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quarta-feira, 1 de março de 2023

Rui Barbosa, cem anos do falecimento: um dos pais do Direito Internacional do Brasil - Paulo Roberto de Almeida

 Aos cem anos do falecimento de Rui Barbosa, permito-me reproduzir artigo que elaborei aos 100 anos de sua conferência realizada em Buenos Aires, sobre os conceitos modernos do direito internacional, mais conhecida como o dever dos neutros, na Faculdade Nacional de Direito da UFBA

Rui Barbosa e o direito internacional

Paulo Roberto de Almeida

14 de julho de 2016 

 

            Cem anos atrás, quando a Argentina comemorava o primeiro centenário de sua independência, o governo brasileiro designou o senador Rui Barbosa para ser o seu representante nos festejos daquele evento. Ademais de participar das cerimônias oficiais, Rui Barbosa foi convidado a fazer uma palestra na Faculdade de Direito e Ciências Sociais de Buenos Aires, ali pronunciando uma das alocuções mais importantes da história do direito internacional no Brasil. Dada a importância de suas reflexões para a própria construção da doutrina jurídica que sustenta a essência da política externa brasileira, bem como para a afirmação dos mais importantes valores e princípios da diplomacia sempre defendida pelo Itamaraty, cabe relembrar alguns dos aspectos importantes dessa conferência, inclusive para os nossos dias.

            Para facilitar a tarefa, temos à nossa disposição a excelente edição dessa conferência pela Fundação Casa de Rui Barbosa, através da qual, em 1983, Sérgio Pachá estabeleceu um texto definitivo do original em espanhol, realizando ele mesmo a tradução, acompanhada de notas e de uma excelente introdução a esse texto, de enorme repercussão, à época (e ainda hoje) na Argentina), durante muito tempo conhecido como "O Dever dos Neutros". Rui Barbosa não era desconhecido na Argentina, onde já havia vivido em 1893, fugindo da perseguição que lhe movia o governo de Floriano, por ter batalhado pelos envolvidos na revolta da Armada. Ele começa a parte substantiva de sua conferência de 1916 relembrando justamente esse episódio, defendendo a liberdade nas palavras de um de seus mais admirados promotores argentinos, Juan Batista Alberdi: "A civilização política é a liberdade. Mas a liberdade não é senão a segurança: a segurança da vida, da pessoa, dos bens."

            Ele continua, então, por um verdadeiro hino em louvor à nova "civilização argentina", não sem antes lembrar a barbárie dos antigos caudilhos que tinham levado o país à anarquia e à tirania. Num exercício arriscado de profetismo, Rui Barbosa anunciava aos argentinos da audiência que "há muito que consolidastes a vossa civilização. Vinte e cinco anos, pelo menos, de governo estável, ordem constante e progresso ininterrupto vos libertaram para sempre das recaídas no mal da anarquia. Um desenvolvimento colossal da riqueza, as acumulações do trabalho na prosperidade, uma abundante transfusão do sangue europeu, um civismo educado nos melhores exemplos da liberdade conservadora, grandes reformas escolhidas com discrição, adotadas com sinceridade e praticadas com inteireza depuraram dos últimos vestígios da antiga doença vosso robusto organismo, talhado para um crescimento gigantesco, asseguraram-vos no mundo uma reputação definitiva e fizeram da República Argentina um dos centros da civilização contemporânea, uma nação cujo invejável progresso pode resumir-se numa palavra, dizendo-se que a República Argentina é um país organizado." A Argentina de fato era, cem anos atrás, um dos países mais ricos do mundo, possuindo uma renda per capita superior à de vários países europeus, equivalente a 73% da renda média nos EUA (já então o mais rico de todos) e cinco vezes maior do que a renda per capita dos brasileiros. 

