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terça-feira, 25 de maio de 2010

Domesticando a arrogancia (nem sempre é possivel)

Hubris: reflexões sobre certas concepções do mundo
Paulo Roberto de Almeida

É muito comum, entre pessoas ou grupos que estão ascendendo em riqueza e poder, o excesso de confiança em sua própria capacidade de mudar o contexto no qual estão inseridos e influenciar outros atores e o mundo à sua volta. A isso se chama, numa adaptação do vocábulo mais frequentemente usado em inglês, assertividade. Em outras situações, pode ser também uma manifestação de arrogância.
Os mesmos sentimentos, ou posturas, podem ser exibidos por países, ou, mais exatamente, por governos, ou ainda mais precisamente, por líderes políticos de economias que estão crescendo rapidamente e que pretendem, em conseqüência, dar demonstrações dessa nova condição exercitando seus músculos na cena internacional. Essa nova postura pode ser exercida em duas direções. De um lado, para o “bem”, ou seja, para estimular a cooperação entre os países e os povos, reforçando os vínculos de solidariedade, ao mesmo tempo que se oferecem garantias de paz e segurança à comunidade internacional. Mas ela também pode se apresentar como uma manifestação do “mal”, isto é, voltando-se para projetos de conquista e de dominação que deterioram o ambiente de paz e segurança no mundo, quando não resultam diretamente em guerras e destruições, ou até em algo pior: genocídios e violações generalizadas dos direitos humanos.
Esse tipo de situação é mais comum do que se pensa nas relações internacionais e, embora o mundo atual seja caracterizado bem mais pela força do direito do que pelo direito da força, ele não está isento de novos exemplos do gênero. A Alemanha e o Japão, pelo menos duas vezes, globalmente (e outras vezes regional ou localmente), a partir do final do século 19 e até a primeira metade do século 20, são os casos típicos que ilustram perfeitamente bem este ponto. Registre-se que ambos seriam, como foram, candidatos a perversidades reincidentes se não tivessem sido contidos pelas superpotências, ou pela única verdadeira potência que emergiu no século 20. Não é preciso relembrar aqui os sofrimentos imensos que essas duas potências arrogantes impuseram a seus próprios povos em guerras de conquista, mas sobretudo aos povos de países vizinhos, em função desse comportamento agressivo, colonialista, militarista, racista, terrivelmente destrutivo, demonstrado por ambas em várias ocasiões e em diferentes direções. Trata-se, obviamente, de casos limites, mas são apenas os exemplos mais recentes de uma tendência que foi registrada na história humana de forma recorrente em muitas ocasiões anteriores.
Um outro sentimento que acompanha também frequentemente essas fases de ascensão pessoal ou nacional é uma espécie de paranóia, derivada de certas teorias conspiratórias. Se trata da sensação de que outros países, mais avançados obviamente, rejeitam o “novo rico” e atuam deliberadamente para impedir a ascensão do emergente. Trata-se de um sentimento mais comum do que se pensa, igualmente, inclusive porque muitas vezes ele não é reconhecido explicitamente, ou então se faz o raciocínio inverso: o sentimento de que é a sua própria ascensão que traz desconforto aos demais, que procuram, assim, barrar o caminho ao emergente. Como isso se dá? As razões são múltiplas, mas algumas são mais comuns.
Quem ostenta, por exemplo, uma noção do comércio internacional como um jogo de soma-zero – algo como uma competição esportiva, em que só um pode ganhar, enquanto o outro perde absolutamente, o que é próximo de uma guerra – tende a atribuir aos outros a iniciativa dos bloqueios e dos constrangimentos: “se eu ganhar, será uma perda para você”, daí o bloqueio, o ato de “chutar a escada”, como diria um conhecido economista paranóico-coreano (não deveria, pois o exemplo de seu país é um claro desmentido a essa tese).
Vejamos o que escreveu um alemão famoso sobre a atitude dos “imperialistas ocidentais” em face da ascensão da Alemanha imperial de antes de 1914 (mas o mesmo poderia ser aplicado à Alemanha do entre-guerras): “O avanço sustentado da Alemanha sobre os mercados mundiais despertou o antagonismo dos velhos países industriais, que sentiram que suas chances nos mercados estavam sendo ameaçadas”. O alemão em questão era Hjalmar Schacht, que depois de conseguir estabilizar o marco alemão na Alemanha de Weimar viria a ser o ministro da economia de Hitler, conduzindo o programa de recuperação econômica pós-crise de 1931 com métodos pouco ortodoxos e pouca consideração pelos direitos humanos.
Não muito longe do Brasil, talvez até no próprio Brasil, já se ouviu o mesmo tipo de “reclamação”: o país começa a crescer e isso “incomoda os outros”, sendo que os outros são, invariavelmente as “velhas potências imperialistas”. Curioso que não se faz o mesmo tipo de crítica em relação à China, por exemplo, que está atuando de forma não muito diferente daquela seguida pelos velhos poderes colonialistas em direção dos “países periféricos” um século atrás, ou mais...
O sentimento de arrogância, a sensação de poder acrescido, a noção de que tudo pode ser feito a partir da vontade individual ou coletiva, desde que o ator emergente se engaje resolutamente na direção de sua maior afirmação no antigo contexto de sua atuação tradicional, pode obscurecer a capacidade de examinar realisticamente uma dada situação, resultando daí aqueles erros de cálculo que em linguagem trivial se menciona como tentativa de “dar um salto maior que a perna”. Também ocorre de a nova situação dar a impressão de ter sido criada pelo mesmo ator no comando ocasional da nova condição, como se tudo aquilo não fosse o resultado, por vezes longo e penoso, de um processo coletivo de acumulação de forcas, de crescimento gradual e paulatino, de aquisição progressiva de novas capacidades.
O sentimento de onipotência, a própria vontade de potência de que falava um filósofo alemão lamentavelmente associado ao nazismo – et pour cause – derivam dos mesmos processos de arrogância, paranóia e entorpecimento da capacidade de medir a “razão das coisas”. O confronto com a realidade não ocorre enquanto houver espaços de crescimento desimpedido, como ocorre em situações de grandes transformações no ambiente externo, local, regional ou internacional. Em algum momento, porém, os limites acabam sendo colocados, seja pelo esgotamento dos próprios recursos internos, seja pela fricção com interesses alheios, por vezes de parceiros mais poderosos ou igualmente agressivos. O despertar para a realidade pode ser brutal.
Nem sempre, “príncipes” conseguem evitar o sentimento de arrogância, o que é compreensível, considerando-se que todos os seus assessores competem para realçar ainda mais suas supostas qualidades e as excelências dos seus governos. Nas antigas tragédias gregas, a hubris era castigada pelos deuses, de forma por vezes exemplar. Na ausência de retenção similar, em nossas modernas sociedades laicizadas, espera-se que os conselheiros do príncipe soem os alertas providenciais, cada vez que o seu mestre e senhor ultrapassar os limites do se pode considerar razoável como manifestação de arrogância. Poucos se arriscam nesse exercício, porém, talvez por considerar que seu senhor e mestre é um verdadeiro Zeus da sabedoria e da onipotência. Sinal que eles também foram contaminados pela hubris que cega...

Paulo Roberto de Almeida
Shanghai, 26 de maio de 2010

Um comentário:

JGould disse...

Um texto muito reflexivo, deveria estar em algum dos "jornalões". Lembra-me a famosa frase de M.L.King;

"No final, nós iremos nos lembrar não das palavras de nossos inimigos, mas do silêncio de nossos amigos"

Abs