O futuro do grupo BRICS
Paulo Roberto de Almeida
Diplomata, professor
(www.pralmeida.org; diplomatizzando.blogspot.com)
Notas para subsidiar participação em evento sobre o BRICS; 30/06/2022; 17hs.
A primeira questão que vem à baila, quando se participa de um webinar que tem por título “O futuro do grupo BRICS”, depois do início da invasão da Ucrânia pela Rússia, em 24 de fevereiro de 2022, é justamente a de saber se o grupo, do qual a Rússia é um dos membros mais relevantes, tem algum futuro, a partir de uma guerra de agressão absolutamente cruel e desumana em seu portfólio internacional. Trata-se, obviamente, não só de uma violação flagrante da Carta da ONU e todos os princípios conhecidos do Direito Internacional, mas também da prática deslavada e aberta de crimes de guerra, talvez similares aos que levaram líderes civis e militares nazistas ao Tribunal de Nuremberg, em 1946.
Apresso-me, contudo, em dizer que não existe, aparentemente, nenhum risco para a sobrevivência e a existência continuada desse grupo, mesmo com a continuidade dessa guerra inaceitável sob todos os critérios do direito e da diplomacia. Acredito que ele tem, sim, futuro, ainda que este seja patético e agora manchado por crimes que atingem diretamente seus pressupostos de atuação. Tenho duas razões para admitir a continuidade momentânea – não sei se futura – desse grupo que desafia as regras gerais de constituição de grupos: uma é de ordem burocrática, a outra de caráter político, embora desafiadora das concepções subjacentes a tal conceito de política.
A história nos ensina que uma vez criada um novo órgão de consulta e coordenação entre Estados, dificilmente ele será extinto, mesmo sobrevivendo como dinossauro escapado de um grande desastre: interesses burocráticos, suposta credibilidade de seus membros, letargia dos programas iniciados na origem, novas iniciativas que justificam diárias e passagens dos funcionários engajados no exercício, desejo de continuar aparecendo na mídia, tudo se combina para manter respirando algum organismo que já se desviou de suas funções originais. Pela declaração emitida em junho de 2022, por ocasião da 14ª reunião de cúpula, organizada pela China, pode-se constatar que existem amplas evidências de que o grupo cresceu demasiado, já virou uma grande organização, e por isso mesmo ela precisa continuar se alimentando dela mesma. Pela burocracia já criada em torno dele, concluo, portanto, que o BRICS vai sim continuar.
Politicamente, o BRICS tampouco parece perto do seu esgotamento diplomático, a julgar pela declaração ministerial liberada pelos chanceleres do BRICS, em maio último, preparatória ao encontro de cúpula, no dia 28 de junho sob comando chinês. E o que, exatamente, disseram os chanceleres do BRICS nessa declaração, que parece situar-se num universo paralelo ao dos simples mortais, que somos todos nós? Leio isto, logo no terceiro parágrafo da declaração (ênfases agregadas, por necessárias):
3. Os Ministros reiteraram seu compromisso com o multilateralismo por meio da defesa do direito internacional, inclusive os propósitos e princípios consagrados na Carta das Nações Unidas como sua pedra angular indispensável, e com o papel central das Nações Unidas em um sistema internacional no qual Estados soberanos cooperam para manter a paz e a segurança, promover o desenvolvimento sustentável, garantir a promoção e proteção da democracia, dos direitos humanos e das liberdades fundamentais para todos e promover a cooperação baseada no espírito de respeito mútuo, justiça e igualdade.
Esse parágrafo 3º da declaração ministerial é praticamente idêntico ao parágrafo 5º. da declaração de cúpula, como se pode constatar logo a seguir (ênfases idem):
5. We reiterate our commitment to multilateralism through upholding international law, including the purposes and principles enshrined in the Charter of the United Nations as its indispensable cornerstone, and to the central role of the United Nations in an international system in which sovereign states cooperate to maintain peace and security, advance sustainable development, ensure the promotion and protection of democracy, human rights and fundamental freedoms for all, and promoting cooperation based on the spirit of mutual respect, justice and equality.
