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terça-feira, 4 de maio de 2010

Politica nuclear do Brasil -- destacando alguns pontos

Segue aqui o discurso do Ministro Celso Amorim na 8ª Conferência de Revisão do TNP, atualmente em curso de realização em Nova York.
Mais abaixo destaco apenas alguns trechos, com questionamentos ocasionais.
Paulo Roberto de Almeida

Discurso do Ministro Celso Amorim na 8ª Conferência de Revisão do TNP
Nova York, 3 de maio de 2010

Embaixador Cabactulan, Presidente da Conferência de Revisão,
Embaixador Sergio Duarte, Subsecretário-Geral para Assuntos de Desarmamento,
Senhoras e Senhores,

Senhor Presidente,
Gostaria de parabenizá-lo por presidir esta Conferência. O Senhor pode contar com toda a colaboração da minha delegação.
O Tratado de Não-Proliferação é intrinsecamente injusto, pois divide o mundo entre “os que têm” e os que “não têm”.
Ele é uma expressão dos desequilíbrios do sistema internacional. É o produto de uma era na qual o poderio militar, principalmente o das armas nucleares, era a principal, senão a única, fonte de prestígio e de poder político.
O próprio fato, lamentável, de que os membros permanentes do Conselho de Segurança são justamente os cinco Estados nucleares reconhecidos pelo Tratado reforça a percepção de que armas nucleares são um meio para obter proeminência política.
Por mais injusto que o Tratado seja, o TNP contém no Artigo VI a semente de sua própria auto-correção. No entanto, a inobservância do Artigo VI perpetua um desequilíbrio destrutivo.
Quarenta anos após a entrada em vigor do TNP, o objetivo fundamental de um mundo livre de armas nucleares continua sendo pouco mais do que uma miragem.
O Brasil está convencido de que a melhor garantia para a não-proliferação é a total eliminação das armas nucleares.
Enquanto alguns Estados possuírem armamentos nucleares, haverá outros tentados a adquiri-los ou desenvolvê-los.
Podemos lamentar esta lógica perversa, mas não podemos negá-la facilmente.

Senhor Presidente,

Há uma década, o Brasil participou, pela primeira vez, de uma Conferência de Revisão.
Naquela ocasião, assim como hoje, a delegação brasileira tinha consciência de que, ao ratificar o Tratado, o Congresso brasileiro estabelecia a obrigação do Governo de buscar progresso real na área de desarmamento nuclear.
No ano 2000, as negociações com os Estados detentores de armas nucleares, lideradas principalmente pela Coalizão da Nova Agenda, resultaram em um programa de ação prospectivo e realista, que passou a ser conhecido como “os treze passos para o desarmamento”.
Dentre outras medidas, a Conferência estabeleceu um compromisso inequívoco dos Estados detentores de armas nucleares com a total eliminação de seus arsenais nucleares.
É triste observar que esta e tantas outras promessas ainda não foram cumpridas.
Mesmo enquanto continuamos lutando pela implementação desses passos, é preciso avançar para além dos objetivos do ano 2000.
Isso é exatamente o que a Coalizão da Nova Agenda previu quando apresentou um documento com 22 recomendações na área de desarmamento nuclear.
Um compromisso claro, por parte dos Estados detentores, de não-primeiro uso de armas nucleares certamente daria mais credibilidade ao Tratado de Não-Proliferação.
Apresentar garantias de segurança juridicamente vinculantes aos Estados não-nucleares também.
Os Estados detentores de armas nucleares também deveriam renunciar ao aprimoramento ou desenvolvimento de novos artefatos nucleares.

