonçalves é um bom contraponto ao simpático livrinho de Bopp, editado pela José Olympio, Movimentos modernistas no Brasil (1922-1928)A semana… é jornalístico, mas detalhado, documentado e profundo o suficiente para contentar a qualquer acadêmico; Movimentos… é descosido, impreciso, impressionista, mas repleto de detalhes divertidos capazes de prender até quem nem tenha tanto interesse assim no modernismo brasileiro. É um exaustivo inventário de uma parte importante da intelligentsia brasileira, num momento chave de nossa formação cultural.

Bopp, participante do movimento, é um caso nada incomum de escritor que marcou lugar na literatura brasileira com apenas uma de suas obras. O épico Cobra Norato, poema mergulhado no sincretismo das lendas amazônicas e no projeto modernista de levar aos livros a fala brasileira, é sua contribuição à “luta para desafogar o ambiente dos canastrões, que ditavam as regras do bom gosto”. Seu livro sobre a Semana, publicado inicialmente em 1966, começa com o percurso dos movimentos de arte contemporâneos (dele), em um resumo fortemente influenciado pelas ideias do futurismo italiano (“a visão que o homem moderno forma … funde-se em valores dinâmicos”, “a arte moderna veio … seguindo os caminhos da máquina”). Futurismo seria, aliás, a palavra usada — e depois renegada — por Oswald de Andrade e colegas. Razoavelmente honesto, o resumo de Bopp derrapa ao falar do dadaísmo, “composto, em parte, de subartistas apátridas”, na visão míope do escritor. Mas cumpre a função de mostrar que, enquanto fervia a cena artística europeia, concentrada em Paris, o “velho conformismo” amarrava a expressão artística em formas que nada tinham a ver com a crescente metrópole industrial.

Os “futuristas” brasileiros vão recorrer, porém, não à incipiente burguesia industrial, mas ao velho baronato do café, na figura de Paulo Prado, de linhagem aristocrática (para padrões locais) e esclarecida. Um mecenas como até hoje faz falta no cenário da riqueza nacional. Marcos Augusto Gonçalves, um dos melhores jornalistas da Folha, relata em detalhes os saraus da turma quatrocentona paulista, que reuniram e alimentaram a rebeldia de 22, e documenta como o “terremoto” modernista foi uma “rumorosa acomodação de atritos e fissuras nos limites de um mesmo grande campo”.

O projeto modernista, vitorioso, afinal, teve como trilho o esforço da nova elite paulista para assegurar a própria valorização histórica e cimentar a hegemonia intelectual na República nascente, onde a política já mudava de mãos. O discurso hiperbólico dos “futuristas” corria sem atritos pelas estradas de uma São Paulo que, no centenário da Independência, promovia também o revisionismo histórico capaz de fazer dos bandeirantes o modelo de herói nacional.

Em Raul Bopp, a memória afetiva torna leves os detalhes pitorescos do agrupamento de intelectuais e porraloucas bem instruídos transformados pela Semana em pioneiros da verdadeira Virada Cultural paulista. Em Marcos Augusto Gonçalves, o que dá leveza ao pantagruélico esforço de digestão bibliográfica é o texto jornalístico, amoroso nas descrições e carinhoso com os personagens (cada figura de importância no movimento ganha pelo menos um capítulo, todos com poucas páginas).

Pelo texto colorido de detalhes, Gonçalves põe o leitor no Teatro Municipal, nos dias nervosos da Semana. O livro traz uma reprodução do catálogo da mostra e Gonçalves se desdobra em minudências nada cansativas sobre as cerca de cem obras de arte expostas para as distintas famílias e a patuleia que participou do ao evento. O esforço do pesquisador traz, para a história, personagens esquecidos, como Ferrignac, que teria sido autor de misteriosa obra dadaísta (Gonçalvez se pergunta se havia dadaísmo de fato, ou se o termo entrou na descrição para inglês ou paulista ver). O livro desencava depoimentos como o de Menotti Del Picchia revelando que algumas obras foram “besuntadas” às pressas para dar volume à mostra e protestar, assim, contra um “meloso e decrépito academicismo”. Com outros exemplos, como o de Yan de Almeida Prado, nota-se que nem todo modernista era militante da causa; alguns, como esquerdistas dos anos 80 em convescotes da Libelu, se achegaram ao grupo por causa das festas.

Nesse debruçar-se sobre os personagens está um dos segredos do encanto no livro de Gonçalves. Mário de Andrade é descrito com riqueza, após surgir, a princípio, como figurante na polêmica exposição de Anita Malfati desancada de maneira boçal por Monteiro Lobato, num momento infeliz do escritor iconoclasta — de credenciais irrepreensíveis quando se tratava de combater o academicismo bolorento na literatura. (Sempre lamento que as preferências de Lobato em pintura não sejam mencionadas nem por Gonçalves, nem pela maioria dos que citam o famosos artigo “Paranoia ou Mistificação”, com que o escritor avacalhou a semente expressionista trazida pela pintora ao cenário brasileiro. No artigo em que apedreja as “cubices” de Anita, Lobato, revelando sua falta de olho em matéria de arte, cita como artistas exemplares pintores hoje relegados à periferia da história, como o “mimoso poeta das manhãs” Paul Chabas e o “gênio rembrandtesco” Frank Brangwin, pintores chegados ao rococó e popularíssimos na época).

No livro de Gonçalves, aos poucos, com Mário, com Oswald de Andrade e outros responsáveis pelo movimento, as histórias pessoais se desenrolam e se misturam aos eventos que passam pela Semana de Arte Moderna e vão além. Gonçalves leva ao leitor as dúvidas do pesquisador, no emaranhado de versões que contam essa história. O autor fala das dúvidas sobre o folclórico chinelo com que Villa-Lobos teria regido a execução de suas obras (provavelmente um pé enfaixado, por ataque de gota); compartilha as indicações de que pode ter sido armação teatral o começo da brutal vaia lançada na segunda noite como saudação contra Oswald e Mário (a primeira noite do evento, até com aplausos, teria frustrado os modernistas que esperavam choque e espanto da burguesia local); corrige os que atribuem a Mário, como resposta aos apupos, a leitura da “Ode ao Burguês”.