Qualquer pessoa que acompanhe o noticiário internacional, desde o dia 24 de fevereiro, ou até mesmo antes, a partir da acumulação de tropas russas e reiteradas ameaças feitas pelo presidente russo ao governo da Ucrânia, pode ficar estupefata ao ler que os ministros do BRICS reiteram seu compromisso com a Carta das Nações Unidas, que eles apoiam um sistema no qual os Estados cooperação com a paz e a segurança e, para maior estupor, a promoção e a proteção da democracia, dos direitos humanos, etc., etc., etc.
Pode-se perguntar onde estiveram os ministros desde o dia 24 de fevereiro, e como podem os líderes do grupo conseguir ignorar tudo o que ocorreu, na vida real, a partir dali, em TOTAL CONTRADIÇÃO com o que está descrito nesses dois parágrafos, não só fantasiosos, como também falsos e mentirosos. Esta é, para mim, uma prova cabal de que o grupo BRICS não só pode sobreviver, como poderá ter, com certeza, um futuro promissor diante de si, ainda que seja difícil imaginar que tipo de futuro seja esse, não só em função da continuidade de uma guerra devastadora, e criminosa, como também da credibilidade que possa ter o grupo ao continuar sustentando um de seus membros, cujo presidente poderá – e deveria – ser processado e incriminado pelo Tribunal Penal Internacional, por crimes de guerra, certamente por crime contra a paz e possivelmente por crimes contra a humanidade. Que sinalização ao mundo pretendem dar os seus líderes com tal tipo de declaração?
Acredito que se trata de uma situação constrangedora, pelo menos para três dos países membros do Brics que são, supostamente, democracias consolidadas, com alternância de partidos no governo, por meio de eleições livres e transparentes, e não regimes autocráticos como são, de fato, dois dos seus mais poderosos membros. Como continuar defendendo a Carta da ONU, a não intervenção nos assuntos internos de outros países, o não recurso à guerra – sobretudo não provocada –, a solução de controvérsias por meios pacíficos, enfim, o respeito à vida e o patrimônio de nações soberanas? Os quatro outros membros, que não diretamente responsáveis por esses crimes e violações flagrantes do Direito Internacional, pretendem continuar apoiando, ou vão insistir em se eximir, de fugir à realidade, em face das provas irrefutáveis que estão todos os dias no noticiário internacional? Eles por acaso não se dão conta de que essa realidade, transparente na mídia mundial soa como um desmentido cruel, até patético, em face do que está escrito naquela declaração? Como podem ser cegos, surdos e mudos no confronto com fatos cristalinos que desmentem cada uma dessas palavras?
Existe uma terceira razão, de ordem prática, ou operacional, que promete manter o grupo BRICS ao nível da água no futuro imediato, embora ameaçando submergir, caso a situação da guerra se torne incontornável na agenda internacional. Ela se explica pela necessidade ressentida pela Rússia, talvez pela própria China, de encontrar nos demais membros do grupo BRICS um pequeno sustentáculo do teatro de absurdos grotescos que se desenvolve no território ucraniano desde o dia 24 de fevereiro de 2022, e talvez desde antes, não apenas nas semanas imediatamente antecedentes – com a farsa, diversas vezes, repetida, de que não se pretendia atacar a Ucrânia – ou mesmo desde antes, mas sobretudo em 2014, quando a Rússia atacou covardemente os territórios da Ucrânia oriental e invadiu, sequestrou, amputou a península da Crimeia da soberania do seu vizinho, a pretexto de proteger nacionais que estariam sendo objeto de nada menos do que genocídio. Nada disso figura nos textos das duas declarações, a ministerial e a da cúpula, mas até quando se poderá manter a fantasia?
A Rússia precisa, desesperadamente, de algum apoio desses membros de um grupo que ela mesma criou, com a imediata solicitude do Brasil, na primeira década deste século. Salvo estes seus “colegas” de grupo, e mais algumas patéticas ditaduras em alguns poucos pontos do planeta, a Rússia conta, se tanto, com a indiferença benigna, ou malévola (segundo os casos), de uma parte dos demais países da comunidade internacional. Talvez a China – que hipotecou solidariedade prática para com a Rússia, sob a forma de uma “aliança sem limites”, pouco antes da invasão e da terrível guerra de agressão, conduzida por um vizinho que já lhe amputou territórios no passado – também necessite dessa “solidariedade cúmplice” de outros membros do grupo BRICS, pois que imagina, eventualmente, que possa ter de empreender aventura similar em outras paragens.
