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quarta-feira, 2 de agosto de 2023

As coisas no BRICS andam um pouco confusas, para dizer o mínimo...

 Heads of state from Brazil, Russia, India, China and South Africa will make a pronouncement on the enlargement of the group when they meet 


A planned announcement on the expansion of BRICS at a forthcoming summit in South Africa will mark a significant change in the global order, the nation’s ambassador to the five-nation bloc said, even as some of its members push back against new admissions.

Heads of state from Brazil, Russia, India, China and South Africa will make a pronouncement on the enlargement of the group when they meet Aug. 22-24, Anil Sooklal said in a lecture at the University of KwaZulu-Natal on Wednesday. Twenty-two nations have asked formally to become full-time members of the group, and more than 20 others have submitted informal requests.

China favors a rapid expansion of the bloc, which will require consensus among its members. But it has encountered opposition from India, which wants strict rules on how and when other nations could move closer to the group without formally enlarging it, and from Brazil, which is wary of alienating the US and European Union, according to officials with knowledge of the matter. 

“BRICS has been a catalyst for a tectonic change you will see in the global geopolitical architecture starting with the summit,” Sooklal said. While he emphasized that the bloc doesn’t see itself as a counterweight to any other organization, he said its expansion was stoking anxiety and opposition among nations in “privileged positions.” 

Russian leader Vladimir Putin will participate at the gathering virtually, avoiding the risk of possible arrest on a warrant from the International Criminal Court for alleged war crimes if he travels to South Africa, which is a member of the tribunal.

A decision on whether Indian Prime Minister Narendra Modi will attend has yet to be taken, although necessary security arrangements have been made and other pre-visit formalities have been completed, according to a person with knowledge of the matter. While Modi’s absence may be viewed as a snub to the host and he would miss out on bilateral meetings with other leaders, India isn’t comfortable with him holding talks with Chinese President Xi Jinping while a border dispute remains unresolved, they said. 

So far, representatives from 71 nations have been invited to attend the summit, according to Sooklal. 

“This will be the largest gathering in recent time of countries from the Global South coming together to discuss the current global challenges,” he said. 

Formed officially in 2009-2010, BRICS has struggled to have the kind of geopolitical influence that matches its collective economic reach. The bloc’s members represent more than 42% of the world’s population and account for 23% of global gross domestic product and 18% of trade.

An expanded BRICS will account for “almost 50% of the global population and over 35% of global GDP and that figure will grow,” Sooklal said. He also highlighted the role that the bloc’s leaders were playing in trying to end Russia’s war in Ukraine.

“There is no tangible evidence that any one of the BRICS countries, South Africa included, is feeding weapons into that conflict,” he said. “But there is clear evidence to the global community that the West is pumping billions of dollars into that conflict and the conflict is raging, so who is talking peace and who is talking war?”

quarta-feira, 14 de junho de 2023

O BRICS e os Brics em face da desordem internacional trazida pela guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia

 Os chanceleres do BRICS, representando os atuais cinco Brics individuais, reuniram-se recentemente na Cidade do Cabo, África do Sul, para preparar a próxima cúpula do grupo, que deverá reunir-se em Johannesburg, capital daquele país, em agosto.

Como quando da reunião de chanceleres do ano passado, e da própria declaração final dos chefes de Estado e de governo, ocorrida já em meio à guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia, iniciada em 24 de fevereiro de 2022, os diplomatas fizeram cara de paisagem, em face da cruel realidade da guerra, inclusive já revelados os massacres, crimes de guerra inomináveis, perpetrados pelas forças russas em Bucha, arredores da capital Kiev, que elas não conseguiram tomar (levado ao local, para uma exposição na igreja local sobre os cadáveres deixados espalhados nas ruas pelos assassinos do Exército russo, o atual assessor internacional do presidente Lula para assuntos internacionais, e ex-chanceler nos governos Lula 1 e 2, disse que "não dava para saber, pois são apenas fotos). 

Transcrevo abaixo, para renovar a lembrança da vergonha já cometida em 2022 e renovado neste ano, trechos da declaração dos chanceleres, que se vangloriam reciprocamente do compromisso de seus países com o multilateralismo e a "defesa do direito internacional"... "em um sistema internacional no qual Estados soberanos cooperam para manter a paz e a segurança, promover o desenvolvimento sustentável, garantir a promoção e proteção da democracia, dos  direitos humanos e das liberdades fundamentais para todos e promover a cooperação baseada no espírito de respeito mútuo, justiça e igualdade."

Não consigo imaginar hipocrisia maior, sabendo-se de todos os crimes já perpetrados (e ainda a perpetrar) pelos invasores em território soberano da Ucrânia, sobretudo a recente explosão deliberada da barragem de Nova Krakhovka, causando um desastre humanitário e uma catástrofe ecológica e ambiental. 

Imagino que os chanceleres continuarão impérvios à realidade da guerra, deslanchada sem provocação, por um dos membros contra um vizinho, na violação da Carta da ONU e de normas elementares do direito internacional, ou da própria moralidade dos seus atos de guerra, que cabe a cada Estado respeitar, segundo os protocolos em vigor sobre as leis da guerra, que a Rússia viola seguidamente.