Gonçalves conta como Mário, o tímido intelectual atemorizado pela plateia agressiva, resistiu, como descreveria depois, “enceguecido pelo entusiasmo dos outros”; e descreve polifonicamente a vaia a Oswald, de acordo com as diferentes visões do próprio Oswald e de testemunhas do embate. O gosto pelo detalhe e pela documentação nunca tem, em 1922: A semana que não terminou, o sabor rançoso que deixa a leitura de pesquisas burocráticas: são cenas vivas e personagens divertidos que compõem uma história difícil de largar. O autor consegue uma unidade no relato que falta ao livrinho de Bopp, também com histórias que conseguem ser pitorescas e exemplares, mas a meio caminho entre o depoimento e o ensaio. Há uma tentativa, em Bopp, de resumir e classificar as correntes “modernistas”, que tem o mérito de traçar movimentos em todo o país, não só em Sampa. Cecília Meireles e Murilo Mendes, por exemplo, são etiquetados como “espiritualistas”. Há trechos, felizmente curtos, com cheiro de relatório de mestre-escola.

Por Bopp e Gonçalves, fica claro que Menotti Del Pichia e Di Cavalcantitiveram atuação fundamental na Semana. Di foi quem deu partida à ideia, atestam os autores. Historinhas paralelas pontuam e recompensam a leitura. Fica-se sabendo, por Bopp, que o futurista Marinetti passou por São Paulo e mal foi notado; lemos justificativas para sua tese de que Brasília não vingaria porque tem o “mau olhado dos deuses”; e conhecemos as experiências jornalísticas do autor, como a interessante Agência Nacional, primeiro esforço de uma agência de notícias brasileira, que reuniu simpatizantes da Coluna Prestes e recebia livros até do integralista Plínio Salgado.

O mais interessante entre os relatos pessoais de Bopp, porém, é a narrativa sobre a criação e desenvolvimento do Movimento Antropofágico, que ele acompanhou sem engajar-se inteiramente, como cronista atento. O Clube da Antropofagia, na casa de Tarsila do Amaral, então mulher de Oswald, tinha “feição britânica”, com “criados de luva branca”. Lamentavelmente, para Bopp, a antropofagia não desenvolveu seus achados e teses, como a revisão da história do Brasil a partir de constatações como a de que o país é fruto de imensa grilagem; sem invasão de terras, o Tratado de Tordesilhas teria feito do Brasil um Chile oriental mais gordinho.

São os dois livros uma leitura sem arrependimentos e fonte de consulta permanente. O filão não é esgotado, mas especialmente o leitor do livro de Marcos Augusto Gonçalves descobrirá, se não estava interessado na Semana de Arte Moderna de 22, por que deveria se interessar. Quem sabe, a partir dos achados e recolhidos de Gonçalves, outros autores encontrem ganchos para explicar o ambiente literário nacional contemporâneo, que às vezes repete como farsa o gosto pelos saraus exclusivos da burguesia que se imagina ousada e aprecia chocar-se com o mau comportamento de seus escribas indisciplinados. Quem sabe, o detalhamento da Semana, com obras como essas duas, dê novas luzes para iluminar o percurso criativo do que chamamos cultura brasileira.

::: Movimentos modernistas no Brasil (1922-1928) ::: Raul Bopp :::
::: José Olympio2012182 páginas:::
::: compre na Livraria Cultura :::

::: 1922: A semana que não terminou::: Marcos Augusto Gonçalves :::
::: Companhia das Letras2012368 páginas :::
::: compre na Livraria Cultura :::

Sergio Leo

Repórter especial e colunista do Valor Econômico. Em 2009, seu livro de contos Mentiras do Rio ganhou o Prêmio Sesc de Literatura.

terça-feira, 9 de setembro de 2014

Bolivia: nova reeleicao de Evo Morales, o bolivariano ortodoxo em economia - Sergio Leo

Tenho dúvidas sobre se a Petrobras foi realmente indenizada, ou apenas paga em gas importado da Bolívia. Ainda que tenha sido, os valores ficaram bem abaixo do que ela efetivamente investiu.
Paulo Roberto de Almeida

Por que mirar a Bolívia, heterodoxa na ortodoxia
Sergio Leo
Valor Econômico, 8/09/2014

