Sob o título acima, a revista
Brasileiros (
http://www.revistabrasileiros.com.br/), publicou uma série de matérias sobre a espionagem americana, tal como revelada por Edward Snowden (que pretenderia se asilar no Brasil, ao que parece, que ele julga ser um país amigável a pessoas como ele, já que os companheiros abrigam vários inimigos do Império), entre elas uma entrevista comigo, cujo registro faço abaixo.
Como a revista publicou apenas uma parte de minha entrevista, permito-me publicá-la na íntegra, mais abaixo.
2518. “Documentação
diplomática e acesso público: uma entrevista para a revista
Brasileiros”, Hartford, 12 Outubro 2013,
12 p. Entrevista concedida ao jornalista Gonçalo Silva Junior. Publicado
parcialmente, sob o título de “
Todos os países são hipócritas”, na revista
Brasileiros (Brasília: n. 76, novembro
2013, p. 70-73; ISSN: 1981-5590; link:
http://www.revistabrasileiros.com.br/tags/brasileiros-76/#.Uq_762RDtLQ).
Relação de Publicados n. 1116.
Documentação diplomática e acesso
público:
uma entrevista para a revista Brasileiros
Paulo Roberto de Almeida
Entrevista concedida ao jornalista
1 - Resumidamente, poderia explicar o
trabalho que vocês fizeram para levantar os documentos produzidos pelo governo
americano sobre o Brasil?
PRA: Eu assumi, como
ministro-conselheiro na Embaixada do Brasil em Washington em setembro de 1999,
e ali permaneci até setembro de 2003, atravessando, portanto, a crise das
“ponto.com”, em 2000, as eleições presidenciais desse mesmo ano, que resultaram
na contestada vitória do candidato republicano George W. Bush contra o
democrata, e vice-presidente do então presidente Bill Clinton, Al Gore (que
teve mais votos populares do que Bush, mas perdeu numa decisão da Suprema Corte
que interromper uma recontagem na Florida), e, mais do que tudo, os atentados
terroristas de setembro de 2001, em New York e Washington, bem como a
desastrosa invasão do Iraque pelo novo presidente, em março de 2003. Foram anos
movimentados, e a embaixada ainda acompanhou, muito de perto, o processo de
negociações comerciais hemisféricas em torno do projeto americano da Alca, assim
como o infeliz episódio do afastamento do diretor brasileiro da Organização
para a Proibição das Armas Químicas, embaixador José Mauricio Bustani, processo
conduzido com uma inédita truculência pelos Estados Unidos.
À parte todos os afazeres típicos de uma embaixada, eu
ainda seguia os assuntos financeiros, o que significava acompanhar, em diversas
ocasiões o ministro da Fazenda Pedro Malan e o presidente do Banco Central
Armínio Fraga, em contatos com autoridades americanas, bem como seguir esses
temas no âmbito do FMI e do Banco Mundial, as duas instituições irmãs de
Bretton Woods. Menciono ainda a conclusão do acordo de salvaguardas tecnológicas
com os Estados Unidos sobre lançamento de satélites em Alcântara, infelizmente
sabotado por diversos partidos oposicionistas no Congresso do Brasil, e que
redundou em enorme atraso para o programa espacial brasileiro, em virtude, basicamente,
da curta visão política (e, sem dúvida, também, de muito antiamericanismo) por
parte de diversas forças congressuais.