Senhor Presidente,

No último ano, os Estados Unidos e a Rússia comprometeram-se com um mundo livre de armas nucleares.
O Presidente Obama, no seu discurso em Praga, deu nova motivação àqueles que buscam a total eliminação dos arsenais nucleares.
O novo Acordo START foi um passo necessário, ainda que limitado, nessa direção.
Para o Brasil, são bem-vindos os avanços conceituais contidos na Revisão da Postura Nuclear dos Estados Unidos, principalmente com relação a garantias negativas de segurança e ao compromisso do Governo dos Estados Unidos em buscar a ratificação do Tratado de Proibição Completa de Testes Nucleares (CTBT).
Há apenas três semanas, em Washington, líderes de mais de quarenta países confirmaram sua disposição de engajar-se em temas relativos à segurança nuclear.
Porém, os participantes da Conferência também foram lembrados, por mais de um palestrante, inclusive o Presidente Lula, de que a forma mais eficaz de reduzir os riscos de mau uso de materiais nucleares por agentes não-estatais é a eliminação total e irreversível de todos os arsenais nucleares.

Por mais que sejam importantes, medidas unilaterais e episódicas não nos levarão a eliminar as armas nucleares.
O desarmamento nuclear requer passos amplos e verificáveis, bem como um cronograma preciso e realista.
Os argumentos para justificar a posse de armas nucleares durante a Guerra Fria, se em algum momento foram válidos, não podem mais ser sustentados.
Todos concordam que os dias da destruição mútua assegurada [mutually assured destruction – MAD] há muito se foram. Paradoxalmente, a mentalidade daquela época parece perdurar.
Armas nucleares não têm utilidade contra as ameaças de segurança do mundo de hoje.
Não servem para combater os crimes transnacionais, para prevenir conflitos étnicos e religiosos, nem para reprimir a guerra cibernética ou o terrorismo.
As armas nucleares prejudicam a segurança de todos os Estados, inclusive daqueles que as possuem.
Um mundo em que a existência de armas nucleares continua a ser aceita é intrinsecamente inseguro.
Os riscos de confiar em sistemas de “comando e controle” são conhecidos de todos os que estudaram a Guerra Fria.
Foram apontados por especialistas, inclusive por pessoas que ocuparam cargos elevados nas hierarquias de comando nuclear.
Os esforços para evitar a proliferação nuclear devem ser conduzidos com absoluta seriedade.
No entanto, conter a disseminação do conhecimento humano é uma tarefa difícil, se não impossível.
A fé na eliminação das armas nucleares em um futuro próximo é o que nos oferece a garantia máxima contra a proliferação nuclear.

Não se deve negar o direito a atividades nucleares pacíficas a nenhum país, contanto que tal país aja de acordo com o TNP e com os requisitos da AIEA acordados.
As preocupações legítimas com a não-proliferação não devem impedir o exercício do direito a atividades nucleares pacíficas.
Isso não diminui a importância de prevenir violações e assegurar que todos os membros do TNP cumpram suas obrigações.
As eventuais dúvidas acerca da implementação do Tratado devem ser resolvidas, sempre que possível, por meio do diálogo e da negociação.
Não podemos esquecer que o TNP é parte do objetivo maior da comunidade internacional de promover a paz, conforme os princípios e os propósitos da Carta da ONU.

Senhor Presidente,

Dez anos antes de aderir ao TNP, o Brasil consagrou em sua Constituição a proibição de atividades nucleares para fins não-pacíficos.
Mesmo antes disso, o Brasil e a Argentina haviam-se engajado em um processo sem precedentes de construção de confiança, por meio da implementação de um sistema abrangente de controle e contabilidade de materiais nucleares.
Estamos convencidos de que o modelo brasileiro-argentino de cooperação deve ser uma fonte de inspiração para outros países e regiões.
O Brasil também se orgulha de ser parte do Tratado de Tlatelolco, que estabeleceu a primeira zona livre de armas nucleares em parte habitada do planeta.
Estamos convencidos de que o estabelecimento de zonas livres de armas nucleares, especialmente em regiões com focos de tensão, como o Oriente Médio, pode contribuir para a paz e a segurança.

