Um exercício intelectual, consolidado em 2007, do qual transcrevo apenas as duas primeiras partes. Para a íntegra, remeto a este link na plataforma Academia.edu:
Paulo Roberto de Almeida
História virtual do Brasil: um exercício intelectual
Paulo Roberto de Almeida (www.pralmeida.org)
Brasília, 1841, 29 novembro 2007, 16 p. Consolidação, em arquivo único, de ensaio de história virtual do Brasil, com base nos trabalhos 1063, 1064 e 1075, feitos em Washington, em 18 e 21 de junho de 2003 e em 7 de julho de 2003.
Primeira Parte
Questões metodológicas relativas à história virtual
Parece trivial, e sem maiores consequências práticas, fazer conjecturas em direção do passado, já que a linha contínua do tempo não nos permite operar qualquer mudança no curso efetivo da história, com a ajuda de alguma máquina do tempo imaginária. Especular é, contudo, possível em direção do passado, sendo em todo caso menos perigoso do que fazê-lo no presente e ainda menos arriscado do que “contra” o futuro. Um famoso historiador europeu, Johan Huizinga, chegou mesmo a afirmar que o historiador deveria se colocar de um ponto de vista que o permitisse considerar fatos conhecidos como podendo conduzir a resultados diferentes: e se os persas tivessem vencido em Salamina? e se Napoleão tivesse fracassado em seu 18 Brumário?
Assim, é possível selecionar alguns dos turning points da história para realizar exercícios controlados de imaginação, que não são, todavia, completamente arbitrários ou puramente aleatórios. Uma das boas regras da história virtual, já explorada por historiadores fecundos como Niall Ferguson, é a de que o novo curso estabelecido deve ser “plausível” ou “possível”, isto é, seus desenvolvimentos poderiam estar inscritos na lógica histórica do momento imediatamente antecedente. De fato, o próprio Ferguson responde à questão de saber quem se importa com desenvolvimentos que nunca ocorreram. Diz ele que, nós mesmos, na vida cotidiana, estamos sempre nos colocando questões “contrafactuais”: por que eu não obedeci aos limites de velocidade? por que ter aceitado aquele último copo? quanto eu teria ganho se tivesse apostado naquele número? [1]
Nos imaginamos, assim, acertando no milhar, escolhendo uma outra profissão ou simplesmente evitando alguns erros cometidos no passado. Um outro famoso historiador, Thomas Carlyle, via a história como um eterno caos, que o historiador deveria avaliar cientificamente. As consequências alternativas poderiam, para ele, levar a resultados totalmente aleatórios, ou divergentes do curso real da história, um pouco como na atual alegoria do bater de asas da borboleta sugerido pela teoria do caos. Seria mesmo assim?
O argumento a favor da história virtual consiste em seu poder de despertar uma certa curiosidade pela própria trama da história real, ao sugerir desenvolvimentos diversos do que aqueles que efetivamente ocorreram e que, segundo o curso sugerido, poderiam ter provocado outras consequências, algumas até decisivas do ponto de vista do curso ulterior. Mas a história virtual não é o reino do arbítrio, e sim uma construção cuidadosa sobre as vias alternativas da vida humana, explorando fatores contingentes do processo histórico, onde os homens podem, sim, fazer uma grande diferença, ao contrário da aparente rigidez do determinismo histórico. Desse ponto de vista, a história virtual possui virtudes eminentemente didáticas, pois que ela permite isolar o que é único, especial ou peculiar num determinado evento ou processo histórico, ao imaginar que esse fator ou essa ação particular poderiam ter deslanchado um curso totalmente inesperado (do ponto de vista do que efetivamente se passou), mas que estaria inteiramente inserido na lógica e na trama do curso precedente.