Não satisfeito com todo esse trabalho, e consoante meu
ânimo acadêmico, sugeri diversas iniciativas ao embaixador Rubens Barbosa, que
as acolheu favoravelmente, entre elas a ideia de fazer reuniões com os
brasilianistas americanos, sob a forma de seminários estruturados em torno dos
estudos sobre o Brasil nos EUA, das quais resultaram, por exemplo, dois livros
de balanço da produção brasilianista em diversas áreas: O Brasil dos brasilianistas (publicado no Brasil em 2202 pela Paz e
Terra) e Envisaging Brazil (publicado
pela Universidade do Wisconsin, em 2005). Mais importante ainda, conhecedor da
imensa riqueza documental contida nos arquivos e instituições americanas sobre
o Brasil, propus a continuidade do valioso trabalho de levantamento e
microfilmagem desses fundos documentais, que tinha sido empreendido nos anos
1980, sobre uma importante parte dos acervos britânico e americano, pelo
sociólogo Luciano Martins, com o apoio da Fapesp e do próprio Ministério das
Relações Exteriores.
Dei início ao trabalho de levantamento dos fundos e
instituições, com destaque para o NARA, os National Archives and Records
Administration, ou seja, o Arquivo nacional americano, onde estão depositados
todos os documentos históricos, não apenas diplomáticos, relativos não só à
administração central do governo americano, mas também inúmeros fundos
setoriais e privados – nos mais diversos suportes técnicos: papel, fotografias,
recursos audiovisuais, etc. – que constituem uma riqueza inestimável para todo
e qualquer pesquisador das mais diversas áreas. Junto com a Library of Congress
– que dispõe de um acervo de milhões, zilhões de livros e documentos, bem como
de mapas e gravações de todos os tipos – e com outras instituições
prestigiosas, como os museus Smithsonian e os arquivos de fundações privadas e as
bibliotecas universitárias e presidenciais, esse imenso acervo de fontes
primárias contém igualmente uma parte muito importante, eu até diria essencial,
da nossa memória histórica, não só político-diplomática (ou seja das relações
bilaterais Brasil-EUA), mas também da história política e econômica, e
registros culturais e científicos, desde o início do século 19 (e talvez mesmo
antes) até os nossos dias.
Feito um primeiro levantamento, eu solicitei o apoio
da Secretaria de Estado para um início de compilação de documentos diplomáticos
no NARA, e era minha intenção encomendar, com base nos recursos disponíveis, a microfilmagem
seletiva de uma série completa de documentos diplomáticos americanos sobre o
Brasil, grosso modo o período 1945-1964. Não preciso dizer que não recebi
nenhuma resposta, nem surtiram efeitos telefonemas para a área cultural do
Ministério. Cabe recordar que cada microfilme – podendo abrigar várias centenas
de páginas – não custava, unitariamente, muito caro, mas todas as séries
demandadas poderiam ascender a algumas dezenas de milhares de dólares, ainda
assim um preço razoável para tamanho acervo documental.
À falta de reações para o projeto dos arquivos
diplomáticos, comecei a explorar outras possibilidades, como o arquivo de
manuscritos do Brasil colonial e imperial constante da Biblioteca Oliveira
Lima, junto à Universidade Católica de Washington. Solicitei, então, “apenas” 4
mil dólares, para fazer uma série de microfilmes com essa coleção mais
restrita, ao que tampouco obtive resposta. Ou seja, eu estava cercado de
documentos valiosos para a história do Brasil, ou mesmo para as relações
contemporâneas com nosso principal parceiro econômico e político, mas não
dispunha de recursos para copiar esses fundos valiosos para o estudo de nossa
própria história. Explorei a possibilidade de o Arquivo Diplomático cobrir
parte dessas pesquisas, mas ele tampouco possuía recursos disponíveis; uma
consulta à Fapesp, redundou em tomar conhecimento de suas regras, ou seja, ela
apenas poderia financiar projetos ligados ao próprio estado de São Paulo.
2 - Que período compreendeu sua
pesquisa?