Índices de aprovação beirando os 80% e liderança absoluta nas pesquisas eleitorais acompanham o presidente boliviano, Evo Morales, em sua disputa para um terceiro mandato, nas eleições presidenciais de outubro. O bolivariano que ofendeu os mercados e patrocinou uma Constituição de inéditos poderes à população indígena beneficia-se do crescimento econômico, um dos maiores da região.
Em 2006, quem (como este colunista) estivesse em La Paz, à espera das comemorações do 1 º de Maio na Bolívia, notaria o insistente noticiário sobre a iminente decepção dos bolivianos com o primeiro - e pequeno - aumento do salário mínimo a ser anunciado pelo estreante Evo Morales. À tarde, fora da capital, o que Evo anunciou foi a nacionalização das reservas de gás e de refinarias da Petrobras, que cercou com tropas militares.
O ato gerou uma crise política com o Brasil presidido pelo aliado Lula, depois amenizada, inclusive com pagamento de indenizações devidas à Petrobras. Mas a política econômica que se seguiu afastou investidores e a própria Petrobras. Pouco se falou, porém, da política fortemente baseada na ortodoxia fiscal, adotada desde então pelo ex-cocalero, que conteve arroubos sobre o salário mínimo e outras contas públicas, e garantiu o relativo êxito econômico do país.
"Já há vários anos, o desempenho macroeconômico da Bolívia tem sido muito bom", elogiou a economista do FMI Ana Corbacho, chefe da missão que, em fevereiro, analisou as contas bolivianas. "Esse desempenho foi ativamente apoiado por políticas públicas que ajudaram a aumentar em quase três vezes a renda média da população, melhorar a distribuição de renda e provocar grande redução de pobreza", acrescentou, ao relatar as discussões com as autoridades do país. "E, além disso, tudo aconteceu num período muito curto".
Em 2013, Evo conseguiu um recorde histórico de crescimento, 6,8%, acumulou reservas recordes em moeda internacional, equivalentes a quase metade do Produto Interno Bruto, e manteve superávits, tanto nas contas do governo (1,4% do PIB), quanto nas estatais (0,5%). Estatais, aliás, trazidas ao controle do Estado após um agressivo programa de nacionalização, que afetou os setores de gás e petróleo, telecomunicações, transportes e mineração.
Evo não baixou suas ironias contra o FMI nem após os elogios; e foi bem-sucedido também na política: após uma sucessão de crises, ameaças de separatismo na rica região agrícola conhecida como "meia-lua", na fronteira com o Brasil, ele cooptou, ou afastou do caminho (às vezes com métodos violentos), empresários e líderes oposicionistas, enfraquecendo as ameaças à sua gestão. A terceira reeleição presidencial é uma inédita estabilidade num país que, entre 2001 e 2005, foi governado por seis diferentes presidentes.
Morales era um presidente fraco, de pequeno apoio político em uma Bolívia dividida, em 2006. Desde então, o país cresceu, em média, 4,5% ao ano. Aplicou, sob aprovação de instituições como o Banco Mundial, seu programa de redistribuição da renda e preparou-se bem, segundo o FMI, para enfrentar turbulências como a queda do preço do gás e a desaceleração econômica de seus principais clientes, Brasil e Argentina.
Evo conseguiu, também, um nível razoável de investimento externo, 3,5% do PIB no ano passado, mas muito concentrado nos fornecedores para o setor de gás e petróleo. O gás responde por mais da metade da receita governamental, em um país onde os impostos diretos são quase zero. O governo só agora construiu uma usina para separar, do gás fornecido ao Brasil, gases de uso mais nobre, destinados à petroquímica.
A Bolívia não foi tão bem em reduzir a gás-dependência e avançar além do modelo exportador de commodities. Também é preocupante a retração dos investimentos, inclusive da Petrobras, na exploração e ampliação das reservas de hidrocarbonetos. Desde a nacionalização, os governos Lula e Dilma reduziram quase à metade a dependência do Brasil em relação ao gás boliviano, ao criar infraestrutura para liquefazer e distribuir gás de outros fornecedores.
O afastamento brasileiro não foi completo: neste ano, a Petrobras, descumprindo recomendações de seu departamento jurídico, concordou, após muita resistência do governo Dilma e pressões crescentes de La Paz, em pagar um adicional a Evo pelos gases "ricos" de alta qualidade contidos no gás fornecido ao Brasil nos últimos anos. O Senado cobra explicação da estatal pelo pagamento de US$ 434 milhões.
O governo Evo é acusado de manipular e reprimir o Judiciário para mover ações judiciais contra oposicionistas -150 bolivianos estão refugiados no Brasil fugindo de processos e perseguição - e pode perder sua confortável maioria parlamentar nas próximas eleições, turvando sua capacidade de governar e trazendo riscos de repressão violenta dos oposicionistas.
Na economia, há expectativa de que o terceiro mandato de Evo seja acompanhado de reformas mais amistosas ao setor privado e investidores. A falta de investimentos em ampliação de reservas pode deixar a Bolívia sem gás para todo o consumo e os compromissos de exportação já em 2017, segundo o ex-ministro de Minas e Energia boliviano Álvaro Ríos Roca, que prevê necessidade de investimentos imediatos de pelo menos US$ 5 bilhões no setor.
Em cenário de queda de preços, com concorrência do gás extraído de rochas, Evo vê aproximar-se o fim do atual contrato de fornecimento ao Brasil, em 2019, e deve pressionar para uma renegociação em breve, decidido a não aceitar uma redução nos preços atuais. Na Bolívia, cresce o sentimento nacionalista e antibrasileiro (por motivos diversos, entre eles a riqueza dos empresários de origem brasileira na 'media luna' e as manifestações preconceituosas no Brasil contra bolivianos).
Será grande a tentação de qualquer governante lá, de responder a uma eventual piora na situação econômica desviando atenções para uma briga com o Brasil. A vencedora (ou vencedor) das eleições brasileiras de outubro deve incluir a Bolívia entre os temas desafiadores a estudar durante o seu mandato.

Sergio Leo é jornalista e especialista em relações internacionais pela UnB. É autor do livro "Ascensão e Queda do Império X", lançado em 2014. Escreve às segundas-feiras

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

O pacto perverso da CUT com a FIESP, para atrasar o Brasil...

Este jornalista acredita que o lulopetismo e sua política comercial esquizofrenica nao tem nada a ver com o atraso, ou o recuo comercial do Brasil no plano das relacoes economicas externas. Ele atribui o problema aos industriais protecionistas do Brasil. Mas se esquece de mencionar que ambas ideologias protecionistas se casam perfeitamente.
Existe um pacto perverso, contra a sociedade brasileira, feita entre a CUT e a FIESP, mesmo se as duas entidades jamais sentaram-se para negociar tal pacto. Ele existe de fato e prescinde de qualquer acordo para existir.
Se trata do mesmo pacto que na Inglaterra pré-Thatcher unia a TUC (a CUT deles, o Trade Union Congress) ao Labour pré-Blair, o partido que ainda rezava pela cartilha marxista de 1919, que prometia nacionalizacoes, estatizacoes, controle do comercio exterior, etc. As mesmas velharias do passado que unem a CUT com a FIESP e impedem o Brasil de avancar.
Esse pacto perverso nao será vencido facilmente, e nem sabemos se será vencido, de fato, algum dia.
Quanto 'a OMC, se enganam aqueles que a veem como uma entidade promotora do livre comércio. Ela é apenas a favor de um mercantilismo bem-administrado.
Como a CUT e a FIESP, aliás. Elas se amam...
Unidos num mesmo combate contra a liberdade dos mercados...
Paulo Roberto de Almeida

Um brasileiro na OMC, para que, afinal?