Entendo que a hipocrisia continuará na reunião de cúpula de 2023, talvez até com a presença do criminoso de guerra cuja prisão já foi solicitada pelo Tribunal Penal Internacional, mas que não será eventualmente cumprida pela República da África do Sul, a que seria obrigada pelo Estatuto de Roma ao qual subscreveu e ratificou. Ah, sim, a hipocrisia se estendeu inclusive a um curto parágrafo sobre a "situação na Ucrânia", na qual ignoram completamente a situação de guerra causada por uma das partes.

Nada mais tenho a expressar, a não ser uma vergonha alheia, pela diplomacia de meu país, nesta conjuntura diplomática que aparentemente não mudou absolutamente nada, desde o governo demolidor de nossa política externa até o final de 2022.

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 14 de junho de 2023


Ministério das Relações Exteriores

Assessoria Especial de Imprensa 

Nota nº 76, 19 de maio de 2022

Declaração Conjunta do BRICS sobre o tema: “Fortalecer a Solidariedade e a Cooperação do BRICS; Responder às novas Características e Desafios da Situação Internacional”

(...)

3. Os Ministros reiteraram seu compromisso com o multilateralismo por meio da defesa do direito internacional, inclusive os propósitos e princípios consagrados na Carta das Nações Unidas como sua pedra angular indispensável, e com o papel central das Nações Unidas em um sistema internacional no qual Estados soberanos cooperam para manter a paz e a segurança, promover o desenvolvimento sustentável, garantir a promoção e proteção da democracia, dos  direitos humanos e das liberdades fundamentais para todos e promover a cooperação baseada no espírito de respeito mútuo, justiça e igualdade.

4. Os Ministros reiteraram seu compromisso de realçar e aprimorar a governança global, promovendo um sistema mais ágil, eficaz, eficiente, representativo e responsável, realizando consultas e colaboração inclusivas para o benefício de todos com base no respeito à soberania, à independência, à integridade territorial, à igualdade, aos interesses e preocupações legítimos dos diferentes países. 

 (...)

11. Os Ministros recordaram suas posições nacionais sobre a situação na Ucrânia, conforme expressas nos fóruns apropriados, nomeadamente o CSNU e a AGNU. Apoiaram as negociações entre a Rússia e a Ucrânia. Discutiram também suas preocupações sobre a situação humanitária dentro e ao redor da Ucrânia e expressaram seu apoio aos esforços do Secretário-Geral da ONU, das Agências da ONU e do CICV para fornecer ajuda humanitária de acordo com a resolução 46/182 da Assembleia Geral da ONU.


quinta-feira, 30 de junho de 2022

O futuro do grupo BRICS - ensaio por Paulo Roberto de Almeida

O futuro do grupo BRICS 

 

Paulo Roberto de Almeida

Diplomata, professor

(www.pralmeida.org; diplomatizzando.blogspot.com)

Notas para subsidiar participação em evento sobre o BRICS; 30/06/2022; 17hs.

 

 

A primeira questão que vem à baila, quando se participa de um webinar que tem por título “O futuro do grupo BRICS”, depois do início da invasão da Ucrânia pela Rússia, em 24 de fevereiro de 2022, é justamente a de saber se o grupo, do qual a Rússia é um dos membros mais relevantes, tem algum futuro, a partir de uma guerra de agressão absolutamente cruel e desumana em seu portfólio internacional. Trata-se, obviamente, não só de uma violação flagrante da Carta da ONU e todos os princípios conhecidos do Direito Internacional, mas também da prática deslavada e aberta de crimes de guerra, talvez similares aos que levaram líderes civis e militares nazistas ao Tribunal de Nuremberg, em 1946.

Apresso-me, contudo, em dizer que não existe, aparentemente, nenhum risco para a sobrevivência e a existência continuada desse grupo, mesmo com a continuidade dessa guerra inaceitável sob todos os critérios do direito e da diplomacia. Acredito que ele tem, sim, futuro, ainda que este seja patético e agora manchado por crimes que atingem diretamente seus pressupostos de atuação. Tenho duas razões para admitir a continuidade momentânea – não sei se futura – desse grupo que desafia as regras gerais de constituição de grupos: uma é de ordem burocrática, a outra de caráter político, embora desafiadora das concepções subjacentes a tal conceito de política. 

A história nos ensina que uma vez criada um novo órgão de consulta e coordenação entre Estados, dificilmente ele será extinto, mesmo sobrevivendo como dinossauro escapado de um grande desastre: interesses burocráticos, suposta credibilidade de seus membros, letargia dos programas iniciados na origem, novas iniciativas que justificam diárias e passagens dos funcionários engajados no exercício, desejo de continuar aparecendo na mídia, tudo se combina para manter respirando algum organismo que já se desviou de suas funções originais. Pela declaração emitida em junho de 2022, por ocasião da 14ª reunião de cúpula, organizada pela China, pode-se constatar que existem amplas evidências de que o grupo cresceu demasiado, já virou uma grande organização, e por isso mesmo ela precisa continuar se alimentando dela mesma. Pela burocracia já criada em torno dele, concluo, portanto, que o BRICS vai sim continuar.