            Depois de repassar os episódios mais relevantes do itinerário político argentino, iniciado em 1806, caminhando para a independência já em 1810 e consagrado definitivamente no Congresso de Tucuman, em 9 de julho de 1816, quando se proclama solenemente, em nome de todo o povo argentino, a autonomia completa em face do soberano espanhol, Rui Barbosa chega ao cerne de sua conferência: um novo exercício da força bruta, contra o direito, representado pela Grande Guerra, especialmente a invasão da Bélgica neutra pelas tropas do Império alemão, em total desrespeito aos princípios da neutralidade, discutidos poucos anos antes na Segunda Conferência da Paz da Haia, na qual Rui havia sido o chefe da delegação brasileira. Suas palavras, em defesa desse princípio, foram muito claras: “Entre os que destroem a lei e os que a observam não há neutralidade admissível. Neutralidade não quer dizer impassibilidade; quer dizer imparcialidade; e não há imparcialidade entre o direito e a injustiça. (...) O direito não se impõe somente com o peso dos exércitos. Também se impõe, e melhor, com a pressão dos povos”. 

            Esse exato discurso de Rui Barbosa foi relembrado pelo chanceler Oswaldo Aranha, em 1942, quando o Brasil se viu confrontado à extensão da guerra europeia ao continente americano, instando, então, o Brasil, a assumir suas responsabilidades no plano dos princípios do direito internacional e dos valores da solidariedade hemisférica. A Alemanha tinha, mais uma vez, violado a neutralidade da Bélgica, para invadir a França. A postura de Aranha – que havia recepcionado Rui, como jovem estudante no Rio de Janeiro, quando o jurista desembarcou na volta ao Brasil –, foi decisiva para que, ao contrário da vizinha Argentina, então controlada pelo Grupo de Oficiais Unidos, de orientação simpática ao Eixo, o Brasil adotasse uma postura compatível com a construção doutrinal iniciada por Rui e de acordo a seus interesses nacionais, nos contextos hemisférico e global, em face do desrespeito brutal ao direito internacional cometido pelas potências nazifascistas na Europa e fora dela.  

            Vinte anos depois, o chanceler San Tiago Dantas soube preservar o patrimônio jurídico da diplomacia brasileira ao defender, de maneira clara, o respeito ao princípio da não intervenção nos assuntos internos de outros Estados, que estava em causa nas conferências e reuniões pan-americanas em torno do caso de Cuba. Outros juristas e diplomatas brasileiros, ao longo do século, a exemplo de Raul Fernandes, Afrânio de Melo Franco, Afonso Arinos de Melo Franco e Araújo Castro, participaram dessa construção doutrinal e pragmática dos valores e princípios da diplomacia brasileira. Há que se reconhecer, no entanto, que Rui Barbosa foi um dos grandes iniciadores e batalhadores pela afirmação dessas grandes diretrizes políticas que hoje integram plenamente o patrimônio consolidado da diplomacia brasileira.

 

Paulo Roberto de Almeida, ministro da carreira diplomática, é diretor do Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais, da Funag, e professor no Uniceub.

 

Aproveito para anunciar a publicação deste livro: 

Rui Barbosa: uma personalidade multifacetada. 

Rui Barbosa: a Multifaceted Personality

https://funag.gov.br/biblioteca-nova/produto/1-1214

O centenário de falecimento de Rui Barbosa nos convida a rememorar o pensamento e a prática do singular jurista, político, diplomata e intelectual do Segundo Reinado e da Primeira República no Brasil. A contribuição simbólica que a Fundação Alexandre de Gusmão oferece nesta oportunidade é a presente edição de "Rui Barbosa: uma personalidade multifacetada". A edição original de 2012 reuniu profundos conhecedores da biografia e da obra ruiana, todos titulares da Cátedra:  a publicação nos oferece as reflexões de Marianne Wiesebron, Ruben Oliven, André Cunha, Paulo Visentini, Raúl Antelo, Italo Moriconi e Jairo Nunes, que iluminam a versatilidade de Rui Barbosa a partir de suas respectivas áreas de especialização acadêmica. O painel composto a várias mãos bem ilustra as múltiplas facetas do homem cuja biografia é inseparável da história da jovem República brasileira. A edição ampliada que a FUNAG agora apresenta é enriquecida por duas valiosas contribuições. A primeira, palestra de Celso Amorim, também realizada em 2007, na qual se veem com clareza as interseções entre as ideias de Rui Barbosa e várias questões multilaterais do século XXI, bem como a atualidade de sua vocação universalista e de sua luta pela redução das assimetrias nas relações internacionais. A segunda, artigo de Carlos Henrique Cardim, de 2013, que aprofunda o estudo sobre a atuação de Rui especificamente na esfera internacional.