Por Sergio Leo
Valor Econômico – pág. A2, 04.02.13

Quem se pergunta qual a importância, para o Brasil, de um candidato do país à direção-geral da Organização Mundial do Comércio deveria refletir sobre outra pergunta, mais relevante: qual a importância da OMC para o Brasil? É a resposta para essa indagação que justifica o lançamento do diplomata Roberto Azevedo como candidato ao comando dessa instituição multilateral. É também essa questão que permite situar mais corretamente certas críticas fora de foco à estratégia de negociação comercial adotada nos últimos anos pelo Brasil.
É frequente e equivocada a comparação entre o Brasil e países como Chile e México, os brasileiros atrelados ao Mercosul, com uma rede medíocre de acordos de livre comércio, e os outros dois (com Colômbia, Peru e outros) ligados a uma rede em expansão de acordos de redução de barreiras comerciais. O primeiro equívoco é atribuir a falta de acordos exclusivamente ao governo e à suposta influência do "lulopetismo" na estratégia comercial, como se não fosse o influente setor privado brasileiro um dos maiores opositores, no passado e mais ainda agora, à derrubada de tarifas e barreiras que orienta toda negociação de comércio.
O exemplo mais conhecido do bloqueio do setor privado às negociações comerciais é o acordo com o Conselho de Cooperação do Golfo, clube dos ricos países árabes que chegou a concluir um acordo com o Mercosul, detonado, à última hora, pela pressão da indústria petroquímica brasileira. Sem acordo, os árabes importaram, nos dois últimos anos, mais de US$ 7,6 bilhões anuais do Brasil, cerca de um terço disso em produtos industrializados. Para o lulopetismo, o acordo era querido por motivos políticos e econômicos, ao servir de contraparte ao acordo firmado com Israel e abrir espaço em um vigoroso mercado emergente. O empresariado brasileiro não teve o mesmo ânimo.
Azevedo se apoia na experiência com as manhas de Genebra
Enquanto o Chile sustenta sua economia com exportações sobretudo de produtos primários como cobre e pescado, e o México optou por vincular-se solidamente a segmentos de menor agregação de valor da cadeia produtiva dos EUA, o Brasil tem diferente estrutura industrial e distintos recursos naturais.
Grande produtor de commodities agropecuárias, que somam algo próximo a 30% do total das exportações nacionais, o Brasil tem entre as principais barreiras a suas vendas externas os programas de subsídios agrícolas dos países desenvolvidos e a aplicação discricionária de barreiras técnicas - dois temas de difícil solução fora de negociações multilaterais como a Rodada Doha, da OMC. Em geral, são baixas as barreiras nos principais mercados a exportações de manufaturados - a valorização do real faz mais estrago, nesses casos, do que qualquer benefício com corte de tarifas de importação.
A situação singular do Brasil não deve servir de pretexto para se abandonar o esforço por acordos comerciais, mas justifica a prioridade conferida às negociações abrangentes da OMC. A existência de regras multilaterais de proteção ao livre comércio interessa não só aos produtores como aos consumidores brasileiros. São elas que moderam os apetites protecionistas domésticos, e impõem limites e racionalidade a medidas governamentais voltadas ao fechamento do mercado. Um país de comércio diversificado como o Brasil se beneficia dessas regras, mesmo quando não derrota totalmente o protecionismo, como ficou evidente no caso, vencido pela diplomacia brasileira, contra os subsídios americanos aos produtores locais de algodão.
A candidatura de Roberto Azevedo está nesse contexto: seu discurso e a base da difícil campanha brasileira à direção da OMC se apoiam na necessidade de dar novo fôlego ao sistema multilateral de comércio. Ao defender a própria candidatura para os membros da OMC, em Genebra, na semana passada, Azevedo tentou provar que sua experiência nas negociações - respeitada e elogiada até por adversários em disputas duras, como os EUA - permitirá a ele conduzir pragmaticamente e eficientemente os novos capítulos da novela comercial multilateral.
Não basta entender de comércio e ter experiência internacional, argumentou o diplomata. É preciso conhecer a OMC por dentro, saber a história de cada negociação, evitar a repetição de impasses antigos, saber se uma bronca resulta de problemas reais dos governos ou de idiossincrasias de algum negociador.
Se falasse a brasileiros, Azevedo poderia ter dito que, para tirar o sistema multilateral de comércio do impasse, é preciso não só resgatar jabutis das árvores, mas saber quem e o que os colocou lá em cima. Ele, como nenhum dos outros candidatos, pode fazer isso, por experiência própria com os quelônios aéreos e os arbustos espinhosos do nº 154 da rue de Lausanne, em Genebra, sede da organização.
A disputa pela direção da OMC ocorre às vésperas de uma nova reunião ministerial para salvar a Rodada Doha, e, como deixou claro o atual diretor-geral, Pascal Lamy, no Fórum Econômico de Davos, está se formando um consenso para deixar de lado, pelo menos por enquanto, as grandes ambições de mudanças nas regras de comércio agrícola e concentrar a negociação em um tema menos charmoso, mas importante, a "facilitação de comércio" - remoção de burocracia, obstáculos de infraestrutura e ineficiências no trânsito de mercadorias, especialmente nas alfândegas.
A facilitação comércio trará ao mundo metade dos benefícios que se esperava com a rodada, garantiu Lamy, em Davos. Há controvérsias. O Brasil não quer que Bali seja um ponto final da rodada, e insiste em incluir, pelo menos, temas como regulamentação mais clara para cotas de importação e apoio aos países mais pobres, para atender às novas exigências multilateriais.
Azevedo defende o próprio nome como o mais adequado, com maior experiência, para conduzir essa reunião ministerial, em Bali, de forma a revigorar as regras multilaterais de comércio. Quanto mais fracas essas regras, mais dependente o mundo fica da lei dos mais fortes. O brasileiro não exagera ao falar da própria capacidade. A dúvida é se seus potenciais eleitores estão, de fato, interessados nesse projeto.
Sergio Leo é repórter especial em Brasília e escreve às segundas-feiras
E-mail: sergio.leo@valor.com.br

© 2000 – 2012. Todos os direitos reservados ao Valor Econômico S.A. . Verifique nossos Termos de Uso em http://www.valor.com.br/termos-de-uso. Este material não pode ser publicado, reescrito, redistribuído ou transmitido por broadcast sem autorização do Valor Econômico.

Leia mais em:

terça-feira, 17 de julho de 2012

Trapalhadas no Mercosul - Sergio Leo (Valor)

Existem muitos equívocos no que foi feito em Mendoza, e depois.
Eu apenas recomendaria que as pessoas -- aqui incluído o Advogado Geral da União -- lessem os principais instrumentos jurídicos do Mercosul (que a Venezuela jamais ratificou) para constatar onde estão as ilegalidades cometidas em várias etapas deste triste e patético processo.
Paulo Roberto de Almeida 