PRA: Ao iniciar o levantamento para a
cópia ou microfilmagem de documentos relativos às relações diplomáticas entre o
Brasil e os Estados Unidos eu havia delimitado o período contemporâneo em
diante, ou seja, pós-Segunda Guerra Mundial, até onde fosse possível obter
livre acesso aos documentos mais recentes. Eu me interessava particularmente
pelo período militar, desde o golpe de 1964 até onde as regras de sigilo
permitissem o acesso. Mas justamente em relação ao período mais recente, por
uma dessas ironias da história registrada, quanto mais próximos estivéssemos da
contemporaneidade, maior o volume de documentos acessáveis ou mesmo sigilosos,
podendo eventualmente ser desbloqueado o acesso através de uma lei americana de
liberação de documentos, o FOIA, Freedom
of Information Act: geralmente o documento é revelado, após curto período
de revisão ou monitoramento, com eventuais partes e nomes tachadas em preto,
para resguardar alguma informação mais sigilosa, ou não comprometer pessoas
vivas ou tendo trabalhado junto ou para a comunidade de informações.
Interessado diretamente na participação americana no
golpe militar de 1964, procurei saber o que o CIA – Central Intelligence Agency
– poderia abrigar, e liberar em relação a isso. Contatei diretamente o Chief
Historian of the CIA, ou seja, o historiador oficial, que por acaso era um
brasilianista cuja obra eu já conhecia, mas não a ele pessoalmente: Gerald K.
Heynes, que, como estudante de pós-graduação, havia defendido uma tese sobre –
outra ironia da história – The
Americanization of Brazil, cobrindo o período Dutra e o segundo Vargas, ou
seja, a fase de maior influência americana sobre os negócios brasileiros, de
todos os tipos. Lembro-me que ele era, como corresponde a qualquer funcionário
da CIA, muito “secretive”, sem telefone e sem email. Tive de escrever cartas
pelo correio normal e aguardar seu contato telefônico: combinamos um encontro
num clube bastante restrito de Washington, mas que eu já conhecia, pois já
tinha almoçado ali com o ex-embaixador Lincoln Gordon, justamente o embaixador
do golpe de 1964, com quem desenvolvi boas relações, e até o incitei a terminar
o seu livro sobre o Brasil – Brazil’s
Second Chance – que fiz traduzir e publicar no Brasil, com um apêndice não
constante da edição americana, sobre o golpe de 1964, e a participação
americana, justamente (o que ele, obviamente, não admitia, dizendo que o golpe
tinha sido 100% brasileiro; OK...).
Meu encontro com Gerald Haynes foi muito positivo e,
mesmo sem prometer, ele sinalizou que iria trabalhar no assunto e me daria uma
resposta mais adiante. Isso deve ter sido em meados de 2001, e eu aguardava
ansiosamente poder “colocar as mãos” em alguns papeis da CIA sobre o golpe e
seu imediato seguimento. Pouco depois, porém, fomos ambos surpreendidos com os
terríveis atentados do Onze de Setembro, e como se revelou imediatamente,
diretivas presidenciais decretaram imediatamente o aumento do sigilo, bem como
de todas as regras de segurança, sobre papéis e instalações oficiais do governo
americano. Foi uma ducha fria, e o historiador da CIA confessou-me que,
naquelas circunstâncias, ficava difícil levar o projeto adiante. Compreendi,
mas sempre esperei que pudéssemos reverter a situação em algum momento do
futuro breve, o que, entretanto, jamais aconteceu.
As diretivas presidenciais impondo novas e severas
restrições ao acesso a documentos sigilosos, ou mesmo a papéis que
anteriormente já tinham sido liberados das regras de confidencialidade, foram
tão drásticas que George Bush chegou a ser processado pela American Association
of Historians, cujos resultados, porém, desconheço. Provavelmente os juízes
devem ter julgado que a segurança do país exigia novas medidas de restrição.