Rui Barbosa, uma personalidade multifacetada - Marcia Loureiro, Marianne Wiesebron, Marilene Nagle (orgs.)

 


No centenário de falecimento de Rui Barbosa, a Fundação Alexandre de Gusmão publica a 2ª edição, bilíngue, revista e ampliada, de Rui Barbosa, uma personalidade multifacetada.    

 

Originalmente publicada em 2012, a obra rememora o pensamento e a prática do singular jurista, político, diplomata e intelectual do Segundo Reinado e da Primeira República. A presente edição apresenta duas contribuições adicionais: a primeira, palestra de Celso Amorim, realizada em 2007, na qual se veem com clareza as interações entre as ideias de Rui Barbosa e várias questões multilaterais do século XXI. A segunda, artigo de Carlos Henrique Cardim, de 2013, que aprofunda o estudo sobre a atuação de Rui especificamente na esfera internacional.  

 

O livro está disponível para download gratuito na biblioteca digital da FUNAG. A versão impressa pode ser adquirida na Loja Virtual


https://funag.gov.br/biblioteca-nova/produto/1-1214


Biblioteca Digital da Funag

Supremo Tribunal Federal completa 132 anos de instalação

 Supremo Tribunal Federal completa 132 anos de instalação

Instituição do Tribunal como órgão de cúpula da Justiça Nacional, em 1891, marca o início da era republicana.

 

28/02/2023

 

Com o fi­m do regime monárquico e o início da era republicana, a Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 1891 institui o Supremo Tribunal Federal como órgão de cúpula da Justiça Nacional, em substituição ao Supremo Tribunal de Justiça, corte do período imperial. A instalação, prevista no Decreto 1° daquele ano, ocorreu em 28 de fevereiro, com a realização da primeira sessão plenária, no Solar do Marquês do Lavradio, no Rio de Janeiro, antiga capital do país. Ali nascia a instituição que se consolidaria como protagonista na proteção do Estado Democrático de Direito.

 

Ainda nas mensagens que justificavam a criação do STF, o rei Dom João VI argumentava a necessidade de proteger os “sagrados direitos de propriedade que muito desejo manter como a mais segura base da sociedade civil”. Na República, a exposição de motivos que acompanhou o Decreto 848, de 11 de outubro de 1890, assinada pelo ministro Campos Salles, afirmava que o “ponto de partida para um sólido regime de liberdade está na garantia dos direitos individuais”. Esses documentos já apontavam para a construção de uma Corte vocacionada à guarda da Constituição e dos direitos fundamentais.

 

Composição

 

A Constituição de 1891 previa que o Supremo seria composto de 15 juízes, nomeados pelo presidente da República e aprovados pelo Senado Federal. Deles, 10 vieram do antigo Supremo Tribunal de Justiça e cinco foram escolhidos entre membros de órgãos diferentes.

 

De acordo com o texto constitucional, a escolha se daria entre cidadãos “de notável saber e reputação, elegíveis para o Senado”, o que permitiu que o presidente nomeasse pessoas sem formação em Direito. Atualmente, a Constituição Federal de 1988 dispõe, entre os requisitos para ocupar uma vaga no Tribunal, o notável saber jurídico, além da reputação ilibada e da idade entre 35 e 65 anos.

 

Posse

 

O decreto de criação do STF, de 26 de fevereiro de 1891, estabelecia a forma de eleição do seu primeiro presidente. A primeira sessão foi presidida pelo ministro João Evangelista de Negreiros Sayão Lobato, o Visconde de Sabará, presidente do Supremo Tribunal de Justiça. Nessa mesma sessão, tomaram posse os ministros e foram eleitos, em votação secreta, o presidente e o vice-presidente da Corte, os ministros Freitas Henrique e Aquino e Castro.

