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terça-feira, 25 de maio de 2010
“Acordo” nuclear com o Irã - Paulo R. Almeida
Paulo Roberto de Almeida
A análise e as reflexões seguintes me vieram à mente ao ler as declarações de responsáveis políticos e matérias de imprensa (geralmente artigos opinativos de comentaristas políticos) a respeito da questão iraniana e seus desdobramentos, depois da iniciativa turco-brasileira de buscar um “acordo” com o governo iraniano a propósito da política nuclear deste último e seus impasses atuais. O que surpreende, desde o início, é que a maior parte das matérias e comentários foca não tanto o fundo da questão, ou seja, a natureza do programa nuclear iraniano, em si, quanto a qualidade dos novos interlocutores nesse caso específico, o Brasil e a Turquia.
Em outros termos, o que se destacou e se discutiu intensamente foi menos a política nuclear do Irã, enquanto tal, e mais a emergência dos emergentes – com perdão pela redundância –, numa questão que sempre foi considerada terreno de caça exclusivo dos grandes, a saber, a proliferação nuclear (e seus eventuais infratores). Grande parte dos comentários, começar pela própria imprensa brasileira, saudou a “irrupção” de novos atores políticos numa agenda que estaria supostamente monopolizada pelos grandes atores.
Caberia, talvez, deixar, por um momento, a identidade dos personagens envolvidos nesta questão, o presidente Lula e o primeiro-ministro Erdogan, e também a suposta condição dos seus países enquanto “potências emergentes”. Não é isso que estava primariamente em causa no dossiê iraniano, não é esse o problema que deveria ocupar a atenção dos observadores, e sim a natureza do processo, ou seja, o teor mesmo do acordo supostamente alcançado.
Aliás, essa qualificação de “potência emergente” pode ter algum sentido na realidade, mas no momento ela tem mais conteúdo jornalístico do que propriamente diplomático: afinal em que se distingue uma “potência emergente” de um país normal?; talvez pela sua suposta capacidade de “influenciar” de modo mais decisivo do que um “país normal” a vida internacional, ou seja, a agenda dos principais organismos internacionais de relacionamento inter-estatal. Se essa capacidade é comprovada, então eles se tornam de alguma forma emergentes, mas isso não tem tanto a ver com o tamanho, em si, e sim com a capacidade de iniciativa e de influência dos países em causa.
Consideremos, por hipótese, que as iniciativas tomadas por Brasil e Turquia pudessem ter sido sugeridas, digamos, por dois países menores, tipo Tuvalu e República Centro-Africana, eventuais membros temporários do CSNU. Estariam elas recebendo o mesmo nível de atenção por parte da imprensa? Talvez não, devido à “pequena capacidade de influência internacional” dos interlocutores em questão. Mas não deveria causar nenhuma espécie esse tipo de inversão, pois supostamente o que interessa, para o encaminhamento do problema, é a qualidade da interlocução e o realismo da proposição, do ponto de vista dos agentes intervenientes em torno do problema em causa, qual seja: a resolução do conflito entre o Irã, de um lado, e a AIEA e o CSNU, de outro (este eventualmente representado pelo P5+1, ou seja, os cinco membros permanentes mais a Alemanha).
Se a intenção é efetivamente a de resolver um problema objetivo, com contornos muito bem definidos – quais sejam, a natureza das atividades de enriquecimento de urânio por parte do Irã e sua utilização ulterior –, a identidade dos “propositores” não deveria ter a mínima importância: se os dois países citados fossem, ou não, membros temporários do CSNU, suas propostas, objetivas como deveriam ser, tem a mesma chance de serem consideradas em qualquer arranjo bilateral com o Irã, ou no plano plurilateral ou multilateral, do que quaisquer outras propostas sugeridas por interlocutores desejosos de restabelecer condições de normalidade entre o Irã e as entidades supracitadas.
Admitida essa hipótese, o suposto “acordo” alcançado em Teheran, em meados de maio, deveria ser avaliado, não tanto com base na condição dos interlocutores, mas com base nos critérios relevantes para tal efeito, quais sejam: a capacidade de o Irã atender às demandas da AIEA e da comunidade internacional (neste caso identificada com os cinco membros permanentes do CSNU e os países que gravitam em volta). Se o acordo atender a esses padrões, ele pode entrar na agenda internacional e servir de base para novos desenvolvimentos em torno da questão iraniana, independentemente de quem o tenha formulado ou proposto.
Dito isto, apreciaria ler matérias na imprensa que se refiram, exatamente, ao teor do acordo, não à qualidade de seus propositores. Como se diz, deve-se prestar mais atenção na mensagem do que no seu mensageiro. Este é o critério básico sob o qual deve ser avaliado o “acordo” de Teheran.
Shanghai, 25 de maio de 2010
5 comentários:
Esse, sem dúvida, é o ponto. O que os fatos autorizam é somente concluir que o Irã declarou que, sob determinadas condições, aceitaria a troca de certa quantidade de urânio por outra.
Não há nenhuma palavra na Declaração de Teerã a respeito da contrapartida do Irã de abrir-se sem subterfúgios às inspeções estabelecidas nos acordos de salvaguardas com a AIEA, previstas no TNP. Essa é a questão de fundo que não está em discussão na imprensa, como você bem observa no post. Celso Amorim, ignorando o aviso prudente da sabedoria popular que diz que o caminho do inferno é pavimentado por boas intenções, declarou à imprensa que as boas intenções do Irã nessa questão de fundo estariam implícitas na Declaração. Sei.
Aliás, o governo iraniano cuidou de logo dirimir quaisquer dúvidas a respeito das suas reais intenções com manifestações imediatamente posteriores à assinatura. Os representantes do governo iraniano foram cristalinos na afirmação de que não se deveria buscar qualquer relação entre a Declaração e a continuidade do programa de enriquecimento de urânio.