Não sei exatamente o que ocorreu depois, mas suponho
que as diretrizes devem ter sido abrandadas. Em todo caso, nesse mesmo período,
o National Security Archive, entidade não governamental funcionando na
Universidade George Washington, deu início à busca e liberação sistemática –
através do chamado FOIA – de milhares de páginas de documentos sigilosos do
período da guerra fria, entre eles papéis relativos à chamada Operação Condor,
esquema cooperativo entre as agências de repressão e forças armadas de países
do Cone Sul da época dos golpes militares em diversos desses países, com destaque
para o Chile de Pinochet. Lembro-me, também, de ter sugerido que o Brasil
fizesse oficialmente o pedido, ao NSA da GWU para que papeis relativos ao
envolvimento do Brasil na operação fossem liberados; não logrei apoio para essa
ideia, no entanto, embora muitos dos papeis liberados – relativos ao Chile,
Argentina, Paraguai, Uruguai e Bolívia – contivessem inúmeras referencias aos
militares brasileiros e agentes civis da repressão.
3 - Quantos documentos foram copiados?
PRA: A rigor, os documentos copiados
foram muito poucos, uma vez que não dispúnhamos de nenhum recurso oficial para
a cópia sistemática ou a encomenda de microfilmagem de séries inteiras. Nunca
recebi um tostão sequer do MRE para qualquer iniciativa que tomei para mapear,
identificar e eventualmente copiar fundos documentais americanos sobre o
Brasil. Lembro-me de pessoalmente ter pago do meu bolso algumas cópias xerox de
documentos do NARA que achei mais interessantes. Um deles, por exemplo,
relatava um encontro entre o Encarregado de Negócios Americano no Rio de
Janeiro – o embaixador Lincoln Gordon já tinha então, 1966, voltado a
Washington, onde assumira o Department of Western Hemisphere – e o então
secretário-geral do Itamaraty, Manoel Pio Corrêa, um conhecido anti-comunista
profissional (e que, naquela altura, teria sugerido a Vinicius de Morais pedir
uma licença sem vencimentos, já que passava a noite numa boate do Rio,
aparecendo para trabalhar só na parte da tarde); o Encarregado de Negócios registrou
no seu telegrama a Washington o espanto com que recebeu a sugestão do SG-MRE
para uma ação conjunta do Brasil e dos EUA no Chile, aquela altura dirigido
pelo presidente democrata cristão Eduardo Frei; segundo ele, Pio Corrêa lhe
disse, sem nenhuma restrição mental, que “agora que o problema na Argentina
está resolvido [tinha sido logo depois do golpe do general Ongania contra o
presidente legítimo do país], podemos tratar do caso do Chile, onde está aquele
Kerensky chileno”, referindo-se, portanto, ao presidente provisório da Rússia,
antes do golpe dos bolcheviques. Allende realmente assumiria o poder no Chile,
depois de Frei, mas em eleições a rigor limpas, o que os EUA de Kissinger nunca
aceitaram, juntos, aliás, com os militares brasileiros.
Mas não havia, como disse, condições de copiar muita
coisa, pois a massa documental relativa aos anos 1960 e 1970, o que estava
começando a ser liberado das regras de sigilo naquela época, era propriamente
monumental, provavelmente zilhões de páginas, o que exigiria não só muito
trabalho, mas também muito dinheiro. Teria de ser um projeto oficial, para o
qual, infelizmente, nunca recebi apoio.
4 - Em sua maioria, quais os formatos
desses documentos?
PRA: Nessas condições, adotei uma outra
estratégia, bem menos custosa, e mais fácil de frutificar em curto prazo. Entre
1999 e 2000 começavam a ser publicados os primeiros catálogos dos arquivos
europeus sobre o Brasil colonial e imperial, basicamente saídos da
microfilmagem e reprodução digital dos arquivos portugueses e espanhóis, com
alguma extensão para outros países da Europa, que também mantinham importantes
coleções de documentos sobre o Brasil e a América Latina (essencialmente
França, Holanda, Itália, Vaticano, Bélgica e Grã-Bretanha, e mais alguns outros).