 

Funcionamento

 

O primeiro Regimento Interno foi aprovado em 8 de agosto de 1891. Até então a Corte adotava as regras do extinto Supremo Tribunal de Justiça. Depois, foram publicados outros quatro - em 1909, 1940, 1970 e o atual, publicado em 1980, com uma série de emendas para atualizar o funcionamento da Corte. As sessões eram realizadas aos sábados e às quartas-feiras.

 

Até 1895, o STF funcionava em dias alternados na mesma sala da Corte de Apelação do Distrito Federal, e os ministros não tinham nem mesmo gavetas para guardar seus papéis. Em 1902, passou a um prédio próprio e exclusivo, na Rua 1° de Março, e, em 1909, se instalou no edifício da Avenida Rio Branco, onde permaneceu até 1960, quando foi transferido para Brasília. Nesse prédio, hoje, funciona o Centro Cultural da Justiça Federal.

 

Na nova capital, o Supremo, desde 21 de abril de 1960, ocupa a Praça dos Três Poderes, com o Congresso Nacional e o Palácio do Planalto.

 

Seis Constituições na República

 

Depois da Constituição de 1891, a República teve outras cinco Constituições: as de 1934, 1937, 1946, 1967 e 1988. Como ressaltou o ministro Moreira Alves em discurso na sessão solene pelo centenário do STF, em 1991, entre as várias mudanças da Constituição Cidadã, a de 1988 ampliou a presença da Corte no terreno constitucional e retirou dela uma função desempenhada por mais de 90 anos: a de Tribunal unificador da aplicação do direito federal infraconstitucional. Essa tarefa passou para o Superior Tribunal de Justiça (STJ), criado com a Constituição de 1988 e instalado em 1989.

 

Dimensão política

 

No mesmo discurso, o ministro Moreira Alves destacou, também, o protagonismo político que a Corte veio conquistando ao longo da história constitucional brasileira. “O Estado, que antes era unitário e em que não havia atritos mais sérios entre o governo central e os das províncias, pela subordinação destes àquele, se torna federal, com a consequente delimitação das esferas de competência entre a União e estados membros, a exigir a exigir Poder que lhe fiscalize a observância”, disse. A partir disso, o STF assume função política, de examinar as leis e confrontá-las com a Constituição, e, dessa forma impor um limite ao poder parlamentar.

 

Também por ocasião do centenário, o então senador José Sarney afirmou que, em sua trajetória, o STF nunca faltou à nação. Segundo o ex-presidente da República, o velho Supremo monárquico era uma corte sem dimensão política, “que servia a um Estado unitário, sob a invocação do imperador”. O novo tribunal, por sua vez, é “uma instituição republicana, federativa”, a quem foi confiada a guarda da Constituição.

 

No mesmo sentido, a presidente do STF, ministra Rosa Weber, em discurso no último dia 23 pela celebração dos 132 anos da primeira Constituição republicana, lembrou que, em 1891, o Judiciário do Império, que se limitava a examinar controvérsias de direito privado, foi substituído por um Poder que, com competência para a guarda dos direitos individuais contra o arbítrio estatal, passou a ser fiador do novo regime como construção política. Ao declarar a prevalência da Constituição em relação a atos legislativos ou administrativos, a Corte preservava as próprias instituições republicanas, pela contenção dos demais Poderes e pela garantia da sobrevivência dos direitos dos indivíduos.

 

Desafios

 

Mais tarde, o regime militar de 1964 limitou a competência do Supremo, que viu fora de seu alcance atos de atentado aos direitos individuais. Hoje, ao se deparar com desafios semelhantes, como os atos antidemocráticos que culminaram nos ataques físicos à sua sede e à honra de seus integrantes, o Supremo segue resiliente na sua missão de guardião da Constituição e da democracia.