Esta terceira razão talvez até sobrepuje as duas primeiras, a burocrática e a política-diplomática, pois se trata de um oportunismo dos mais vis, baseado num cálculo político dos mais sórdidos, o de que a assim chamada “operação especial” responde a uma necessidade legítima de segurança. A justificativa se deve à existência, no mundo, um hegemon com pretensões à supremacia estratégica absoluta, que atua de forma arrogantemente unilateral, e que pretende submeter todos os demais países a seus interesses nacionais, à sua visão do mundo, aos seus valores e princípios: democracia, direitos humanos, liberdades. Tais elementos, inerentes às economias de mercado, não devem combinar com outros princípios e valores que sustentam Estados, certamente soberanos, mas que pretendem preservar regimes políticos organizados em torno de outros princípios, uma organização econômica mais bem determinada pelo Estado do que pelos mercados e uma definição própria do que sejam as “formas de expressão” aceitáveis para seus dirigentes. Vários dos elementos constitutivos de seus regimes políticos podem, eventualmente, não estar de acordo com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, aquela peça de papel de adesão voluntária, aprovada em 1948, depois que o mundo conseguiu dar cabo de ditaduras hediondas, responsáveis por milhões de mortos inocentes, por um genocídio jamais visto na história da humanidade e por uma destruição material nunca antes enfrentada pelas sociedades contemporâneas.
Mas, vejam, não se trata exatamente de um conflito ideológico, entre totalitarismos e democracias, como visto durante a Segunda Guerra Mundial, pois não parece mais haver uma disputa por modelos alternativos, opostos, de desenvolvimento econômico e político. O que se trata neste caso é o de uma percepção de ameaça à segurança, em vista da existência de uma aliança militar que foi criada justamente quando havia essa tremenda diferença entre duas visões opostas do mundo, coisas que parecem ter ficado para trás, embora talvez não tão atrás como pensávamos. Essa percepção, em legítima, de uma ameaça potencial à segurança de um Estado membro da ONU deveria ter, segundo o que reza a própria Carta da ONU, levada à consideração dos membros da ONU, eventualmente ao conhecimento do seu Conselho de Segurança, para deliberação e possível ação. É assim que deveriam proceder, de boa fé, os membros da ONU, segundo o que está disposto nos principais artigos da Carta. Não foi isso, infelizmente, o que ocorreu. Registre-se que a ação da Rússia sequer obedeceu antigas leis e costumes da guerra, que a despeito de serem proibidas formalmente, logo nos primeiros artigos da Carta, podem ser autorizadas em razão de ameaça credível ou de ataque iminente, o que não desobriga o Estado de levar isso ao conhecimento do órgão que cuida da paz e da segurança internacionais, do qual, aliás, o Estado agressor é, pasmem, membro permanente, ainda dotado do poder de veto sobre quaisquer de suas resoluções.
Volto à pergunta: poderia existir algum futuro para o grupo BRICS, em face dessa terrível realidade?
Acredito que sim, e por isso prognostiquei um futuro para o grupo BRICS, ainda que, realmente, eu não consiga definir que tipo de futuro será esse, com a continuidade da guerra e a permanência das violações à Carta da ONU, já apontadas pela Corte Internacional de Justiça, em resolução que ordenou a cessação imediata da agressão. O problema aqui é que a CIJ não tem dentes, ou seja, não pode tornar realidade qualquer uma de suas decisões a menos de uma tomada de posição concordante do Conselho de Segurança, um órgão notoriamente paralisado pelo absurdo poder de veto concedido a cinco de seus membros permanentes, inclusive quando um deles é o violador incontestável das obrigações contidas na Carta da ONU (e não deveria, portanto, participar do processo decisório).