Tudo isso estava sendo conduzido em cooperação entre o Arquivo Nacional, a
Biblioteca Nacional e o Itamaraty, no âmbito do chamado Projeto Resgate Barão
do Rio Branco, impulsionado no Ministério da Cultura pelo Embaixador Vladimir
Murtinho e no Rio de Janeiro pela funcionária da Biblioteca Nacional, associada
ao IHGB, Esther Caldas Bertoletti, coordenadora técnica do projeto.
Minha ideia era fazer para os Estados Unidos o que
estava sendo feito em relação aos arquivos europeus, com algumas peculiaridades
porém. Se na Europa, em especial em Portugal e Espanha, o fulcro da
documentação era relativa ao período colonial, nos EUA teria de ser o período
pós-independência e século XX; mais ainda: se na Europa, ainda que com um
enorme volume documental, as coleções eram finitas, ou seja, a parte realmente
histórica concentrava-se mais nos séculos anteriores ao Império, nos EUA, como
já dito, a massa documental agigantava-se enormemente quanto mais chegássemos
no período contemporâneo. Algum tipo de limitação era, assim, necessário.
Lembro-me de também ter telefonado ao Ministério da
Cultura, para solicitar recursos ao Embaixador Murtinho para que pelo menos uma
parte dos arquivos americanos pudesse ser copiada, chegando assim a integrar o
projeto Resgate Barão do Rio Branco. A despeito de sua enorme boa vontade,
tampouco logrei obter recursos dessa fonte, provavelmente esgotados com os
projetos europeus e as comemorações luso-brasileiras em torno dos 500 anos dos
descobrimentos. O que eu concebi, então, foi apenas um diretório, ou seja, um
guia completo dos fundos documentais dos EUA disponíveis aos pesquisadores
brasileiros. Tendo pesquisado um pouco em vários arquivos em coleções, sei o
quanto é complicado para se orientar nos diferentes catálogos e tipos de classificação
dos documentos para fins de depósito arquivístico: os métodos de classificação
e os suportes materiais foram mudando ao longo dos tempos, e alguns arquivos
mantém “segredos”, ou séries especiais, que só se descobrem depois de algum
tempo manipulando catálogos e consultando os documentalistas locais.
Preparei um novo projeto, limitado, portanto, à mera
descrição de todos os recursos disponíveis, a forma de acesso, e dos fundos
sobre o Brasil constantes de todas as instituições possuindo coleções importantes
sobre o Brasil, a começar pelo NARA, Library of Congress, Biblioteca Oliveira
Lima e várias outras entidades. Sai novamente em busca de dinheiro, e mais uma
vez encontrei portas fechadas nas instituições oficiais brasileiras. Por sorte
minha, estava passando por Washington, naquele momento, o bibliófilo José
Mindlin, o que homem que, possivelmente, reuniu a melhor brasiliana de todos os
tempos, depois da própria Biblioteca Nacional e da Biblioteca Oliveira Lima, com
milhares de volumes de obras preciosas, como primeiras edições de Camões, de
Antonio Vieira, e outras preciosidades, reunidas ao longo de uma vida toda
dedicada aos livros. Expus-lhe rapidamente o meu projeto, ao acompanhar-lhe
numa palestra na Library of Congress, e ele imediatamente dispôs-se a me
ajudar.
Por intermédio da Fundação Vitae, que ele animava – e
que parece não mais existir, o que é uma pena – ele conseguiu enviar-me
modestos 20 mil dólares, colocados sob administração do Brazilian Information
Center, uma entidade civil, criada pela Embaixada em Washington justamente para
facilitar a realização de projetos de interesse real, mas sem ter que passar
pela imensa, difícil e ultra-burocrática administração pública brasileira. Com
esse dinheiro, compre um laptop, um scanner, engajei um assistente historiador,
Francisco Rogido, pagando-lhe um modesto estipêncio, e “desviei” diversos
voluntários então trabalhando (de graça) na Embaixada em Washington, e
coloquei-os imediatamente no trabalho. Eles passaram algumas semanas no NARA – um
imenso local nas cercanias de Washington, em College Park, Maryland – e depois
se alternaram entre a Library of Congress, Oliveira Lima Library, OEA e outras
instituições de Washington, e também passaram várias horas ao telefone e na
internet, mapeando o que havia fora de Washington.