As tribulações de Lula na China - Nelson de Sá (FSP)

 Apostas para Lula na China vão de mais fábricas a menos dólar no comércio


Noticiário no exterior acompanha pressões por acordo comercial, abandono da moeda e investimento industrial

Nelson de Sá
FSP, 28.fev.2023 às 14h40

Daqui a um mês, Lula desembarca em Pequim, e o noticiário se concentra nas perspectivas econômicas.

O South China Morning Post produziu extensa reportagem, ouvindo analistas ligados a instituições chinesas, sobre as perspectivas de avanço num acordo comercial com o Mercosul, que tanto Lula como Xi Jinping defenderam nesta virada de ano.

Em suma, o eventual "acordo de livre comércio da China na América do Sul terá 'impacto claro', mas pode irritar os Estados Unidos ao buscar oportunidades em seu 'quintal'" (abaixo) e acentuar a "competição" entre Pequim e Washington.

O jornal anota que, ano passado, "os EUA lançaram a Parceria das Américas, para laços comerciais, quando o Brasil levantou a ideia do acordo de livre comércio China-Mercosul". A Parceria foi formalizada dias antes da recente visita de Lula a Washington —com outros latino-americanos, não o Brasil.

Outro foco são os eventuais negócios bilaterais em yuan, não mais dólar, com o anúncio pelo Banco Popular da China, o BC chinês, da assinatura de "um memorando de entendimento sobre estabelecer acordos de compensação" com o BC brasileiro, divulgado por agências.

"O estabelecimento de tais acertos para o renminbi ou yuan seria benéfico para as transações transfronteiriças e promoveria ainda mais o comércio bilateral e a facilitação do investimento", justificou o banco.

Paralelamente, sites como Guancha e Huanqiu (Global Times) saúdam a proposta de uma moeda de comércio Brasil-Argentina, também para contornar o dólar.

Por fim, segue a negociação para a montadora chinesa de carros elétricos BYD, maior concorrente da Tesla, assumir a fábrica da Ford na Bahia, abandonada pela montadora americana quando deixou o país há dois anos.

A mídia chinesa, como a brasileira, vem noticiando desde novembro o "memorando de entendimento" entre o governo baiano e a BYD, em portais como Caijing e Sina Finance.

Há duas semanas, a cobertura setorizada chinesa publicou que, em paralelo à negociação no Brasil, a Ford está conversando com a BYD para vender a fábrica que está abandonando no Sarre, na Alemanha. A governante local apoia.
(…)

Sergio Florencio sobre a tragédia da revolução iraniana

O drama iraniano. Sublevação social, radicalização política e nuclearização. 

(1ª Parte)

 

Sergio Abreu e Lima Florencio

 

Com mais de quatro décadas de existência, a Revolução Iraniana surpreende e abala o mundo. Na sociedade civil, por mais de cinco meses, movimento de protesto contra a tortura seguida de morte de uma jovem curda assumiu proporções de sublevação social, com milhares de manifestantes nas principais cidades do país. Na política, o fortalecimento dos Guardas Revolucionários e a radicalização do Presidente Ibrahim Raizi reeditaram a trajetória de violenta repressão, com o  apoio da hierarquiateocrática e a oposição dos presidentes reformistasMohammad Khatami e Hassan Rouhani. No campo estratégico, a desastrosa decisão de Trump de retirar os EUA do Acordo Nuclear teve perigoso desdobramento: provocou duras sanções; fortaleceu os radicais; ampliou o enriquecimento de urânio; e aproximou o país da capacidade de fabricar armamento nuclear. 


Sublevação social

A onda de protestos que varre o Irã, desde setembro de 2022, teve origem na trágica tortura e morte de Mahsa Amini, presa pela banalidade do uso impróprio do véu islâmico, e sob custódia da polícia. Esses levantes têm relevantes paralelos históricos: a Revolução Constitucionalista de 1906 e o movimento nacionalista de Mossadegh em 1951. Nos anos recentes, eles são também a reedição de movimentos de contestaçãoa cada dez anos, desde o protesto, em 1999, de estudantes contra o fechamento de um jornal reformista. Em 2009, o  Movimento Verde, com o apoio de uma classe média indignada com as eleições fraudadas, se insurgiu contra o então Presidente Mahmoud Ahmadinejad, e clamaram por novas eleições. Em 2019, novas revoltas eclodiram, em protesto contra o aumento dos preços de combustíveis e pão.