À vista da declaração dos chanceleres de 19 de maio e, a partir da nova declaração de cúpula dos líderes dos Brics adotada em seu 14º encontro, pode-se afirmar, sim, que o grupo BRICS tem a sua continuidade assegurada. Mas eu me pergunto como o mundo, ou pelo menos os países ocidentais defensores dos princípios consagrados naquela Carta, olharão o grupo BRICS a partir de agora. Não pretendo sequer desculpar o Brasil, que aparentemente ficou do lado do Direito, ao ratificar as resoluções da ONU condenando a Rússia pela invasão, mas que, ao cabo de uma leitura mais cuidadosa das suas declarações de votos, mostrou-se, como provavelmente queria o presidente, objetivamente leniente para com o agressor e subjetivamente solidário com o Estado perpetrador das violações à Carta da ONU e ao direito internacional, por razões até aqui muito mal explicadas. Aparentemente, o que motivou o chefe de Estado brasileiro a adotar essa atitude de leniência, e até de conivência, para com o agressor foram algumas toneladas de fertilizantes. Isso seria tudo?
Mas nem vou considerar aqui as muitas declarações confusas ou ambíguas do próprio presidente, pois o que ele mesmo diz não conta, absolutamente, para efeitos diplomáticos. O que ele disse ou diz, no cercadinho do Alvorada, ou até em encontros internacionais, não tem a mesma validade que declarações formais no âmbito da ONU e seus órgãos acessórios, que expressam, verdadeiramente, a posição do país no plano internacional. Deixemos, portanto, de lado esse personagem patético que nos representa e que nos envergonha aos olhos do mundo inteiro, para maior desgosto da nossa diplomacia profissional.
Retirando toda a roupagem textual, feito no diplomatês habitual, pelos delegados brasileiros nesses órgãos – CSNU, Assembleia Geral e Conselho de Direitos Humanos –, o que se extrai é o seguinte: o Brasil quer a “cessação de hostilidades”, como se elas fossem conduzidas reciprocamente, e não unilateralmente, por parte de uma grande nação bélica contra um vizinho menos poderoso; o Brasil quer a negociação para uma solução pacífica das controvérsias, levando em consideração “as preocupações de segurança das partes”, como se a Ucrânia representasse qualquer tipo de ameaça à segurança do agressor; o Brasil se opõe à imposição de sanções unilaterais, ou seja, não aprovadas pelo CSNU, como se este pudesse hipoteticamente aprovar o que quer que seja, sem que a Rússia exercesse o seu direito de veto e como se um agressor devesse sair impune dos crimes cometidos, ou como se ele pudesse ser contido apenas por palavras de boa vontade; finalmente, o Brasil também se opõe à entrega de armas à Ucrânia, como a dizer ao governo e ao povo ucraniano o seguinte: “desistam, não tentem resistir, pois vocês lutam contra um Estado mais poderoso, renunciem à resistência e entreguem-se à vontade do agressor”.
Mas, voltando agora ao tema do futuro do grupo BRICS, é preciso, antes de qualquer prognóstico, voltar ao seu passado: como e por que ele apareceu no cenário dos muitos grupos já existentes no anárquico sistema de relações internacionais interestatais. Ele foi concebido, inicialmente, como todos sabem, por um economista de banco de investimentos pensando unicamente num portfólio capaz de trazer retornos generosos, em vista das perspectivas otimistas que então se desenhavam, naqueles idos, início do século, em termos de crescimento para os quatro primeiros – e mais legítimos – membros do acrônimo. Mas, o que era tão somente um exercício de projeção econômica, visando ganhos privados, encantou diplomatas relativamente descontentes com a ordem mundial prevalecente – a do G7, da OCDE, OMC, Bretton Woods e o que gira em volta – e motivou-os a transpor uma sigla dotada de irresistível apelo de mercado para o universo da diplomacia. O novo grupo deveria supostamente se ocupar daquela dimensão examinada no estudo original dedicado ao BRIC: crescimento econômico, participação no comércio internacional, inovação tecnológica e promoção do desenvolvimento econômico e social de seus respectivos povos.