O resultado – que fiz imediatamente reproduzir na
Embaixada e apresentar num seminário de brasilianistas ali realizado em dezembro
de 2001 – foi um “pequeno” grande diretório dos arquivos americanos sobre o
Brasil, que chamei de “Guia dos Arquivos Americanos sobre o Brasil: coleções
documentais sobre o Brasil nos Estados Unidos”. Ele descreve e apresenta,
sistematicamente, uma grande parte desses recursos, dando todas as informações
úteis para facilitar a vida e o trabalho dos pesquisadores profissionais (e não
apenas em história, pois também fiz mapear as instituições ligadas aos museus
Smithsonian, que contém muitos relatos e coleções de expedições científicas ao
Brasil, e até algumas menos científicas, como a célebre viagem de Theodore
Roosevelt, em companhia de Rondon, pelos rios amazônicos). Coloquei
imediatamente o Guia à disposição dos
pesquisadores no site da Embaixada e no meu site pessoal.
Continuei aperfeiçoando esse guia, aumentando as
informações, corrigindo telefones e websites, descrevendo novas coleções de
museus e bibliotecas americanas em outros estados, até praticamente o final de
minha missão em Washington, e mesmo depois de sair, já no Brasil. Por um
momento, o Guia deveria ter sido editado por uma editora universitária do
interior de São Paulo, que estava reproduzindo documentos europeus do projeto
Resgate Barão do Rio Branco, mas depois o acerto não pode ser concretizado. O
fato é que, em 2005, apresentei o livro à Fundação Alexandre de Gusmão, para
ser editado pelo Itamaraty. Por razões que desconheço, o livro adormeceu
durante cinco anos nas gavetas da Funag, até que, finalmente, no final da
gestão de um antigo presidente, resolveram desovar a obra. Mas fizeram sem me
consultar novamente, sem que eu pudesse novamente atualizar os dados, preparar
um novo prefácio, ou até discutir a capa, que pretendia ser alusiva aos
arquivos diplomáticos em si, ou às relações Brasil-Estados Unidos. Enfim, saiu
o livro, sem que eu possa dizer que me orgulhe realmente do resultado, pois ele
deveria ter sido disponibilizado bem mais cedo (o que de toda forma continuei a
fazer, por meio de edições pessoais em meu próprio site, e enviando para
instituições que sabia terem interesse nesse tipo de material).
Em todo caso, aos interessados em saber do que se trata
e o que contém esse
Guia dos Arquivos
Americanos sobre o Brasil, eu convido a visitar o meu site, onde ele se
encontra disponível sob dois links, o meu próprio e o da Funag. Não garanto o
da Funag, mas o meu funciona (
http://www.pralmeida.org/01Livros/2FramesBooks/66GuiaArquivos2010.html) e espero que ainda seja útil aos
muitos pesquisadores das relações Brasil-Estados Unidos (e da própria história
do Brasil, riquíssima nos arquivos americanos).
5 - Por quanto tempo o governo americano
mantém em sigilo documentos sobre outros países?
PRA: O governo americano mantém regras
muito liberais de acesso a documentos sigilosos, embora a documentação
diplomática, pelo seu caráter mais sensível, possa sofrer algumas restrições
maiores de acesso (sem falar dos papéis das agências de inteligência e de informação,
que obviamente se submetem a outras regras). Em geral, os arquivos diplomáticos
podem ser liberados em cinco anos, em média, um pouco mais para papéis
secretos. Os pesquisadores interessados podem eles mesmos requisitar documentos
sigilosos ao abrigo do Freedom of
Information Act, e o processo é em geral rápido (pode levar em torno de 3
meses). O próprio National Security Archive, da Universidade George Washington,
tem liberado milhares de papéis sigilosos, mesmo contra a vontade do governo
americano.