Politicamente, o BRICS tampouco parece perto do seu esgotamento diplomático, a julgar pela declaração ministerial liberada pelos chanceleres do BRICS, em maio último, preparatória ao encontro de cúpula, no dia 28 de junho sob comando chinês. E o que, exatamente, disseram os chanceleres do BRICS nessa declaração, que parece situar-se num universo paralelo ao dos simples mortais, que somos todos nós? Leio isto, logo no terceiro parágrafo da declaração (ênfases agregadas, por necessárias): 

3. Os Ministros reiteraram seu compromisso com o multilateralismo por meio da defesa do direito internacional, inclusive os propósitos e princípios consagrados na Carta das Nações Unidas como sua pedra angular indispensável, e com o papel central das Nações Unidas em um sistema internacional no qual Estados soberanos cooperam para manter a paz e a segurança, promover o desenvolvimento sustentável, garantir a promoção e proteção da democracia, dos direitos humanos e das liberdades fundamentais para todos e promover a cooperação baseada no espírito de respeito mútuo, justiça e igualdade

 

Esse parágrafo 3º da declaração ministerial é praticamente idêntico ao parágrafo 5º. da declaração de cúpula, como se pode constatar logo a seguir (ênfases idem): 

5. We reiterate our commitment to multilateralism through upholding international law, including the purposes and principles enshrined in the Charter of the United Nations as its indispensable cornerstone, and to the central role of the United Nations in an international system in which sovereign states cooperate to maintain peace and security, advance sustainable development, ensure the promotion and protection of democracy, human rights and fundamental freedoms for all, and promoting cooperation based on the spirit of mutual respect, justice and equality.

 

Qualquer pessoa que acompanhe o noticiário internacional, desde o dia 24 de fevereiro, ou até mesmo antes, a partir da acumulação de tropas russas e reiteradas ameaças feitas pelo presidente russo ao governo da Ucrânia, pode ficar estupefata ao ler que os ministros do BRICS reiteram seu compromisso com a Carta das Nações Unidas, que eles apoiam um sistema no qual os Estados cooperação com a paz e a segurança e, para maior estupor, a promoção e a proteção da democracia, dos direitos humanos, etc., etc., etc. 

Pode-se perguntar onde estiveram os ministros desde o dia 24 de fevereiro, e como podem os líderes do grupo conseguir ignorar tudo o que ocorreu, na vida real, a partir dali, em TOTAL CONTRADIÇÃO com o que está descrito nesses dois parágrafos, não só fantasiosos, como também falsos e mentirosos. Esta é, para mim, uma prova cabal de que o grupo BRICS não só pode sobreviver, como poderá ter, com certeza, um futuro promissor diante de si, ainda que seja difícil imaginar que tipo de futuro seja esse, não só em função da continuidade de uma guerra devastadora, e criminosa, como também da credibilidade que possa ter o grupo ao continuar sustentando um de seus membros, cujo presidente poderá – e deveria – ser processado e incriminado pelo Tribunal Penal Internacional, por crimes de guerra, certamente por crime contra a paz e possivelmente por crimes contra a humanidade. Que sinalização ao mundo pretendem dar os seus líderes com tal tipo de declaração?

Acredito que se trata de uma situação constrangedora, pelo menos para três dos países membros do Brics que são, supostamente, democracias consolidadas, com alternância de partidos no governo, por meio de eleições livres e transparentes, e não regimes autocráticos como são, de fato, dois dos seus mais poderosos membros. Como continuar defendendo a Carta da ONU, a não intervenção nos assuntos internos de outros países, o não recurso à guerra – sobretudo não provocada –, a solução de controvérsias por meios pacíficos, enfim, o respeito à vida e o patrimônio de nações soberanas? Os quatro outros membros, que não diretamente responsáveis por esses crimes e violações flagrantes do Direito Internacional, pretendem continuar apoiando, ou vão insistir em se eximir, de fugir à realidade, em face das provas irrefutáveis que estão todos os dias no noticiário internacional? Eles por acaso não se dão conta de que essa realidade, transparente na mídia mundial soa como um desmentido cruel, até patético, em face do que está escrito naquela declaração? Como podem ser cegos, surdos e mudos no confronto com fatos cristalinos que desmentem cada uma dessas palavras?

Existe uma terceira razão, de ordem prática, ou operacional, que promete manter o grupo BRICS ao nível da água no futuro imediato, embora ameaçando submergir, caso a situação da guerra se torne incontornável na agenda internacional. Ela se explica pela necessidade ressentida pela Rússia, talvez pela própria China, de encontrar nos demais membros do grupo BRICS um pequeno sustentáculo do teatro de absurdos grotescos que se desenvolve no território ucraniano desde o dia 24 de fevereiro de 2022, e talvez desde antes, não apenas nas semanas imediatamente antecedentes – com a farsa, diversas vezes, repetida, de que não se pretendia atacar a Ucrânia – ou mesmo desde antes, mas sobretudo em 2014, quando a Rússia atacou covardemente os territórios da Ucrânia oriental e invadiu, sequestrou, amputou a península da Crimeia da soberania do seu vizinho, a pretexto de proteger nacionais que estariam sendo objeto de nada menos do que genocídio. Nada disso figura nos textos das duas declarações, a ministerial e a da cúpula, mas até quando se poderá manter a fantasia?