Por Sergio Leo | De Brasília
Valor Econômico, 17/07/2012

A cerimônia de ingresso da Venezuela no Mercosul, marcada para o dia 31, terá efeito simbólico, e só em agosto os governos do bloco esperam que possa ter efeito legal, de acordo com as regras do protocolo de adesão firmado pelo país em 2006. "Será uma cerimônia política", reconheceu, em conversa com o Valor, o assessor internacional da presidência de República, Marco Aurélio Garcia. Os paraguaios, que não foram ouvidos, contestam até o prazo de agosto, alegando que, sem o voto do Paraguai a incorporação é impossível.
No dia 31, será reativado o grupo de trabalho criado para discutir as condições de entrada da Venezuela no Mercosul, especialmente a adesão dos venezuelanos à Tarifa Externa Comum (TEC) do bloco, que garante imposto de importação idêntico nas transações com terceiros países. A definição sobre a TEC é pré-condição para o ingresso no Mercosul, mas o grupo de trabalho deverá ter um prazo, ainda não estipulado, para definir como a Venezuela adotará esse compromisso. Pelas regras do bloco, essa definição deveria ocorrer antes da incorporação do país.
Os sócios do bloco têm um número limitado de produtos com autorização a ter tarifas diferentes da TEC - são 200 no caso da Argentina e Brasil e mais para os países menores. Os venezuelanos deverão reivindicar também sua lista - há indicações de que querem mais de 200 produtos.
A Venezuela aprovou o protocolo de adesão ao Mercosul em 2006, mas não informou até hoje como pretende cumprir os compromissos do bloco, a começar pela TEC. Até sexta-feira, nem havia registrado nos órgãos do Mercosul a ratificação do protocolo de adesão pelo Congresso. Só na sexta-feira houve o registro, na Secretaria do Mercosul (e não no governo paraguaio, como estava previsto no protocolo). Com o registro, começou a ser contado o prazo de 30 dias antes que se possa oficializar a entrada do novo integrante do Mercosul como membro pleno. Especialistas e o governo paraguaio contestam esse prazo, porque o depósito não foi feito no Paraguai e o país não foi ouvido.
"Está tudo resolvido", diz Garcia, que afirma ter recebido garantias do governo venezuelano de que não haverá retrocesso nos compromissos assumidos e será regularizada a situação do país para entrada no bloco.
Durante as reuniões do grupo de alto nível criado para discutir a entrada da Venezuela, o governo venezuelano chegou a propor adiar a redução de tarifas já prevista no acordo de livre comércio existente entre o país e o Mercosul - que prevê o fim de taxação no comércio até 2014, com uma pequena cesta de produtos "sensíveis" a ser liberalizada só em 2019.
A ideia não foi aceita, mas também não se cumpriu a previsão, inscrita no protocolo de adesão, de livre comércio a partir de janeiro de 2012. A maior parte do comércio, porém, já tem tarifa, atestam especialistas do setor privado.
A maior expectativa do governo brasileiro e do setor privado é a aplicação, na Venezuela, da tarifa externa comum, que implicaria taxação de 35% para automóveis, por exemplo, hoje submetidos a tarifas inferiores. "A maior parte do que a Venezuela consome ainda vem dos EUA. Nesse mercado vai haver mudança importante a nosso favor", avalia Garcia, que conta com a tarifa externa do Mercosul para dar vantagem competitiva a produtos brasileiros, como automóveis e máquinas e equipamentos.
Mesmo com a vantagem da TEC, porém, há restrições a importações na Venezuela, devido à necessidade de divisas estrangeiras para garantir o equilíbrio das contas externas venezuelanas, afetadas com a queda nos preços do petróleo. O governo brasileiro argumenta que a entrada dos venezuelanos no Mercosul dará mais instrumentos, inclusive jurídicos, para negociar o fim de barreiras injustificadas ao comércio - ainda que os problemas tenham aumentado, e não diminuído, com o maior sócio no bloco, a Argentina.

sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

"Conversa de diplomata": para boi dormir? - a proposito do que disse a presidente

Trecho final do artigo do jornalista Sérgio Leo, no Valor Econômico, de 3/01/2012, "Sob Dilma, prevalece diplomacia econômica": 


"Ao contrário do que se imaginava após a eleição, Dilma tem mostrado gosto pelos assuntos internacionais, embora os econômicos sejam seus  preferidos. Na sua leitura matinal de jornais inclui sempre o britânico “Financial Times”. A presidente encantou-se com os detalhes  da formação do governo Obama, que leu numa biografia do colega americano. Leu também os livros sobre Bolívar presenteados pelo presidente da Venezuela, Hugo Chávez. Detesta, porém, “conversa de diplomata”, segundo define um ministro próximo, querendo dizer, com isso, a linguagem cuidadosa e vaga que algumas vezes é encontrada em relatos do Itamaraty – ainda que a presidente faça questão de prestigiar o Ministério de Relações Exteriores."


Parece que "conversa de diplomata" é uma coisa chata, pouco prática, insossa e irrelevante. Seria verdade?
Paulo Roberto de Almeida 


terça-feira, 3 de maio de 2011

A politica externa do nunca antes e os criticos saudosistas - cronica de um jornalismo neutro...

Interessante exposição sobre um debate que ficou em segundo plano por causa do "povão", quero dizer, por causa de uma expressão infeliz do ex-presidente egocêntrico da era neoliberal, que tanto escandalizou gregos e goianos, ou petistas e pessedebistas (e tutti quanto se acham amigos do povo, aliás, uma frase da revolução francesa, de tão triste memória).
O jornalista acha, com o assessor presidencial para assuntos internacionais -- que ainda possuiria forte influência sobre a política externa --, que Garcia demonstra que a diplomacia lulista não foi tão politizada assim, "citando exemplos", ele e Garcia concordariam, "de figuras brilhantes que politizaram a diplomacia, de Oswaldo Aranha a Fernando Henrique Cardoso."
Curioso: a acusação contra a diplomacia lulista não era o fato de terem politizado o Itamaraty e sua política externa supostamente profissional, mas sim de terem partidarizado uma diplomacia que, sendo política, não era, ao que parece, partidária, supondo-se que a era neoliberal não fosse justamente neoliberal.
Ou seja, já que Oswaldo Aranha e FHC também politizaram a diplomacia, os aprendizes de feiticeiros e os amadores petistas podiam sair por aí abraçando ditadores e protegendo violadores dos direitos humanos.
Tudo em nome de uma outra politização possível, claro.
O mundo é tão mais simples quando explicado por jornalistas.
O mundo mudou, o Brasil mudou, o Maranhão mudou, o Itamaraty mudou, todos nós mudamos, por que a Dilma e seu aspone diplomático não mudariam?
Simples, não é?
Paulo Roberto de Almeida