Por outro lado, o Departamento de Estado – o Itamaraty
deles – mantém uma instituição, ou uma divisão, que também deveríamos ter, e
que vários das agências públicas americanas mantêm: um historiador oficial, mas
dotado de ampla autonomia para decidir quais papéis devem ser liberados e como.
Ele é responsável, entre outros encargos absolutamente meritórios, pela edição
da US Foreign Relations Series, ou
seja, uma compilação de documentos oficiais, geralmente diplomáticos – mas
podendo envolver igualmente papéis de outros departamentos, como o US Trade
Representative, encarregado das negociações comerciais internacionais – sobre
determinados temas ou períodos específicos (na média, com vinte anos de recuo,
algumas vezes mais). Quem quiser saber, por exemplo, sobre o envolvimento
americano em golpes de estado (na Indonésia, no Irã, na América Latina) pode
buscar que vai encontrar algum volume com papéis confidenciais nessa US Foreign
Relations (a série está inteiramente disponível no site do Departamento de
Estado).
Este é uma iniciativa e um tipo de trabalho que não só
o Itamaraty, mas várias outras agências públicas do Brasil, deveriam manter: um
historiador oficial, encarregado não só de preservar, classificar e guardar a
documentação relevante, mas de divulgá-la também.
6 - Pode nos dar uma ideia do que ainda
é mantido em segredo? O que há de mais antigo ainda vetado? Independência?
Guerra do Paraguai? República?
PRA: Tudo, absolutamente tudo que se
refere ao período anterior à Segunda Guerra Mundial está totalmente
desclassificado, sendo de livre acesso. Em geral, a documentação sigilosa
também passa a ser liberada em espaços de 5, 10 e 15 anos, com algumas
restrições para os temas mais sensíveis de inteligência, mas que pode sofrer o
chamado processo de “sanitization” e posterior liberação. Os Estados Unidos
são, de longe, o país mais liberal do mundo no que se refere o acesso aos
documentos oficiais. Segredos envolvem aqueles documentos típicos de
inteligência, que podem sofrer restrições parciais ou totais. Mas, de vez em
quando, algum “acidente” acaba ocorrendo, como verificado em eventos recentes,
como os ligados aos Wikileaks ou ao caso Snowden. Esse é o preço a pagar por
serem uma democracia na qual o processo decisório, e o acesso a informações
sensíveis, estão abertos a um enorme número de pessoas, das mais diferentes
agências, geralmente funcionários públicos, mas eventualmente também técnicos
trabalhando sob contratos especiais.
7 - Por esses documentos, é possível ter
uma ideia de como funcionava a engrenagem de espionagem dos Estados Unidos no
caso do Brasil?
PRA: Espionagem é um outro nome para a
informação de caráter sensível. Todos os Estados organizados mantém serviços
desse tipo, seja de tipo defensivo, como deve ser o do Brasil, seja de tipo
ofensivo, como é o caso daquelas potências envolvidas em agendas conflituosas
no terreno da sua própria segurança ou a dos aliados (e até mesmo “contra” os
próprios aliados). Daí para a informação econômica, tecnologicamente
estratégica, é um passo, já que a segurança envolve tanto saber o que outros
Estados estão fazendo, o que eles pensam sobre um determinado item da agenda
bilateral ou internacional, e o que eles pesquisam, o que pode apresentar
relevância sob qualquer aspecto. Como toda burocracia estatal, os serviços de
inteligência acabam criando sua própria razão de ser, muitas vezes distanciada
até do que pensam os lideres ocasionais do governo, eventualmente considerados
ingênuos demais pelos “velhos” espiões profissionais.