A Rússia precisa, desesperadamente, de algum apoio desses membros de um grupo que ela mesma criou, com a imediata solicitude do Brasil, na primeira década deste século. Salvo estes seus “colegas” de grupo, e mais algumas patéticas ditaduras em alguns poucos pontos do planeta, a Rússia conta, se tanto, com a indiferença benigna, ou malévola (segundo os casos), de uma parte dos demais países da comunidade internacional. Talvez a China – que hipotecou solidariedade prática para com a Rússia, sob a forma de uma “aliança sem limites”, pouco antes da invasão e da terrível guerra de agressão, conduzida por um vizinho que já lhe amputou territórios no passado – também necessite dessa “solidariedade cúmplice” de outros membros do grupo BRICS, pois que imagina, eventualmente, que possa ter de empreender aventura similar em outras paragens.

Esta terceira razão talvez até sobrepuje as duas primeiras, a burocrática e a política-diplomática, pois se trata de um oportunismo dos mais vis, baseado num cálculo político dos mais sórdidos, o de que a assim chamada “operação especial” responde a uma necessidade legítima de segurança. A justificativa se deve à existência, no mundo, um hegemon com pretensões à supremacia estratégica absoluta, que atua de forma arrogantemente unilateral, e que pretende submeter todos os demais países a seus interesses nacionais, à sua visão do mundo, aos seus valores e princípios: democracia, direitos humanos, liberdades. Tais elementos, inerentes às economias de mercado, não devem combinar com outros princípios e valores que sustentam Estados, certamente soberanos, mas que pretendem preservar regimes políticos organizados em torno de outros princípios, uma organização econômica mais bem determinada pelo Estado do que pelos mercados e uma definição própria do que sejam as “formas de expressão” aceitáveis para seus dirigentes. Vários dos elementos constitutivos de seus regimes políticos podem, eventualmente, não estar de acordo com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, aquela peça de papel de adesão voluntária, aprovada em 1948, depois que o mundo conseguiu dar cabo de ditaduras hediondas, responsáveis por milhões de mortos inocentes, por um genocídio jamais visto na história da humanidade e por uma destruição material nunca antes enfrentada pelas sociedades contemporâneas.

Mas, vejam, não se trata exatamente de um conflito ideológico, entre totalitarismos e democracias, como visto durante a Segunda Guerra Mundial, pois não parece mais haver uma disputa por modelos alternativos, opostos, de desenvolvimento econômico e político. O que se trata neste caso é o de uma percepção de ameaça à segurança, em vista da existência de uma aliança militar que foi criada justamente quando havia essa tremenda diferença entre duas visões opostas do mundo, coisas que parecem ter ficado para trás, embora talvez não tão atrás como pensávamos. Essa percepção, em legítima, de uma ameaça potencial à segurança de um Estado membro da ONU deveria ter, segundo o que reza a própria Carta da ONU, levada à consideração dos membros da ONU, eventualmente ao conhecimento do seu Conselho de Segurança, para deliberação e possível ação. É assim que deveriam proceder, de boa fé, os membros da ONU, segundo o que está disposto nos principais artigos da Carta. Não foi isso, infelizmente, o que ocorreu. Registre-se que a ação da Rússia sequer obedeceu antigas leis e costumes da guerra, que a despeito de serem proibidas formalmente, logo nos primeiros artigos da Carta, podem ser autorizadas em razão de ameaça credível ou de ataque iminente, o que não desobriga o Estado de levar isso ao conhecimento do órgão que cuida da paz e da segurança internacionais, do qual, aliás, o Estado agressor é, pasmem, membro permanente, ainda dotado do poder de veto sobre quaisquer de suas resoluções.

 

Volto à pergunta: poderia existir algum futuro para o grupo BRICS, em face dessa terrível realidade?

Acredito que sim, e por isso prognostiquei um futuro para o grupo BRICS, ainda que, realmente, eu não consiga definir que tipo de futuro será esse, com a continuidade da guerra e a permanência das violações à Carta da ONU, já apontadas pela Corte Internacional de Justiça, em resolução que ordenou a cessação imediata da agressão. O problema aqui é que a CIJ não tem dentes, ou seja, não pode tornar realidade qualquer uma de suas decisões a menos de uma tomada de posição concordante do Conselho de Segurança, um órgão notoriamente paralisado pelo absurdo poder de veto concedido a cinco de seus membros permanentes, inclusive quando um deles é o violador incontestável das obrigações contidas na Carta da ONU (e não deveria, portanto, participar do processo decisório).

À vista da declaração dos chanceleres de 19 de maio e, a partir da nova declaração de cúpula dos líderes dos Brics adotada em seu 14º encontro, pode-se afirmar, sim, que o grupo BRICS tem a sua continuidade assegurada. Mas eu me pergunto como o mundo, ou pelo menos os países ocidentais defensores dos princípios consagrados naquela Carta, olharão o grupo BRICS a partir de agora. Não pretendo sequer desculpar o Brasil, que aparentemente ficou do lado do Direito, ao ratificar as resoluções da ONU condenando a Rússia pela invasão, mas que, ao cabo de uma leitura mais cuidadosa das suas declarações de votos, mostrou-se, como provavelmente queria o presidente, objetivamente leniente para com o agressor e subjetivamente solidário com o Estado perpetrador das violações à Carta da ONU e ao direito internacional, por razões até aqui muito mal explicadas. Aparentemente, o que motivou o chefe de Estado brasileiro a adotar essa atitude de leniência, e até de conivência, para com o agressor foram algumas toneladas de fertilizantes. Isso seria tudo?