A agregação dos quatro países, quatro economias ditas emergentes e dinâmicas, pelo menos naquele momento, pode ter motivado o entusiasmo dos proponentes iniciais de um novo grupo, provavelmente já pensando, desde aquele primeiro momento, em rivalizar com o G7, ainda que a Rússia fizesse formalmente parte desse grupo exclusivo de grandes potências, que se converteu em G8, mas unicamente para assuntos políticos, uma vez que o velho G7 continuasse a se unir para tratar dos assuntos econômico-financeiros. Brasil e Rússia, desde 2006, tiveram a ideia do barco, no qual logo embarcariam dois gigantes demográficos, e como tal foi lançado ao “mar” em Ecaterimburgo, em 2009. A China logo tratou de complementar o grupo com um representante africano, uma vez que mantinha, desde vários anos, um portentoso programa de investimentos naquele continente. O que não ficou claro, até o presente momento, foi a elaboração de estudos técnicos e diplomáticos, feitos pelas respectivas chancelarias, sobre a rationale que presidiu à transformação de um simples acrônimo intangível – ou apenas materializado como carteira de investimentos para os portfólios de grandes fundos institucionais – em um bloco econômico-diplomático. Não se conhecem policy papers sustentando a ideia de um grupo estruturado a partir de três economias euroasiáticas e uma outra da América do Sul. Se existem, eles permanecem não disponíveis, desde que Sergei Lavrov e Celso Amorim se decidiram a esse respeito.
Do ponto de vista dos interesses nacionais brasileiros, a rationale para a criação do então grupo BRIC, como grupo formal, deveria estar embasada numa definição clara de uma estratégia diplomática apontando sua funcionalidade sob a perspectiva desses interesses, que sempre deve ser o desenvolvimento econômico e social da nação, que é o único critério e o objetivo realmente meritório para tal iniciativa. Naquela conjuntura foram estabelecidos os objetivos nacionais brasileiros que deveriam ser alcançados por meio ou através do grupo? Foram alinhadas, finalmente, as diretrizes de políticas a serem seguidas, levando em conta nossa capacidade de articulação na própria região – que é, finalmente, onde o Brasil possui certo poder de atração e de iniciativa –, assim como no âmbito global, onde nossa influência é bem menos determinante? Mais importante do que isso, talvez seja a própria Grande Estratégia brasileira — se alguma vez isso existiu — para a projeção global do país e de sua diplomacia. Em outros termos: por aqueles três países como parceiros, e não outros? O que havia de estratégico, de exclusivo e de determinante nessa particular geografia política? Seria o fascínio criado em torno de um tal de Sul Global, mais referido, sobretudo no plano acadêmico, do que exatamente definido geograficamente, ou geopoliticamente?
Pode-se duvidar da funcionalidade desse unicórnio do Sul Global para a consecução dos grandes objetivos diplomáticos do Brasil, mesmo incluindo no pacote das miopias atraentes a sempre mencionada cadeira permanente no Conselho de Segurança, na hipótese de uma reforma da Carta e de uma ampliação do seu órgão decisório por excelência. Qual o significado e a importância real, para o Brasil, de se unir especificamente a esses três parceiros, e não a outros, como também poderia ser o caso, talvez até com maior substância de propósitos e uniformidade de características sociopolíticas, por exemplo, do G4, constituído justamente para fins de reforma da Carta da ONU e a ampliação do seu Conselho de Segurança. O G4 constituído para tal finalidade, tinha a participação da Alemanha, do Japão e da Índia, ou seja, um grupo formado por quatro grandes democracias. O G4 “onusiano” não poderia, igualmente, ser a base de um grupo socioeconômico voltado para a causa da melhoria do sistema multilateral, com o objetivo básico do desenvolvimento econômico e social dos países mais pobres, em lugar de parecer uma alternativa ao G7, como parece ser o Brics? Tais países democráticos, assim como outros europeus e os próprios Estados Unidos, representariam algum obstáculo ao desenvolvimento econômico e social do Brasil, assim como a outras iniciativas de sua diplomacia tendentes aos mesmos objetivos em âmbito regional e para o conjunto dos países em desenvolvimento?