Caro Professor,
Não me parece adequado que os meios de comunicação não especializados no assunto devam enfatizar o teor do acordo em detrimento de análises mais gerais, sobretudo, políticas. As partes mais técnicas da negociata teriam seu espaço em publicações especializadas.
Por outro lado, a cobertura com ênfase nos atores do acordo – Brasil, Turquia e Irã – dá conta justamente da questão principal da celeuma iraniana, que não são os aspectos técnicos de um acordo, mas as relações assimétricas de poder entre as nações, as pressões da comunidade internacional sobre o programa nuclear iraniano.
Não temos como ignorar o fato de que as luzes voltadas para o Irã não são fruto de seu programa nuclear em si, mas, principalmente, de interesses geopolíticos – sem dúvida o petróleo aqui incluído - e da posição hierárquica que o país ocupa no concerto das nações (nesse assunto específico penso na sua inclusão como parte de um eixo do mal).
A discussão de um Oriente Médio livre de armas nucleares ou a acusação de irresponsabilidade do Irã sobre o domínio da tecnologia nuclear é o pano de fundo para a materialização de interesses dos agentes políticos, questão que fica bem clara quando olhamos para Israel - que já possui arsenal atômico – e não vemos nenhuma pressão por parte da comunidade internacional comparável à que o Irã está sofrendo.
A ênfase nas relações entre os atores parece esclarecer mais pontos sensíveis da complexa rede de relações internacionais do que as análises pontuais sobre o teor do acordo, além de serem mais adequadas a publicações não especializadas no assunto.
Gustavo RF,
Você começou bem: falou em negociata, não em negociação. Acho que o termo se aplica, inteiramente.
Quanto ao resto, acho que você se desvia do assunto e sai totalmente do foco da questão, do problema em si, e do meu curto texto criticando os comentários de imprensa justamente por não se concentrarem no principal.
COnsiderar, como você faz, que não seria "adequado que os meios de comunicação não especializados no assunto devam enfatizar o teor do acordo em detrimento de análises mais gerais, sobretudo, políticas", é de uma impropriedade inacreditável.
Imprensa de qualidade pode falar de qualquer problema técnico, de qualquer problema profundo, encontrando as palavras certas para falar dos problemas corretos.
Problema correto é o que estava em causa: ou seja, as obrigações do Irã sob o TNP de colocar suas atividades nucleares sob salvaguardas.
Não importa se era o Kazaquistão, Tuvalu ou Luxemburgo que estavam conduzindo "negociatas" para resolver o problema. O que se deveria fazer, atores e observadores (isto é, a imprensa) era focar no problema, não na qualidade dos mensageiros, se grandes potências ou paisecos de segunda ordem.
Revista especializada cuida de pesquisa; imprensa cuida da agenda mundial. As simple as that.
Agora ler você escrevendo que a "questão principal da celeuma iraniana, (..) não são os aspectos técnicos de um acordo, mas as relações assimétricas de poder entre as nações, as pressões da comunidade internacional sobre o programa nuclear iraniano", é de uma cegueira exemplar, digna de um prêmio para deficientes visuais.
Você está simplesmente invertendo todos os dados da questão, pois segundo você se não houvesse pressões "assimétricas" tudo estaria muito bem, e o mundo caminharia para um futuro de paz e de tranquilidade, só perturbado por essas grandes potências perversas que querem dominar nações emergentes.
Seu comentário me surpreende pela cegueira demonstrada na análise da questão.
Você deveria ler mais, não teoria de RI, mas um pouco de história lhe faria bem.
A propósito: não recomendo Hobsbawm...
Paulo Roberto de Almeida
Caro PRA,
muito obrigado pela resposta. É bom ver que aqui nesse blog as discussões não fluem como diálogos de surdos.
“Você está simplesmente invertendo todos os dados da questão, pois segundo você se não houvesse pressões "assimétricas" tudo estaria muito bem, e o mundo caminharia para um futuro de paz e de tranquilidade, só perturbado por essas grandes potências perversas que querem dominar nações emergentes.”
Não acredito serem as grandes potências perversas dominadoras de nações emergentes. Volto a afirmar – talvez ainda tomado pela cegueira – que a questão nuclear iraniana não se deve ao programa nuclear iraniano em si, mas a uma argumentação bem fundada nas aparências que transforma o enredo em embate entre mocinhos e bandidos (p5 +1 e Irã), promovendo a total inversão dos valores, ou seja, os mocinhos sem legitimidade para cuidar da questão acusam e ameaçam o bandido, que, por sua vez, possui legitimidade para desenvolver um programa nuclear para fins pacíficos.
Nessa linha de raciocínio é que trago à tona a questão das relações entre as nações e o exemplo de Israel, não por um maniqueísmo bons x maus de minha parte, mas justamente pela aparência de embate entre bons e maus em que se configura a farsa.
E ainda nesse sentido defendo uma posição difícil de defender – a da mídia em tempos de eleição – de que a abordagem dos mensageiros e não propriamente da mensagem é sim de certa forma mais interessante. Na medida em que a primeira tenta desnudar as relações/interesses dos envolvidos, enquanto a segunda redundaria em avaliações de aspectos técnicos e pontuais de um acordo.
Gustavo RF,
Você continua insistindo na ficção literária. Bem, é seu direito.
Vou apenas destacar uma afirmação sua, sem comentários meus.
"...bandido, que, por sua vez, possui legitimidade para desenvolver um programa nuclear para fins pacíficos".
Bem, acho que você pode continuar ostentando suas crenças. Eu fico com a modesta racionalidade de quem observa a realidade...
Paulo Roberto de Almeida
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