Mas nem vou considerar aqui as muitas declarações confusas ou ambíguas do próprio presidente, pois o que ele mesmo diz não conta, absolutamente, para efeitos diplomáticos. O que ele disse ou diz, no cercadinho do Alvorada, ou até em encontros internacionais, não tem a mesma validade que declarações formais no âmbito da ONU e seus órgãos acessórios, que expressam, verdadeiramente, a posição do país no plano internacional. Deixemos, portanto, de lado esse personagem patético que nos representa e que nos envergonha aos olhos do mundo inteiro, para maior desgosto da nossa diplomacia profissional.

Retirando toda a roupagem textual, feito no diplomatês habitual, pelos delegados brasileiros nesses órgãos – CSNU, Assembleia Geral e Conselho de Direitos Humanos –, o que se extrai é o seguinte: o Brasil quer a “cessação de hostilidades”, como se elas fossem conduzidas reciprocamente, e não unilateralmente, por parte de uma grande nação bélica contra um vizinho menos poderoso; o Brasil quer a negociação para uma solução pacífica das controvérsias, levando em consideração “as preocupações de segurança das partes”, como se a Ucrânia representasse qualquer tipo de ameaça à segurança do agressor; o Brasil se opõe à imposição de sanções unilaterais, ou seja, não aprovadas pelo CSNU, como se este pudesse hipoteticamente aprovar o que quer que seja, sem que a Rússia exercesse o seu direito de veto e como se um agressor devesse sair impune dos crimes cometidos, ou como se ele pudesse ser contido apenas por palavras de boa vontade; finalmente, o Brasil também se opõe à entrega de armas à Ucrânia, como a dizer ao governo e ao povo ucraniano o seguinte: “desistam, não tentem resistir, pois vocês lutam contra um Estado mais poderoso, renunciem à resistência e entreguem-se à vontade do agressor”. 

 

Mas, voltando agora ao tema do futuro do grupo BRICS, é preciso, antes de qualquer prognóstico, voltar ao seu passado: como e por que ele apareceu no cenário dos muitos grupos já existentes no anárquico sistema de relações internacionais interestatais. Ele foi concebido, inicialmente, como todos sabem, por um economista de banco de investimentos pensando unicamente num portfólio capaz de trazer retornos generosos, em vista das perspectivas otimistas que então se desenhavam, naqueles idos, início do século, em termos de crescimento para os quatro primeiros – e mais legítimos – membros do acrônimo. Mas, o que era tão somente um exercício de projeção econômica, visando ganhos privados, encantou diplomatas relativamente descontentes com a ordem mundial prevalecente – a do G7, da OCDE, OMC, Bretton Woods e o que gira em volta – e motivou-os a transpor uma sigla dotada de irresistível apelo de mercado para o universo da diplomacia. O novo grupo deveria supostamente se ocupar daquela dimensão examinada no estudo original dedicado ao BRIC: crescimento econômico, participação no comércio internacional, inovação tecnológica e promoção do desenvolvimento econômico e social de seus respectivos povos. 

A agregação dos quatro países, quatro economias ditas emergentes e dinâmicas, pelo menos naquele momento, pode ter motivado o entusiasmo dos proponentes iniciais de um novo grupo, provavelmente já pensando, desde aquele primeiro momento, em rivalizar com o G7, ainda que a Rússia fizesse formalmente parte desse grupo exclusivo de grandes potências, que se converteu em G8, mas unicamente para assuntos políticos, uma vez que o velho G7 continuasse a se unir para tratar dos assuntos econômico-financeiros. Brasil e Rússia, desde 2006, tiveram a ideia do barco, no qual logo embarcariam dois gigantes demográficos, e como tal foi lançado ao “mar” em Ecaterimburgo, em 2009. A China logo tratou de complementar o grupo com um representante africano, uma vez que mantinha, desde vários anos, um portentoso programa de investimentos naquele continente. O que não ficou claro, até o presente momento, foi a elaboração de estudos técnicos e diplomáticos, feitos pelas respectivas chancelarias, sobre a rationale que presidiu à transformação de um simples acrônimo intangível – ou apenas materializado como carteira de investimentos para os portfólios de grandes fundos institucionais – em um bloco econômico-diplomático. Não se conhecem policy papers sustentando a ideia de um grupo estruturado a partir de três economias euroasiáticas e uma outra da América do Sul. Se existem, eles permanecem não disponíveis, desde que Sergei Lavrov e Celso Amorim se decidiram a esse respeito. 

Do ponto de vista dos interesses nacionais brasileiros, a rationale para a criação do então grupo BRIC, como grupo formal, deveria estar embasada numa definição clara de uma estratégia diplomática apontando sua funcionalidade sob a perspectiva desses interesses, que sempre deve ser o desenvolvimento econômico e social da nação, que é o único critério e o objetivo realmente meritório para tal iniciativa. Naquela conjuntura foram estabelecidos os objetivos nacionais brasileiros que deveriam ser alcançados por meio ou através do grupo? Foram alinhadas, finalmente, as diretrizes de políticas a serem seguidas, levando em conta nossa capacidade de articulação na própria região – que é, finalmente, onde o Brasil possui certo poder de atração e de iniciativa –, assim como no âmbito global, onde nossa influência é bem menos determinante? Mais importante do que isso, talvez seja a própria Grande Estratégia brasileira — se alguma vez isso existiu — para a projeção global do país e de sua diplomacia. Em outros termos: por aqueles três países como parceiros, e não outros? O que havia de estratégico, de exclusivo e de determinante nessa particular geografia política? Seria o fascínio criado em torno de um tal de Sul Global, mais referido, sobretudo no plano acadêmico, do que exatamente definido geograficamente, ou geopoliticamente? 