A sublevação atual tem a singularidade de reunir amplo espectro de classes sociais, sob o lema “Mulheres, Vida e Liberdade”. A condenação da violenta repressão conta com apoios expressivos: importantes comerciantes do Bazar; o líder do parlamento Ali Larijani; o ex-Presidente reformista Khatami; e até mesmo Islamic Republicjornal fundado por KhameneiApesar do forte apoio popular e político, é remota a possibilidade de êxito da sublevação a curto prazo

Radicalização política

Após dois presidentes de corte moderado e reformista - Khatami e Rouhani -  atual governo de Ebrahim Raisi retrocedeu à política  repressiva de Ahmadinejad. 

Esse retrocesso é alimentado pelo efeito nefasto das sanções internacionais sobre a economia e o sistema político. Ao proibirem o Irã de exportar petróleo, as sanções acabam alimentando o comércio ilícito, praticado não pelo governo, mas pelo Corpo dos Guardas Revolucionários Iranianos (IRGC). Assim, dotados de grande poder econômicoos Guardas Revolucionários se transformaram em atores com enorme peso político, o que amplia a radicalização. 

Pressão demográfica, urbanização acelerada, crescimento econômico excludente e repressão política desenham o atual perfil da sociedade iraniana. Enquanto em 1976 o Irã tinha 34 milhões de habitantes, metade vivendo em áreas rurais, em 2016 a população atingia 80 milhões, sendo 75% urbana. Ao mesmo tempo, o percentual de jovens revelou crescimento expressivo e a população universitária se elevou de forma assustadora, bem como a participação de mulheres. 

Diante desse perfil, a resposta do atual regime tem sido um mix de radicalização domésticde apoio a grupos extremistas na região. Khameneni, com 83 anos e saúde precária, acredita que as medidas liberalizantes adotadas pelo antigo regime do Xá aceleraram sua queda. Como não quer repetir esse erro, Khamenei aposta na repressão violentacom o legado de mais de 500 mortos nos últimos cinco meses


Nuclearização

Se, na vertente doméstica, a desestabilização é visível nas manifestações de massa contra arepressão e na hegemonia política dos radicais liderados pelo Presidente Raisi, na vertente externa o Irã ameaça a região com o apoio armado a movimentos de insurreição e abala o mundo com o programa nuclear. É preciso ver em perspectiva história e com naturalidade essas duas vertentes da política externa iraniana. 

Ameaçada pelas monarquias conservadoras do Golfo e pelos EUA, a Revolução, desde seu nascimentoteve como melhor defesa o ataque, com o objetivo maior de sobrevivência. Até hoje, essa estratégia inspira o apoio armado a movimentos de contestação:o Hamas em Israel; o Hezbollah no Líbano; e os Houthis no Yemen. Na Síria, em contraste, o Irã apoia o status quo do Presidente Assad.

Essa “ética do ataque” está no DNA da Revolução. Mas vem sendo agravada, desde 1979, por uma política externa norte-americana de regime changeincapaz de reconhecer que o regime iraniano é irreversível. Os erros históricos dos EUA foram magnificados por Bush, com a destruidora invasão do Iraque em 2003, e pela sequência de desastres provocados por Trump: a retirada norte-americana do Acordo Nuclear em 2018; a política de maximum pressure sobre o Irã; e a terceirização do papel dos EUA no Oriente Médio, em favor da Arábia Saudita, Emirados Árabes e Israel. 

O Irã tem uma longa história de convulsão social e radicalismo políticoMas foi também o berço de invejável patrimônio religioso, cultural e científicoda humanidade. Os EUA só têm olhos para aquela primeira dimensão. Isso agrava os problemas domésticos e alimenta o principal impasse da política externa norte-americana na região – a Revolução Iraniana.