Desde a Guerra Fria e possivelmente até hoje, os EUA
mantém um forte aparato de inteligência e informação no Brasil, na embaixada e
em alguns consulados, o que pode ser considerado normal e esperado. Esses
“espiões” geralmente fazem um trabalho muito aborrecido, não muito diferente do
conduzido no âmbito de algumas instituições de pesquisa, e envolvidos numa
burocracia quase kafkiana: informa-se porque é preciso informar, seja qual for
o assunto ou a urgência da questão. Depois existem os pedidos especiais, que
envolvem contato com locais, ou “penetração” adversa, o que também é
absolutamente normal. O Brasil já foi penetrado pelos cubanos, pelos
soviéticos, e deve estar sendo penetrado por diversos outros serviços, não
apenas pelo império. Ou seja, não há o que se surpreender nessa matéria, todos
fazem isso, inclusive o Brasil. E todos são absolutamente hipócritas a esse
respeito, inclusive o Brasil.
8 - Em que momentos históricos o
interesse dos Estados Unidos sobre o Brasil foi mais intenso, além do golpe de
1964?
PRA: O golpe militar foi um episódio
circunscrito, e não o mais relevante. Mais importante foi o programa nuclear
dos militares brasileiros, e o acordo bilateral nesse terreno com a Alemanha:
as pressões, veladas e abertas, dos EUA foram intensas, durante vários anos,
provavelmente com base em forte trabalho de inteligência. O programa espacial
brasileiro também sempre foi objeto de seguimento, pois é a mesma tecnologia
que permite fabricar mísseis balísticos. Outras tecnologias sensíveis, de
caráter diretamente militar ou não, também devem estar sob constante escrutínio
dos “arapongas” americanos.
Suponho que, depois do governo FHC, bastante amigável
aos EUA, com o governo dos companheiros, bem mais amigos dos cubanos,
venezuelanos, e outros inimigos dos EUA, o grau de vigilância americana sobre
os dirigentes brasileiros tenha aumentado um pouco (ou muito), o que é
compreensível dentro da lógica em que trabalham as grandes potências. Não devemos
crer que os “parceiros estratégicos” do Brasil se eximam de perscrutar nossos
segredos apenas porque eles são considerados “parceiros estratégicos” por
alguns amadores no poder. O “problema” é que nas democracias é mais fácil de se
ter trânsfugas eventuais, o que raramente ocorre no caso de algumas ditaduras
supostamente amigas. Aliás, a verdade é esta: em algum momento, as democracias
sempre acabam revelando seus mais íntimos segredos, o que nem sempre ocorreu, a
não ser por traição, em ditaduras como a soviética ou do Leste Europeu. Aposto,
por exemplo, que os companheiros cubanos já estejam destruindo arquivos, pois o
fim daquele regime esclerosado é inevitável: o fim da Alemanha oriental, e a
revelação dos papéis e dos informantes da Stasi, devem ter dado algumas lições
aos comunistas cubanos. Eles não pretendem ser pegos de surpresa, e entre essas
surpresas estão revelações embaraçosas para o Brasil, não só em relação a
governos passados, mas provavelmente também sobre certos personagens do governo
atual. Alguém seria ingênuo a esse respeito?
9 - Poderia citar alguns exemplos de
documentos produzidos?
PRA: Não disponho em meu poder, como
estou num Consulado nos Estados Unidos, de meus arquivos, que ficaram no
Brasil, com alguns documentos copiados dos National Archives ou de outras
instituições. Mas, não copiei nada de muito relevante, seja porque não tinha
tempo para fazer pesquisa sistemática, seja porque esperava, justamente,
dispor, em algum momento dessas condições, para fazer um trabalho mais meticuloso.
10 - Pode nos
mandar alguns para reproduzirmos?
Tem ali muito muito material para “diversão”,
simplesmente, ou para matérias dignas do jornalismo investigativo. Mãos à obra,
pois...
Paulo Roberto de Almeida
Hartford, 12 de outubro de 2013
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