Pode-se duvidar da funcionalidade desse unicórnio do Sul Global para a consecução dos grandes objetivos diplomáticos do Brasil, mesmo incluindo no pacote das miopias atraentes a sempre mencionada cadeira permanente no Conselho de Segurança, na hipótese de uma reforma da Carta e de uma ampliação do seu órgão decisório por excelência. Qual o significado e a importância real, para o Brasil, de se unir especificamente a esses três parceiros, e não a outros, como também poderia ser o caso, talvez até com maior substância de propósitos e uniformidade de características sociopolíticas, por exemplo, do G4, constituído justamente para fins de reforma da Carta da ONU e a ampliação do seu Conselho de Segurança. O G4 constituído para tal finalidade, tinha a participação da Alemanha, do Japão e da Índia, ou seja, um grupo formado por quatro grandes democracias. O G4 “onusiano” não poderia, igualmente, ser a base de um grupo socioeconômico voltado para a causa da melhoria do sistema multilateral, com o objetivo básico do desenvolvimento econômico e social dos países mais pobres, em lugar de parecer uma alternativa ao G7, como parece ser o Brics? Tais países democráticos, assim como outros europeus e os próprios Estados Unidos, representariam algum obstáculo ao desenvolvimento econômico e social do Brasil, assim como a outras iniciativas de sua diplomacia tendentes aos mesmos objetivos em âmbito regional e para o conjunto dos países em desenvolvimento?

Todas essas questões colocadas acima poderiam ter animado um rico debate entre os diplomatas profissionais, constituiriam um grande tema para alguma área de policy planning de sua chancelaria, e deveriam, supostamente, estar no centro de um processo decisório seriamente estruturado em nível do governo como um todo, em lugar de resultar unicamente da decisão de dois chanceleres servindo a dois líderes desejosos de se contrapor ao G7.

 

Em última instância, o que está em causa, não apenas na questão do BRICS, não é, exatamente, a constituição de mais um grupo político-diplomático, mas a validade e a funcionalidade, para fins de desenvolvimento econômico e social, de concepções diferentes, até alternativas, sobre como deve ser organizado o sistema econômico mundial, atualmente realmente interdependente, até onde se pode ver, depois da implosão do socialismo de tipo soviético (aliás, precedido, no caso da China, por uma longa marcha em direção à economia de mercado, mas com “características chinesas”, ou seja, preservado o monopólio político do partido comunista). Para sintetizar a essência dessas concepções diferentes, eu chamaria uma delas de “ordem de Bretton Woods” e a outra de “ordem estatal-intervencionista”. 

A ordem de Bretton Woods trouxe prosperidade e bem-estar ao mundo, preservando democracia, liberdades e direitos humanos. A ordem alternativa, a do socialismo, ou seja, a das economias dirigidas centralmente, falhou miseravelmente, nunca criou prosperidade, ao contrário: apenas miséria, baseada na opressão e na violação dos direitos humanos. Isso é evidente e inquestionável, aferido em dados empíricos. Tanto é que os chineses, com “apenas” 30 anos de comunismo (até a emergência de Deng Xiaoping, após o falecimento de Mao) e que nunca tiveram a destruição de toda a base moral da sociedade, como conheceram os soviéticos, em seus 70 anos de comunismo, conseguiram retificar a sua trajetória econômico, justamente porque tinham líderes, como Deng, que conheceram o funcionamento capitalismo ocidental – ainda que desconhecendo os valores democráticos do Ocidente –, e enveredaram decisivamente pelo capitalismo com características chinesas, mas sempre preservando o monopólio do partido leninista, que nada mais é do que o mandarinato imperial tradicional, mas agora encarnado pelos quadros do PCC, também selecionados pelo mérito (como nos 800 anos de concursos imperiais).

No caso do Brasil, as principais diretrizes da ordem econômica sempre se guiaram mais pelo intervencionismo estatal do que pelo liberalismo de mercado, daí a razão de termos até experimentado uma espécie de “stalinismo industrial” durante os anos ascendentes do regime militar. Depois de alguns poucos anos de “neoliberalismo” – como reza a versão acadêmico-gramsciana dos partidários do social-estatismo –, voltamos decisivamente a uma alternativa ao capitalismo democrático de Bretton Woods, com mais estatismo, controle partidário das principais diretrizes no campo das políticas econômicas e, sobretudo, no âmbito da política externa. Foi o que tivemos nos anos gloriosos do lulopetismo econômico e diplomático. Resultou na maior crise recessiva de nossa história econômica e na exacerbação da corrupção política, como nunca vista em nossa trajetória republicana. De certa forma, a ordem alternativa do antiglobalismo bolsolavista – inspirada no nacionalismo tacanho de grupos da extrema direita americana – representa quase a mesma coisa com sinal inverso.