Senhor Presidente,

Quaisquer compromissos adicionais àqueles estabelecidos no TNP devem ser considerados à luz da implementação geral do Tratado, particularmente no que diz respeito ao desarmamento nuclear.
Estamos inteiramente conscientes de que o desarmamento é um processo complexo, caro e demorado.
Porém, é uma decisão tão política quanto a decisão de não proliferar.
O mundo só estará a salvo quando todos os países considerarem que estão sendo tratados com eqüidade e respeito; quando suas vozes forem ouvidas e as causas dos conflitos, como a pobreza e a discriminação, forem superadas.
A presença de armas nucleares apenas agrava esses problemas.
As armas nucleares geram instabilidade e insegurança.
Aprofundam o sentido de injustiça.
Não esperemos mais cinco anos para traduzir nosso objetivo comum de um mundo sem armas nucleares em ações políticas concretas.

Obrigado.

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Destaques (PRA):

1) "O Tratado de Não-Proliferação é intrinsecamente injusto, pois divide o mundo entre “os que têm” e os que “não têm”. Ele é uma expressão dos desequilíbrios do sistema internacional. É o produto de uma era na qual o poderio militar, principalmente o das armas nucleares, era a principal, senão a única, fonte de prestígio e de poder político."
PRA: De fato, é um tratado injusto, como muitos outros foram feitos no mundo. Ele é a mais perfeita expressão do mundo como ele é, não do mundo que gostaríamos como fosse. Infelizmente, essa é a realidade, nem sempre o que gostaríamos é possível, e nem sempre o que é possível é do nosso agrado.
Ressalvo a questão do fato de ser o poder nuclear "a única, fonte de prestígio e de poder político." Apenas em parte: para chegar a ele é necessário uma série de outras capacitações que apenas países ou economias avançadas dispõem. Ou seja, ele é a expressão de outros poderes e outras condições, e não existe no vazio.

2) "O Brasil está convencido de que a melhor garantia para a não-proliferação é a total eliminação das armas nucleares. Enquanto alguns Estados possuírem armamentos nucleares, haverá outros tentados a adquiri-los ou desenvolvê-los. Podemos lamentar esta lógica perversa, mas não podemos negá-la facilmente."
PRA: Não tenho certeza de que o Brasil está convencido, pois o tema ainda não foi suficientemente debatido pela sociedade e pelos formadores de opinião. Mas o fato é que o gênio saiu da garrafa e fica difícil enfiá-lo dentro outra vez. Agora dizer que por causa disso outros buscarão as armas nucleares não tem a ver com o gênio fora da garrafa, ou com o conhecimento científico em si, ou a capacidade industrial de produzir um artefato atômico, mas com o desejo de certas elites de recorrerem também a uma arma terrível como meio de "solução de conflitos", ou de dissuasão, preservando a mesma lógica que é denunciada.

3) "O desarmamento nuclear requer passos amplos e verificáveis, bem como um cronograma preciso e realista. Os argumentos para justificar a posse de armas nucleares durante a Guerra Fria, se em algum momento foram válidos, não podem mais ser sustentados. Todos concordam que os dias da destruição mútua assegurada há muito se foram. Paradoxalmente, a mentalidade daquela época parece perdurar. Armas nucleares não têm utilidade contra as ameaças de segurança do mundo de hoje."
PRA: O problema aqui parece ser da tradicional oposição entre Realpolitk e Idealpolitik. Os militares, que não são pagos para serem filósofos, preferem ficar com a primeira opção. Nações que se auto-atribuiram uma missão salvadora preferem apoiar mais seus militares do que seus filósofos, isso é conhecido desde Kant, ou talvez desde Platão, passando por Maquiavel. Pretender o contrário é cair no idealismo, que pode até ser interessante no plano acadêmico, mas parece não se encaixar muito bem no espírito de certos governantes. O problema da humanidade está em saber se certos detentores da arma de última instância são propensos a praticar uma política civilizada, de liberdades e promoção de direitos humanos, ou uma política de agressivo imperialismo, feito de expansão truculenta e submissão das pessoas. Acredito que haja uma diferença FUNDAMENTAL entre os imperialismos britânico e americano, e os expansionismos alemão e japonês do começo do século 20, ou o regime soviético de escravidão dos homens. Acredito, também, que armas nas mãos de certos malucos que existem por aí seria uma loucura rematada. Infelizmente temos de saber separar a dimensão moral da governança política. Não se pode equiparar, para ser concreto, os EUA ao atual governo iraniano. Acho que fui claro.