A oposição e a política externa
Sergio Leo
Valor Econômico, 02/05/2011, pág. A2

Mundo enfrentado por Dilma é diferente do de Lula, diz Garcia

A polêmica despertada pelo artigo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso sobre "O Papel da Oposição", no último número da revista Interesse Nacional, eclipsou, por seu alcance, uma outra interessante polêmica publicada no mesmo número da publicação, sobre assunto aparentemente de interesse mais restrito, a política externa brasileira. De um lado, o assessor internacional das presidências Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff, Marco Aurélio Garcia. De outro, o ex-ministro de Relações Exteriores de FHC, Luiz Felipe Lampreia. Em ambos os textos, o tema é a mudança da política externa, com Dilma.
"As mudanças existem e existirão por duas razões", diz Garcia: porque o mundo enfrentado por Dilma é diferente do encontrado por Lula, em suas vantagens e nas responsabilidades que exige; e porque "toda política externa tem de conviver com uma certa imprevisibilidade", refletida em surpresas como a revolta do mundo árabe.
Expressa já no fim do artigo, a declaração de mudanças na política externa não faz menção à propalada centralidade da defesa dos direitos humanos no Itamaraty da nova presidência - posta em questão, aliás, na visita de Dilma à China, em que foi um não-assunto o sumiço dado pelas autoridades chinesas a elementos potencialmente perturbadores nesses tempos de ebulição árabe, o mais famoso dos quais é o artista Ai Weiwei, preso, incomunicável, sob alegação de crimes econômicos.
A referência a mudanças, feita pelo mesmo Marco Aurélio Garcia que as desdenhava no começo do governo atual, parece um tributo à presidente que se esforça - com êxito - para mostrar que não é mera continuadora de Lula. O restante do artigo, porém, feito por um assessor palaciano que, ao contrário de rumores desejosos, ainda exerce forte influência sobre as definições de política externa, mostra traços fortes da continuidade.
Garcia dedica boa parte do texto a demolir a crítica mal informada que atribui a uma inédita "ideologização" da política externa os pecados da diplomacia lulista. Visões distintas do que seria o "interesse nacional" sempre existiram de sobra na atuação externa brasileira, e não poderia ser de outro modo, como mostra Garcia, citando exemplos de figuras brilhantes que politizaram a diplomacia, de Oswaldo Aranha a Fernando Henrique Cardoso.
Sem tratar da acusação de que, sob Lula, o Brasil opinou excessivamente nos processos eleitorais dos países vizinhos, Garcia justifica, com argumentos consistentes, a razão da prioridade para o entorno regional. A "balcanização" da América do Sul, sua fragmentação resistente aos discursos de unidade, é atribuída, por ele, à falta de maior integração física e energética - uma prioridade cada vez mais evidente nos planos externos de Dilma.
Ao lado da defesa do multilateralismo e da lembrança do papel fundamental dos chamados países do Sul para a recuperação econômica, Garcia classifica as críticas à ação de Lula em questões como o Irã e Oriente Médio como defesa de uma "reserva de mercado" dos países ricos. Ataca, porém, como anacrônica a análise que vê, nessas ações, indícios de "terceiro-mundismo".
A coincidência do artigo do assessor com a do ex-chanceler de FHC não mostra exatamente um debate. Às preocupações quase conceituais de Garcia, Lampreia contrapõe uma listagem do que considera a herança "das mais negativas" recebidas por Dilma em matéria de política externa, e uma detalhada e provocativa agenda de mudanças - quase uma pauta para a oposição, que tem tido atuação superficial nesse debate.
Lampreia, ativo crítico do governo Lula, subestima a ação brasileira na acomodação de conflitos entre Venezuela e Colômbia, mas acerta ao criticar duramente a timidez da ação brasileira em conflitos regionais como o da Argentina e Uruguai em torno das "papeleras" uruguaias que geraram bloqueio de vias por argentinos alegando ameaças ambientais.
Os gestos públicos a ditadores e líderes polêmicos como Mahmoud Ahmadinejad "são iniciativas gratuitas que nos tiram credibilidade", aponta o ex-ministro - e a ausência de ações semelhantes por parte de Dilma parece lhe dar razão.
Sem a polêmica que caracterizou o artigo de FHC, Lampreia também sugere rumos à oposição, que vem agindo reativamente nos temas diplomáticos. Ao reconhecer prioridade ao Mercosul, ele defende a ênfase em seu aspecto comercial, reivindicando, no entanto uma "certa flexibilidade", que dê aos países autonomia em negociações comerciais. Aparentemente, sugere a consolidação do bloco como área de livre comércio e abandono, pelo menos temporário, das pretensões à união aduaneira que nunca foi.
Lampreia também cobra um "papel mais ativo nos conflitos regionais" por parte da diplomacia brasileira. Mostrando-se sabedor dos motivos que orientam a cautela nesse assunto - o medo de ser visto como "imperialista" é o maior deles -, o diplomata diz que o esforço brasileiro não precisaria ser "singular", e poderia ocorrer em combinação com outros governos da região. Uma cobrança válida, quando se recorda que o governo Lula não pôs, na discussão entre Uruguai e Argentina, uma fração do empenho dedicado aos temas do Oriente Médio.
É uma pena que esses e os muitos outros temas tocados pelos dois artigos na revista não tenham a atenção merecida, e sejam postos em segundo plano não só pelo "povão" mencionado polemicamente por FHC na mesma edição. Seria louvável se os interessados não deixassem morrer as discussões levantadas por Garcia e Lampreia, no blablabla maniqueísta que, infelizmente, parece imperar em boa parte das discussões sobre a política externa brasileira.

Sergio Leo é repórter especial e escreve às segundas-feiras
E-mail: sergio.leo@valor.com.br

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Politica externa: continuidade na continuidade...

Segundo o atual (e "permanecente") assessor presidencial em temas de assuntos internacionais...
Cabe esperar para ver. Estilo, por vezes, faz a substância...

Despolitização da diplomacia é 'balela', diz assessor de Dilma
Sergio Leo
Valor Econômico, 17/01/2011 – pág. A12

Relações externas: Marco Aurélio Garcia confirma, porém, ênfase maior na questão dos direitos humanos

Marco Aurélio Garcia: "Só há dois tipos de relação sem conflito: as de subordinação e as que não existem"
É uma "balela" a ideia de que a presidente Dilma Rousseff abrirá mão da ideologia na política externa em favor de uma gestão "técnica", garante o assessor internacional da Presidência, Marco Aurélio Garcia. Principal encarregado do tema no Planalto, ele deve ganhar até quatro novos assistentes para se ocupar "não só do urgente, mas também do importante". Se convidado, o Brasil tende até a aceitar participar da missão de fiscalização às instalações nucleares do Irã, para assegurar seu uso pacífico, adianta.
Garcia confirma, porém, mudanças de ênfase na diplomacia, sob Dilma. Se confirmada a censura iraniana a livros do escritor brasileiros Paulo Coelho, o Brasil protestará, assim como pretende pronunciar-se mais intensamente sobre questões de direitos humanos. Mas essa "vigilância" será aplicada a todos, diz ele, até países como Estados Unidos e Suíça, que, apesar de terem casos de abuso, não costumam ser alvo de resoluções de censura.

Na entrevista, cujos trechos principais estão publicados a seguir, ele fala da divisão de tarefas na diplomacia e dos planos para a China, comenta a situação da Venezuela e fala das relações "muito boas" com os Estados Unidos, não afetadas pelo recente ataque ao Brasil, feito pelo embaixador americano em Genebra, Michael Punke. O diplomata acusou o Brasil de escalada protecionista, mas Garcia minimiza: "Não vamos responder ao sub do sub."

Valor: Como será a divisão de tarefas entre a assessoria e o Itamaraty?

Marco Aurélio Garcia: A resposta a esse problema será dada praticamente. O Ministério de Relações Exteriores, em função de sua grande estrutura, da qualidade de seus responsáveis, entre eles o atual ministro, tem um trabalho que se caracteriza não só pela formulação mas pela execução da política externa, graças à gigantesca capilaridade que tem.

Valor: O que muda no papel de sua assessoria com o novo governo?