Todas essas questões colocadas acima poderiam ter animado um rico debate entre os diplomatas profissionais, constituiriam um grande tema para alguma área de policy planning de sua chancelaria, e deveriam, supostamente, estar no centro de um processo decisório seriamente estruturado em nível do governo como um todo, em lugar de resultar unicamente da decisão de dois chanceleres servindo a dois líderes desejosos de se contrapor ao G7.
Em última instância, o que está em causa, não apenas na questão do BRICS, não é, exatamente, a constituição de mais um grupo político-diplomático, mas a validade e a funcionalidade, para fins de desenvolvimento econômico e social, de concepções diferentes, até alternativas, sobre como deve ser organizado o sistema econômico mundial, atualmente realmente interdependente, até onde se pode ver, depois da implosão do socialismo de tipo soviético (aliás, precedido, no caso da China, por uma longa marcha em direção à economia de mercado, mas com “características chinesas”, ou seja, preservado o monopólio político do partido comunista). Para sintetizar a essência dessas concepções diferentes, eu chamaria uma delas de “ordem de Bretton Woods” e a outra de “ordem estatal-intervencionista”.
A ordem de Bretton Woods trouxe prosperidade e bem-estar ao mundo, preservando democracia, liberdades e direitos humanos. A ordem alternativa, a do socialismo, ou seja, a das economias dirigidas centralmente, falhou miseravelmente, nunca criou prosperidade, ao contrário: apenas miséria, baseada na opressão e na violação dos direitos humanos. Isso é evidente e inquestionável, aferido em dados empíricos. Tanto é que os chineses, com “apenas” 30 anos de comunismo (até a emergência de Deng Xiaoping, após o falecimento de Mao) e que nunca tiveram a destruição de toda a base moral da sociedade, como conheceram os soviéticos, em seus 70 anos de comunismo, conseguiram retificar a sua trajetória econômico, justamente porque tinham líderes, como Deng, que conheceram o funcionamento capitalismo ocidental – ainda que desconhecendo os valores democráticos do Ocidente –, e enveredaram decisivamente pelo capitalismo com características chinesas, mas sempre preservando o monopólio do partido leninista, que nada mais é do que o mandarinato imperial tradicional, mas agora encarnado pelos quadros do PCC, também selecionados pelo mérito (como nos 800 anos de concursos imperiais).
No caso do Brasil, as principais diretrizes da ordem econômica sempre se guiaram mais pelo intervencionismo estatal do que pelo liberalismo de mercado, daí a razão de termos até experimentado uma espécie de “stalinismo industrial” durante os anos ascendentes do regime militar. Depois de alguns poucos anos de “neoliberalismo” – como reza a versão acadêmico-gramsciana dos partidários do social-estatismo –, voltamos decisivamente a uma alternativa ao capitalismo democrático de Bretton Woods, com mais estatismo, controle partidário das principais diretrizes no campo das políticas econômicas e, sobretudo, no âmbito da política externa. Foi o que tivemos nos anos gloriosos do lulopetismo econômico e diplomático. Resultou na maior crise recessiva de nossa história econômica e na exacerbação da corrupção política, como nunca vista em nossa trajetória republicana. De certa forma, a ordem alternativa do antiglobalismo bolsolavista – inspirada no nacionalismo tacanho de grupos da extrema direita americana – representa quase a mesma coisa com sinal inverso.
As evidências disponíveis nas últimas décadas confirmam amplamente que mercados globalizados, interdependência econômica, cooperação entre os países, liberdade de fluxos de investimentos e de capitais, movimentação de pessoas, de cérebros, tudo isso é muito melhor do que as alternativas do nacionalismo e do estatismo, como a própria experiência da China o demonstra, ainda que a globalização tenha seus custos temporários e setoriais. A ordem depreciativamente chamada de neoliberal, pelos opositores de direita e de esquerda, é nitidamente superior à sua contraparte mercantilista, do protecionismo nacionalista tacanho, como prometem certos “alternativos” ao mundo de Bretton Woods. O BRICS vem sendo levado, pela ação de duas grandes potências autocráticas, a uma alternativa anti-Bretton Woods, ou anti-OCDE, o que provavelmente não seria o mais adequado para o Brasil. Não sei se o grupo BRICS tem algum futuro se embarcar nessa canoa furada.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 4189: 30 junho 2022, 10 p.
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