4) "A fé na eliminação das armas nucleares em um futuro próximo é o que nos oferece a garantia máxima contra a proliferação nuclear."
PRA: Não tenho certeza de que a fé, um atributo essencialmente voluntarista e pessoal, seja um substituto a uma análise racional da realidade, e para o exercício correto da razão. Ninguém controla ou sabe determinar o que é a fé; mas podem-se utilizar alguns parâmetros lógicos para analisar a realidade e daí determinar políticas públicas.

5) "Não se deve negar o direito a atividades nucleares pacíficas a nenhum país, contanto que tal país aja de acordo com o TNP e com os requisitos da AIEA acordados. As preocupações legítimas com a não-proliferação não devem impedir o exercício do direito a atividades nucleares pacíficas. Isso não diminui a importância de prevenir violações e assegurar que todos os membros do TNP cumpram suas obrigações. As eventuais dúvidas acerca da implementação do Tratado devem ser resolvidas, sempre que possível, por meio do diálogo e da negociação."
PRA: Justamente, remeto à dimensão moral dos julgamentos, tal como explicitado acima. Se todos os países são colocados no mesmo patamar de racionalidade e de comportamento previsível, tudo seria mais fácil. Mas é ingenuidade acreditar que isso ocorra. E o que acontece quando certos interlocutores não se conformam às regras do diálogo e da negociação? Insistir mais levará a resultados credíveis? Esse foi o dilema dos dirigentes europeus em 1938 e 1939 ao contemporizar com Hitler, os chamados appeasers, os pacificadores. Deu no que deu, ou seja, algumas dezenas de milhões de mortos...

6) "O mundo só estará a salvo quando todos os países considerarem que estão sendo tratados com eqüidade e respeito; quando suas vozes forem ouvidas e as causas dos conflitos, como a pobreza e a discriminação, forem superadas. A presença de armas nucleares apenas agrava esses problemas. As armas nucleares geram instabilidade e insegurança."
PRA: O mundo não é um lugar homogêneo, e ele não é feito de governantes filósofos ou esclarecidos, alguns aliás, sequer chegam perto disso. Esperar que todas as causas de conflitos sejam superadas para pacificar o mundo, pelos meios disponíveis, pode ser altamente idealista, ou ingênuo. Duvidoso que as armas nucleares agravem o problema: alguns analistas dizem que elas, justamente, evitaram conflitos de corte tradicional. O mundo poderia ter tido muito mais guerras se não fossem as armas nucleares, que atuaram como fatores de contenção, como aliás é o seu objetivo. Mas isso só ocorre na presença de decisores racionais, não de malucos como alguns que existem por aí...
Paulo Roberto de Almeida
(Shanghai, 5 de maio de 2010)

Um comentário:

paulo araújo disse...

Caro

Seus comentários acertaram os alvos. Apenas acrescento que a retórica toda ela está articulada para justificar, taticamente, o apoio ao Irã e, estrategicamente, a recusa do governo brasileiro a "quaisquer compromissos adicionais àqueles estabelecidos no TNP" enquanto o mundo não se desarmar.

Como você escreveu, "Esperar que todas as causas de conflitos sejam superadas para pacificar o mundo, pelos meios disponíveis, pode ser altamente idealista, ou ingênuo." Eu completo, ou pode ser conversa mole para boi dormir, isto é, má fé.

Abs.