Garcia: Essencialmente não houve grandes mudanças. Vamos precisar ampliar a assessoria, mas uma ampliação discreta, para que possamos nos ocupar não só do urgente mas também do importante. Essa assessoria existe, na forma atual, desde a eleição de Tancredo Neves. Variou um pouco de função.

Valor: Que questões "importantes", como disse, a assessoria passará a tratar?

Garcia: Hoje fazemos discurso, pontos de discussão, notas de informação para o presidente, tratamos da correspondência internacional, da agenda política não-diplomática [chefes de partido, intelectuais importantes]. Vamos ter uma conexão muito forte com a Secretaria-Geral da Presidência, que terá um assessor internacional, e o ministro Gilberto Carvalho me pediu que trabalhássemos muito articuladamente. Aqui em alguns momentos atuamos como porta-vozes, a pedido da Secretaria de Comunicação. Temos muito tarefa de presença em eventos internacionais.

Valor: Um evento desses é o Fórum Econômico Mundial, em Davos. Por que a presidente resolveu não ir a esse?

Garcia: Ela tem prioridades na agenda internacional e hoje o Fórum de Davos não tem para nós a importância que teve no começo do governo [Luiz Inácio] Lula [da Silva], que o transformou em acontecimento político de alta significação: foi a Porto Alegre [no Fórum Social Mundial] e no dia seguinte foi a Davos, onde disse que estava falando a mesma coisa que havia dito na véspera em Porto Alegre. O Brasil hoje não precisa se apresentar nessa reunião em Davos, já tem visibilidade extraordinária, há clareza muito grande sobre nossos objetivos e pelo exercício extraordinário que Lula fez na esfera internacional, que Dilma vai continuar.

Valor: Diz-se que Dilma não tem tanta vocação, tanto interesse pelos assuntos internacionais como o ex-presidente Lula.

Garcia: Circula uma série de clichês sobre o diferencial Dilma e Lula. "Dilma será menos ideológica e mais gerencial e mais técnica, menos política", dizem. Balela. É uma pessoa altamente politizada, senão não teria chegado à Presidência da República. Tem visões políticas muito precisas, um pensamento político muito desenvolvido, amadurecido no curso de décadas. Ela vai dar seguimento a isso e vai se ocupar dos temas da política internacional na medida em que forem considerados relevantes. se vai se ocupar mais ou menos só a prática vai dizer.

Valor: Por exemplo...

Garcia: Em muitos casos, Lula fez a abertura de terreno, novas fronteiras diplomáticas do Brasil. Hoje, minha concepção é que vai estar muito mais na ordem do dia a necessidade de consolidar essas fronteiras, eventualmente ampliar uma coisa aqui ou ali, dar mais organicidade à nossa política externa e é por isso que vamos precisar nos ocupar das questões importantes; vamos ter de adensar nossa capacidade reflexiva aqui, preparar dossiês mais consistentes, além dos que já existem tradicionalmente, do Itamaraty, que são muito bons.

Valor: Mas para que haver estudos do Planalto e do Itamaraty?

Garcia: Vamos fazer nossa contribuição porque a angulação não é contraditória, mas tem uma percepção política diferenciada. Não fosse assim a assessoria não se justificaria. Temos também uma agenda política não diplomática que é relevante: vem um chefe da oposição, ele deve ser recebido, não deve ser recebido?

"O Brasil hoje não precisa se apresentar no Fórum de Davos, pois já tem visibilidade extraordinária"

Valor: Vocês vão preparar documentos para orientar a posição do governo?

Garcia: A assessoria já fez isso, em muitas ocasiões preparei trabalhos. Realizamos missões também e o fato de eu ter relações com governantes na região ajuda. E aí se dá um tratamento mais específico às questões. Mas sempre articulei com o ministério. Invariavelmente, vou aos encontros com chefes de Estado ou a mesas do movimento social com o embaixador local, ou, quando não é possível, informo imediatamente ao embaixador. Muitas vezes a presidente fala ao telefone com alguém, imediatamente produzimos aqui um informe e mandamos ao Itamaraty. A sintonia aqui é muito, muito grande, até porque se fosse para brigar com o Itamaraty eu não faria. Tem de haver uma orientação muito clara em todas as políticas do governo, não só a política externa.

Valor: O site WikiLeaks mostrou tentativas da diplomacia dos Estados Unidos de trabalhar com o que via como diferença de posições no governo Lula...

Garcia: Essa divisão aparece como suposição: fulano está mais à esquerda, outro é mais nacionalista. Não há caso em que haja elemento probatório de dualidade entre nós na política externa. Mesmo nos depoimentos do ex-embaixador Clifford Sobel não aparece nada que mostre conflito de orientação. Evidentemente não sou igual ao Celso [Amorim], ao [Antônio] Patriota. Tenho as minhas ideias, que são amplamente conhecidas.

Valor: Logo no começo do governo, em entrevista, a presidente disse que não se absteria em uma votação sobre o Irã, como se absteve o governo, seguindo a posição tradicional da diplomacia. O que de fato há de diferente nisso?

Garcia: Ela se manifestou sobre um episódio concreto. Outra coisa é a forma pela qual vamos abordar os temas gerais dos direitos humanos. Não há divergência entre os procedimentos anteriores e os futuros. A presidenta quer que o governo se manifeste sobre esse assunto. Agora, será urbi et orbi [para a cidade e o mundo]. Nossas manifestações serão sobre todas as formas de violação dos direitos humanos. Ela pediu que não houvesse ambiguidade, mas também preservando os critérios de não seletividade. Esse tema aparece com força, porque se trata do Irã. Naqueles dias anteriores, mencionou-se a execução de uma mulher nos Estados Unidos com perturbações mentais sob acusação de que tinha matado o marido. Não nos pronunciamos, mas não é só isso: não houve resolução apresentada no Conselho de Direitos Humanos da ONU.

Valor: O Brasil será mais ativo na apresentação de propostas?

Garcia: Vamos ter de ter uma vigilância maior nessa questão, um trabalho mais intenso - o atual é muito bom, a embaixadora Maria Nazaré Farani Azevedo mostrou que votamos mais de 98% de condenações. O Brasil não é uma ONG, não pode ser uma agência de certificação de direitos humanos, o tempo todo sobre todos os assuntos, senão a política externa se limitará a isso, com todas suas implicações. Existem questões emblemáticas, e sobre elas, por sugestão do Itamaraty e nossa, a Presidência vai se manifestar, acatando ou não.

Valor: Por exemplo?