As evidências disponíveis nas últimas décadas confirmam amplamente que mercados globalizados, interdependência econômica, cooperação entre os países, liberdade de fluxos de investimentos e de capitais, movimentação de pessoas, de cérebros, tudo isso é muito melhor do que as alternativas do nacionalismo e do estatismo, como a própria experiência da China o demonstra, ainda que a globalização tenha seus custos temporários e setoriais. A ordem depreciativamente chamada de neoliberal, pelos opositores de direita e de esquerda, é nitidamente superior à sua contraparte mercantilista, do protecionismo nacionalista tacanho, como prometem certos “alternativos” ao mundo de Bretton Woods. O BRICS vem sendo levado, pela ação de duas grandes potências autocráticas, a uma alternativa anti-Bretton Woods, ou anti-OCDE, o que provavelmente não seria o mais adequado para o Brasil. Não sei se o grupo BRICS tem algum futuro se embarcar nessa canoa furada.

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 4189: 30 junho 2022, 10 p.


quarta-feira, 29 de junho de 2022

O Futuro do Grupo BRICS: webinar do IRICE, nesta quinta-feira, 30/06/2022, 17hs

O Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior-IRICE

e a Revista Interesse Nacional convidam para encontro sobre política externa, dia 30 de junho às 17 hs,  com foco no tema central:


 O Futuro do Grupo BRICS

 

Expositores

Embaixador Sarquis José Buainain Sarquis

Secretário de Comércio Exterior e Assuntos Econômicos , Itamaraty


Marcos Prado Troyjo, Presidente do Novo Banco de Desenvolvimento (NDB)


Paulo Roberto de Almeida,  Diplomata e professor; Diretor de Publicações do Instituto Histórico e Geográfico do DF


Moderador:  Rubens Barbosa,  Presidente do IRICE e Editor da Revista Interesse Nacional  

30 de junho às 17 hs

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sexta-feira, 18 de junho de 2021

Revolta de pastores e bispos da Igreja Universal na África do Sul contra a IURD; Crivella embaixador? - Gilberto Nascimento (Intercept)

Excelente matéria do Gilberto Nascimento para The Intercept: 


EX-PASTORES E BISPOS ORGANIZAM REVOLTA CONTRA IGREJA UNIVERSAL NA ÁFRICA DO SUL – PARA ONDE BOLSONARO QUER NOMEAR CRIVELLA

Racismo e imposição de vasectomia estão entre as denúncias encaminhadas ao governo sul-africano contra a igreja de Edir Macedo.

Gilberto Nascimento


The Intercept, 17 de Junho de 2021, 16h02

 

O REINO DE EDIR MACEDO começa a ruir. Ao menos na África. Depois de enfrentar um terremoto em Angola – com a perda do controle de sua igreja, pastores brasileiros expulsos, Record TV local suspensa e dirigentes acusados de lavagem de dinheiro e associação criminosa –, o bispo brasileiro, líder da Igreja Universal do Reino de Deus, se depara agora com problemas semelhantes na África do Sul.

É justamente para lá que o governo Bolsonaro indicou o bispo e ex-prefeito do Rio Marcelo Crivella, sobrinho de Edir Macedo, para o cargo de embaixador.

Bispos e pastores locais começaram a se rebelar contra a direção brasileira da igreja no início deste ano, e a revolta ganhou corpo nas últimas semanas. Além de organizarem um protesto, dissidentes acusam a ala brasileira de supostos crimes como lavagem de dinheiro, racismo e imposição de vasectomia aos pastores – um roteiro parecido com o de Angola.

“Os atuais pastores e suas esposas estão se revoltando contra o racismo, as injustiças, a lavagem de dinheiro e os privilégios na igreja”, me disse o ex-pastor sul-africano Luthando Jumba, um dos líderes do movimento. Ele tem se posicionado nas redes sociais contra a liderança brasileira da Universal.

As denúncias na África do Sul estão sendo encaminhadas à Comissão para a Promoção e Proteção dos Direitos das Comunidades Culturais, Religiosas e Linguísticas, órgão do governo local. Em fevereiro e março, o órgão recebeu queixas e colheu depoimentos de religiosos e familiares de pastores. Houve relatos de esterilizações forçadas, humilhações, maus-tratos e até supostos rituais satânicos, segundo noticiou a imprensa sul-africana.

Para defender os interesses de religiosos e ex-membros da Universal na África do Sul, os dissidentes se organizaram e criaram a Vision Trust Foundation. “Temos bispos, pastores, esposas de pastores e auxiliares. Os pastores estão falando conosco, mas não podem fazer isso publicamente ainda”, diz Jumba. Essa cautela se deve ao receio de represálias.

Em 16 de junho, quarta-feira, 16, um grupo de pastores e ex-pastores, obreiros e fiéis realizaram uma manifestação em frente à sede da Universal, em Joanesburgo. Os manifestantes pediram autorização oficial ao Departamento de Polícia Metropolitana para o ato, mas, na véspera, o evento acabou sendo proibido. Ainda assim, foi realizado.

Participaram cerca de 100 pessoas, segundo Jumba. O ato não reuniu mais religiosos, de acordo com o ex-pastor, em virtude de o país estar em lockdown parcial por causa da pandemia do coronavírus. Os manifestantes distribuíram um manifesto pedindo liberdade de expressão na igreja, o fim das campanhas de arrecadação, o fim do racismo e a saída do país de bispos racistas, não à vasectomia, fim do controle sobre as redes sociais dos pastores e construção de escolas e clínicas pela igreja.

