O drama iraniano. Sublevação social, radicalização política e nuclearização.
(1ª Parte)
Sergio Abreu e Lima Florencio
Com mais de quatro décadas de existência, a Revolução Iraniana surpreende e abala o mundo. Na sociedade civil, por mais de cinco meses, movimento de protesto contra a tortura seguida de morte de uma jovem curda assumiu proporções de sublevação social, com milhares de manifestantes nas principais cidades do país. Na política, o fortalecimento dos Guardas Revolucionários e a radicalização do Presidente Ibrahim Raizi reeditaram a trajetória de violenta repressão, com o apoio da hierarquiateocrática e a oposição dos presidentes reformistasMohammad Khatami e Hassan Rouhani. No campo estratégico, a desastrosa decisão de Trump de retirar os EUA do Acordo Nuclear teve perigoso desdobramento: provocou duras sanções; fortaleceu os radicais; ampliou o enriquecimento de urânio; e aproximou o país da capacidade de fabricar armamento nuclear.
Sublevação social
A onda de protestos que varre o Irã, desde setembro de 2022, teve origem na trágica tortura e morte de Mahsa Amini, presa pela banalidade do uso impróprio do véu islâmico, e sob custódia da polícia. Esses levantes têm relevantes paralelos históricos: a Revolução Constitucionalista de 1906 e o movimento nacionalista de Mossadegh em 1951. Nos anos recentes, eles são também a reedição de movimentos de contestação, a cada dez anos, desde o protesto, em 1999, de estudantes contra o fechamento de um jornal reformista. Em 2009, o Movimento Verde, com o apoio de uma classe média indignada com as eleições fraudadas, se insurgiu contra o então Presidente Mahmoud Ahmadinejad, e clamaram por novas eleições. Em 2019, novas revoltas eclodiram, em protesto contra o aumento dos preços de combustíveis e pão.
A sublevação atual tem a singularidade de reunir amplo espectro de classes sociais, sob o lema “Mulheres, Vida e Liberdade”. A condenação da violenta repressão conta com apoios expressivos: importantes comerciantes do Bazar; o líder do parlamento Ali Larijani; o ex-Presidente reformista Khatami; e até mesmo o Islamic Republic, jornal fundado por Khamenei. Apesar do forte apoio popular e político, é remota a possibilidade de êxito da sublevação a curto prazo.
Radicalização política
Após dois presidentes de corte moderado e reformista - Khatami e Rouhani - o atual governo de Ebrahim Raisi retrocedeu à política repressiva de Ahmadinejad.
Esse retrocesso é alimentado pelo efeito nefasto das sanções internacionais sobre a economia e o sistema político. Ao proibirem o Irã de exportar petróleo, as sanções acabam alimentando o comércio ilícito, praticado não pelo governo, mas pelo Corpo dos Guardas Revolucionários Iranianos (IRGC). Assim, dotados de grande poder econômico, os Guardas Revolucionários se transformaram em atores com enorme peso político, o que amplia a radicalização.
Pressão demográfica, urbanização acelerada, crescimento econômico excludente e repressão política desenham o atual perfil da sociedade iraniana. Enquanto em 1976 o Irã tinha 34 milhões de habitantes, metade vivendo em áreas rurais, em 2016 a população atingia 80 milhões, sendo 75% urbana. Ao mesmo tempo, o percentual de jovens revelou crescimento expressivo e a população universitária se elevou de forma assustadora, bem como a participação de mulheres.
Diante desse perfil, a resposta do atual regime tem sido um mix de radicalização doméstica e de apoio a grupos extremistas na região. Khameneni, com 83 anos e saúde precária, acredita que as medidas liberalizantes adotadas pelo antigo regime do Xá aceleraram sua queda. Como não quer repetir esse erro, Khamenei aposta na repressão violenta, com o legado de mais de 500 mortos nos últimos cinco meses.
Nuclearização
Se, na vertente doméstica, a desestabilização é visível nas manifestações de massa contra arepressão e na hegemonia política dos radicais liderados pelo Presidente Raisi, na vertente externa o Irã ameaça a região com o apoio armado a movimentos de insurreição e abala o mundo com o programa nuclear. É preciso ver em perspectiva história e com naturalidade essas duas vertentes da política externa iraniana.
Ameaçada pelas monarquias conservadoras do Golfo e pelos EUA, a Revolução, desde seu nascimento, teve como melhor defesa o ataque, com o objetivo maior de sobrevivência. Até hoje, essa estratégia inspira o apoio armado a movimentos de contestação:o Hamas em Israel; o Hezbollah no Líbano; e os Houthis no Yemen. Na Síria, em contraste, o Irã apoia o status quo do Presidente Assad.
Essa “ética do ataque” está no DNA da Revolução. Mas vem sendo agravada, desde 1979, por uma política externa norte-americana de regime change, incapaz de reconhecer que o regime iraniano é irreversível. Os erros históricos dos EUA foram magnificados por Bush, com a destruidora invasão do Iraque em 2003, e pela sequência de desastres provocados por Trump: a retirada norte-americana do Acordo Nuclear em 2018; a política de maximum pressure sobre o Irã; e a terceirização do papel dos EUA no Oriente Médio, em favor da Arábia Saudita, Emirados Árabes e Israel.
O Irã tem uma longa história de convulsão social e radicalismo político. Mas foi também o berço de invejável patrimônio religioso, cultural e científicoda humanidade. Os EUA só têm olhos para aquela primeira dimensão. Isso agrava os problemas domésticos e alimenta o principal impasse da política externa norte-americana na região – a Revolução Iraniana.