Aos que recusam a utilidade da história virtual pode-se observar que ela está de certa forma contemplada numa vertente mais séria, e quantitativamente embasada, da disciplina, identificada, por exemplo, com a chamada “cliometria”, na qual argumentos contrafactuais são mobilizados para determinar o peso de determinados fatores ou processos históricos. Um dos mais conhecidos utilizadores desse tipo de exercício é, obviamente, o prêmio Nobel americano Robert William Fogel que, numa obra famosa (Railroads and American Economic Growth: Essays in Econometric History, 1964), tenta isolar o papel das ferrovias no desenvolvimento econômico dos Estados Unidos. [2]
Assim, o que teria acontecido com o Brasil – que talvez não fosse nem “Brasil” – se a linha divisória de Tordesilhas, por desatenção dos portugueses ou resistência dos negociadores espanhóis, tivesse ficado lá mesmo onde a tinha colocado a bula do papa Alexandre VI, no meio do oceano? Teriam as Américas permanecido uniformemente espanholas, contentando-se os portugueses com seus domínios apenas africanos? O mais provável é que incursões de conquistadores concorrentes – franceses, holandeses, ingleses, entre outros – tivessem “esquartejado” bem mais cedo o hemisfério ocidental entre reinos e impérios mercantis europeus.
Muitos outros eventos ou processos podem ser sugeridos nessa linha da “história alternativa”. Cursos diferentes para episódios conhecidos devem, contudo, guardar conexão com o desenvolvimento possível ou com o curso efetivo de cada um deles. É o que se poderia chamar de plausibilidade histórica, o que significa que o curso sugerido não pode ser nem “anacrônico”, nem totalmente arbitrário, no sentido em que a alternativa selecionada poderia ter sido efetivamente “oferecida” aos, ou considerada pelos homens que tomaram tal ou tal decisão em momentos por vezes dramáticos para seus países ou para si mesmos.
A ideia da contingência na história, uma das bases da história factual, milita, assim, contra o determinismo histórico, muitas vezes exemplificado pela famosa frase de Marx na abertura do seu 18 Brumário de Luís Napoleão, segundo a qual os homens fazem sua própria história, mas o fazem em condições determinadas por forças que estão fora do controle desses mesmos homens.
Resumindo, ideias virtuais também podem constituir uma “boa” matéria prima para a história real, desde que ela se faça em condições aceitáveis de causalidade e de encadeamento das ações humanas. Afinal, o Rubicão, Waterloo, a batalha da Inglaterra, Stalingrado, poderiam, sim, ter conhecido outros desfechos e ter apresentado outras consequências. A relação (sempre ambígua) entre a liberdade e a necessidade nunca está determinada previamente e é isso, justamente, que constitui um dos fascínios da história.
Segunda Parte
Momentos decisivos da história do Brasil
Os eventos selecionados abaixo, construídos sem outro cuidado de pesquisa histórica que não o desfilar de datas ao fio da memória, constituem exemplos relevantes dos principais “tijolos construtores” de uma história virtual do Brasil. São eles, em todo caso, que oferecem oportunidades significativa de “distorção” do processo histórico, tal como ele efetivamente ocorreu, em direção de outras possibilidades e alternativas de desenvolvimento do itinerário conhecido, que poderiam ser considerados como possíveis ou plausíveis. Vários outros elementos – e não apenas eventos singulares – poderiam ser considerados como passíveis de “inflexão criativa” no registro dos fatos, tais como processos de mais longa duração, que de toda forma se prestam aos critérios de “opções factíveis” ou de fatores contingentes, em função dos quais o desenrolar do processo, no caso do Brasil, poderia ter assumido contornos absolutamente inéditos em relação aos dados registrados nos anais e crônicas da história oficial.