Garcia: Se se confirmar efetivamente a censura aos livros do Paulo Coelho, vamos nos manifestar, não há a menor dúvida. Recentemente, na posse da Dilma, falamos com o ministro do Irã sobre aspectos que causam problemas ao Irã e a nós também. Sobre a questão da Sakineh Ashtani [condenada à morte sob suspeita de morte do marido]. Li no "Estadão" que os iranianos parecem não terem gostado muito disso. Paciência. Não queremos com isso comprometer o esforço que fizemos em relação ao acordo de Teerã [sobre uso de energia nuclear pelos iranianos]. Se possível, queremos fazer com que o acordo contribua para a adesão plena do Irã à energia nuclear para fins exclusivamente pacíficos.

Valor: O Brasil continua tratando do assunto nuclear?

Garcia: Há conversas sobre o possível envio de uma missão fiscalizadora da Agência Internacional de Energia Atômica (Aiea) para verificar as instalações nucleares do Irã. Se nos convidarem, a tendência, possivelmente, é de aceitarmos. O grande problema é que se tentou muitas vezes tratar duas coisas: "Foram se meter em assunto que nada tem a ver, a política nuclear, e são complacentes com os direitos humanos no Irã." Se há crítica de complacência em relação a direitos humanos na China, nos Estados Unidos, na Suíça, que proíbe minaretes muçulmanos, estou disposto a discutir. Vamos ter de engajar no governo um debate profundo, para ver como compatibilizar questões conflitivas: os valores universais e o respeito à autodeterminação.

Valor: Debate entre quem?

Garcia: No governo, a presidente dará suas opiniões, o Itamaraty dará, nós daremos, a ministra [de Direitos Humanos] Maria do Rosário dará. O Patriota, eu e a ministra discutimos outro dia questões gerais. E vamos ter de provavelmente afinar mais a discussão de como enfrentar resoluções submetidas ou à Terceira Comissão das Nações Unidas ou ao Conselho de Direitos Humanos, sobre como compatibilizar os pontos de vista envolvidos, sem ser discriminatório.

Valor: Qual a orientação da presidente para questões econômicas, como as do G-20, que reúne as economias mais influentes do mundo?

Garcia: Ainda não fizemos discussão sobre temas do G-20, porque ultrapassa em muito o âmbito da política externa e seus mecanismos formais de execução. O carro-chefe do governo nas questões do G-20 é o Ministério da Fazenda, da mesma forma como nas questões ambientais é o Ministério do Meio Ambiente. O que a presidente insistiu muito é que ela quer uma afinação muito grande entre os ministérios envolvidos nos temas internacionais, que não se resumem no Ministério das Relações Exteriores. Por exemplo, há questões em que o Ministério da Defesa tem de ser invariavelmente escutado.

Valor: Em que temas?

Garcia: Vários. Temas do desarmamento, próprios temas do comércio exterior, que equipamentos vamos usar nas Forças Armadas, transferência de tecnologia. Não é tema limitado ao Ministério do Desenvolvimento, do Itamaraty.

Valor: E a China, é um competidor contra o qual devemos nos armar ou um parceiro nas mesas internacionais?

Garcia: É as duas coisas, e nossa habilidade vai ser combinar medidas de proteção dos nossos interesses e medidas de associação. Como vantagens, com a China, não temos conflitos de natureza geopolítica, temos até programas de cooperação internacional. Os interesses de natureza econômica que há teremos de resolver com as armas econômicas. Pretendemos não só aprofundar uma reflexão sobre a China, mas multiplicar iniciativas. O ministro Patriota vai à China, foi sugerido que eu fosse também...

"Se for confirmada a censura do Irã aos livros do Paulo Coelho, vamos nos manifestar, não há dúvida"

Valor: O senhor irá?

Garcia: Sim. Há uma proposta que o embaixador chinês me fez há algum tempo, quero ver se posso materializá-la antes da reunião. Pensamos também na ida do ministro [do Desenvolvimento, Fernando] Pimentel. Vamos ver. Há ideia de aproveitarmos a reunião dos Bric [Brasil, Rússia, Índia e China] na China para uma visita de Estado. E se for assim queremos uma visita caprichada, vamos levar não só agentes econômicos, empresários, mas vamos ter uma agenda bem mais elaborada.

Valor: Os Estados Unidos acusaram duramente o Brasil de protecionismo. Não é um sinal negativo?

Garcia: Não me surpreende, já havia sido prevenido de que havia uma tendência nessa direção. Só há dois tipos de relação sem conflito: as de subordinação e as que não existem. A Argentina é nosso principal parceiro e todo dia você noticia um conflito aqui e ali. Aí entra o papel do Itamaraty, que tem um trabalho cotidiano. Estivemos conversando com o [negociador brasileiro em Genebra] Roberto Azevedo, semanas antes, examinamos dificuldades que havia e estamos trabalhando isso. Mas é reflexão que não faremos sozinhos aqui [no Planalto].

Valor: Como estão as relações Brasil-EUA?

Garcia: Estão num bom caminho. Houve um período de certo azedume, por causa do Irã. Acho que tínhamos razão. Mas não acho que os EUA queiram fazer daquilo um ponto de agravamento das relações, pelo contrário, só temos tido manifestações positivas. Fomos beneficiados em ter Thomas Shannon como embaixador dos EUA aqui, não só pelas impecáveis qualidades profissionais dele, mas porque ele tem buscado dar consistência a essa proximidade.

Valor: E essas acusações feitas em Genebra não afetam essa consistência?

Garcia: Está lembrado da resposta do presidente Lula a umas declarações do [ex-representante comercial dos EUA, Robert] Zoellick, que íamos acabar vendendo geladeira no Polo Sul se não entrássemos na Alca? Disse que era coisa do sub do sub. Não vou responder a um sub do sub.

Valor: Não preocupam os acontecimentos políticos na Venezuela?

Garcia: Temos convicção de que a Venezuela, participando do sistema de países sul-americanos, regido inclusive por algumas cláusulas, a Venezuela vai se ater a isso [o respeito à democracia]. Muitas das observações são tentativa de empurrar a Venezuela numa determinada direção, dizer "olha, é um regime totalitário", e como já vi dizerem aqui que o presidente Lula ia para o caminho do totalitarismo... A oposição teve bom desempenho nas eleições, tem participação relevante no Congresso, há jornais extremamente críticos ao governo...

Valor: Mas houve propostas de endurecer o controle sobre a sociedade...

Garcia: Ele mesmo recuou dessas propostas, e até com bons argumentos. Evidentemente eu, como professor universitário não poderia ver com nenhuma simpatia qualquer tentativa de imiscuir-se na autonomia da universidade, inclusive no que diz respeito à produção de conhecimento e ele voltou atrás. Tenho de felicitar as coisas que vão na boa direção, não ficar simplesmente na suspicácia.