‘A África acordou’

Jumba contou ter entrado na Universal em 1997 e exercido a função de pastor por 12 anos e meio, chegando a ser o segundo responsável na sede central, em Joanesburgo. Afirmou ter saído da igreja por vontade própria, “por causa do racismo e das injustiças” que teriam sido praticadas, de acordo com ele, por Marcelo Pires, bispo responsável pela Universal na África do Sul e nos países africanos de língua inglesa.

São acusações semelhantes às que a igreja sofreu em Angola. No final de 2019, um grupo de 330 bispos e pastores angolanos da Universal divulgou um manifesto com críticas e acusações ao comando da igreja. Em junho do ano passado, eles assumiram o controle da instituição no país.

A Reforma, como foi chamado o rompimento entre ex-bispos e ex-pastores e Edir Macedo, foi apoiada pelo governo. As denúncias de lavagem de dinheiro passaram a ser investigadas pelas autoridades e, em dezembro do ano passado, o governo angolano reconheceu os dissidentes como os novos líderes da Igreja Universal local.

A África acordou. É o momento de dar um basta.

Na África do Sul, Jumba me disse que “evidências” de lavagem de dinheiro estão sendo colhidas e serão encaminhadas às autoridades para possíveis investigações. “É hora de a África do Sul ser liderada pelos sul-africanos”, afirmou.

É um discurso semelhante ao do ex-pastor angolano Tavares Armando, que tem conclamado os seguidores da igreja em países como Moçambique, São Tomé e Príncipe, Cabo Verde e Madagascar a repetirem a experiência da revolta angolana.

“A África acordou. É o momento de dar um basta. O continente tem de ser respeitado. Os irmãos de língua inglesa da África do Sul já estão aderindo”, comemorou Armando em um vídeo.

“São as mesmas denúncias que os irmãos angolanos fizeram. Será que os irmãos angolanos combinaram? É claro que não há combinação. São acontecimentos em cadeia. Por que os mesmos crimes apontados em Angola – a ponto de Edir Macedo ser punido e expulso de Angola – podem ser verificados e investigados, que vai se ver que são os mesmos, telegraficamente e minuciosamente, cometidos em outros países”, completou.

O bispo angolano Felner Batalha, porta-voz da Reforma, afirma que o movimento de contestação à ala brasileira da igreja, iniciado em Angola, deve se repetir em muitos outros países.

“A Reforma vai ocorrer em todos os países. E é irreversível. Onde existe a Igreja Universal existem os mesmos problemas, como discriminação e a opressão”, ele me disse na semana passada. “Há uma necessidade de se voltar à essência do Evangelho e do Cristianismo, e essa é a finalidade da Reforma. Houve um desvio daquilo que são os princípios basilares do Cristianismo e do próprio Evangelho de Jesus Cristo”.

Crivella para acalmar os ânimos

Felner Batalha afirmou acreditar que a Universal pediu ao presidente Jair Bolsonaro a nomeação do bispo Marcelo Crivella na África do Sul justamente “por recear que a Reforma ecloda no país”.

O objetivo seria evitar um novo racha na Universal e também que novas rupturas na igreja se espalhem por países africanos. A indicação de Crivella ainda não foi oficializada. Caso se efetive, o ex-prefeito do Rio de Janeiro seria uma espécie de embaixador da Universal na África do Sul – e não, de fato, um embaixador do Brasil.

O sobrinho de Edir Macedo, no momento, não pode sequer sair do Brasil. Ele foi preso em dezembro do ano passado acusado por associação criminosa, lavagem de dinheiro e corrupção ativa e passiva. Em fevereiro, sua prisão foi revogada – mas seu passaporte, apreendido. Por isso, foi proibido pelo Supremo Tribunal Federal de deixar o país.

Sua nomeação para o cargo de embaixador dependeria de o STF rever essa decisão e também da aceitação de seu nome pelo governo da África do Sul e de uma aprovação após sabatina no Senado brasileiro.

Diplomatas ouvidos pelo Intercept consideraram a indicação “lamentável e um absurdo”. “Não é por ser judeu, católico, evangélico ou por não ter religião. É que o estado brasileiro é laico e, não me consta que, até hoje, bispo católico tenha sido indicado para ser embaixador”, me disse Celso Amorim, ex-ministro das Relações Exteriores do governo Lula.

Outro diplomata, embaixador e ex-ministro, que preferiu falar reservadamente, disse não ver chances de êxito na nomeação de Marcelo Crivella para a embaixada na África do Sul. O governo sul-africano pode nem aceitar, e o Senado também deve barrar, em sua avaliação.

Com o apoio de Bolsonaro, Crivella e a Universal se esforçam para tentar viabilizar a indicação. Em 8 de junho, o bispo e também cantor gospel – que fala inglês e zulu, língua dos povos originários do sul da África e morou na África do Sul nos anos 1990 –, postou nas redes sociais uma de suas canções, “África”.

No clipe, imagens do continente africano e uma inscrição em zulu, “Ngi Buyela”, que quer dizer: “Estou voltando para casa”.