1494: Tordesilhas (do contrário o Brasil não teria sido português)
1500: Descoberta (mas o Brasil não era ainda Brasil)
1640-1654: Expulsão dos holandeses do Nordeste
1750: Tratado de Madri (e seus sucedâneos, El Pardo e Santo Ildefonso)
1759: Expulsão dos jesuítas do Brasil por decreto de Pombal
1763: Transferência da sede do Vice-Reino para o Rio de Janeiro
1792-98: Derrota da inconfidência e decreto de proibição de teares
1808: Abertura dos portos: fim do exclusivo colonial
1810: Tratado de 1810 de Portugal com a Inglaterra: rigidez tarifária
1817: Revolução Pernambucana: primeiro desafio à unidade nacional
1822: Independência (sem abolição da escravatura)
1828: Perda da Cisplatina e nova composição no Prata
1831: Abdicação de D. Pedro I e experiência “republicana” das Regências
1935-45: Farroupilha no Sul: segundo desafio à unidade nacional
1842: Esmagamento da revolução liberal: consolidação conservadora
1844: Nova tarifa e início do experimento protecionista comercial
1850: Lei de Terras inviabiliza a divisão da grande propriedade rural
1854: Início das ferrovias no Brasil: começo da modernização
1865: O Império se descobre frágil com o ataque de Solano Lopez (Tríplice Aliança)
1888: Abolição da escravidão (sem incorporação dos escravos à economia e à sociedade)
1889: Adoção do regime republicano (federalismo na prática, até exagerado)
1891: Constituição republicana (consolida autonomia dos estados, revertida em 1937)
1898: Funding loan e primeira experiência de ajuste fiscal: limites da dívida externa
1902-1912: Configuração das fronteiras nacionais: obra de Rio Branco
1910: Derrota de Rui Barbosa: sistema político de oligarquias-positivistas-militaristas
1922: Início do ciclo tenentista de reforma política brasileira
1930: Revolução “liberal”: fim do regime puramente oligárquico
1931: Suspensão da conversibilidade e início dos controles de capitais (até hoje)
1934: Constituinte corporativa e atração do fascismo
1937: Golpe autoritário: nova centralização e construção do Estado moderno
1938: Derrota do integralismo-fascismo na conquista do Estado
1941: Escolha certa no momento da ofensiva militar nazifascista: com os EUA
1944: Brasil vai à guerra e participa de Bretton Woods
1947: TIAR e doutrina da Guerra Fria: adesão à esfera de influência americana
1947-48: Conferência de Havana: sistema multilateral de comércio
1952: Acordo militar com os EUA: só seria terminado em 1977
1955: Primeiras experiências de liberalização cambial
1957: Industrialização e construção de Brasília: interiorização do desenvolvimento
1961: Golpe e parlamentarismo: ciclo de crises político-militares encerra a era Vargas
1964: República “sindical” é derrotada pelo Exército a serviço da burguesia
1968: Brasil recusa o TNP: autonomia nuclear e projeto próprio termina em 1996
1969: Golpe dentro do golpe: o mergulho na ditadura
1973 e 1979: Duas crises do petróleo: grande impacto econômico e na dívida externa
1975: Acordo Nuclear Brasil-RFA: oposição dos EUA
1979: Começo da transição para a democracia, sob crise econômica constante
1982: crise da dívida externa culmina em 1987, com moratória
1985: Fim do regime militar: início da “quinta” república (Constituição de 1988)
1988: Tratado de Integração com a Argentina (em 1991, Mercosul quadripartite)
1992: Brasil aceita Tlatelolco plenamente e faz “impeachment” do presidente
1994: Plano Real de Estabilização Econômica: vencido o ciclo de ajustes fracassados
1999: Desvalorização e regime de flutuação cambial: consequências para o Mercosul
2002: Vitória do Partido dos Trabalhadores nas eleições presidenciais: grande mudança?
[1] Ver Niall Ferguson, “Introduction, Virtual History: Towards a ‘chaotic’ theory of the past” in Niall Ferguson (ed.), Virtual History: Alternatives and Counterfactuals (New York: Basic Books, 1997), pp. 1-90, cf. p. 2.
[2] Cf. R. W. Fogel, “The New Economic History: its findings and methods” in Fritz Stern (ed.), The Varieties of History: From Voltaire to the Present (New York: Vintage Books, 1973), pp. 456-473.
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