Alguém esperava que fosse diferente? Por que a China deixaria de usar o Brics para os seus próprios interesses nacionais?
Em 2003, quando foi pela primeira vez à China como presidente do Brasil – a despeito de ter sido desafiado com uma obstrução chinesa a importação de soja OGM do Brasil –, Lula se dispôs a conceder à China, antes do prazo regular previsto no acordo de acesso do país asiático ao Gatt-OMC, o status de economia de mercado, no que foi barrado pela decidida oposição dos nossos bravos industriais da CNI e da FIESP. Também propôs, ingenuamente, um acordo de livre comércio entre o Mercosul e a China, que tampouco voltou a ser mencionado.
Mas, desde o início, convidada por Brasil e Rússia para fazer parte do BRIC, ela aceitou imediatamente e já passou a cuidar dos seus interesses, incorporando a África do Sul ao bloco, que passou a ser conhecido como BRICS. O NDB fica em Xangai e as declarações do BRICS refletem basicamente os interesses da diplomacia chinesa, agora mais decidida a se contrapor ao G7, Otan, UE e à agenda ocidental.
Paulo Roberto de Almeida
Como China usou Brics para se contrapor ao Ocidente
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A China sediou nesta semana a 14ª cúpula do Brics, realizada virtualmente pelo terceiro ano consecutivo. Eventos do tipo costumam ser apenas uma demonstração pública de vários termos acordados meses antes por equipes diplomáticas dos países envolvidos, mas a reunião deste ano trouxe uma China mais altiva, preparada para usar o bloco como contraponto às iniciativas de influência global dos Estados Unidos.
Xi deu o tom ao evento logo na quarta (22), falando em uma reunião de negócios paralela ao evento principal.
Atacou os EUA e afirmou que "tragédias do passado" ensinaram à humanidade que "hegemonia, política de grupo e confronto de bloco não trazem paz ou segurança, mas guerras e conflitos";
Criticou as sanções ocidentais à Rússia após a invasão da Ucrânia, chamando-as de "faca de dois gumes", capaz de "afetar a economia global".
A diplomacia chinesa foi além: sugeriu um acordo de livre comércio entre os cinco membros do bloco.
O vice-presidente do comércio chinês, Wang Shouwen, defendeu a ideia dizendo que esse seria "um meio muito importante para explorar o potencial comercial que a China está disposta a discutir com outros países do Brics".
Um tratado do tipo certamente levaria anos para ser concluído, visto o impacto da competição chinesa nas economias dos demais membros. O anúncio tem um objetivo: tentar atrair a Índia, vizinho e país-membro do Quadro Econômico Indo-Pacífico (IPEF), iniciativa comercial liderada pelos americanos para limitar a influência chinesa na economia regional.
Isolada dos principais fóruns de governança internacionais após invadir a Ucrânia, a Rússia endossou os apelos chineses. Chefe do Banco Central russo, Serguei Storchak foi além, sugerindo a criação de um sistema financeiro independente do Brics respaldado não em dólar, mas em yuan, a moeda chinesa. Se prosperar, a ideia ajudaria Moscou a driblar o bloqueio ao sistema bancário Swift, além de ajudar na internacionalização do câmbio chinês.
Por que importa: a China já discute abertamente a possibilidade de ampliar o número de membros do bloco, proposta vista com reserva pelo Brasil, e agora dá indícios de que quer transformar o clube em uma das suas principais iniciativas de contraponto ao Ocidente.
Embora isso signifique mais investimentos chineses no curto e no médio prazo, no longo, pode significar um desafio diplomático ao Brasil e à Índia, historicamente alinhados a Washington;
Se o Brics se tornar um fórum de contestação à hegemonia ocidental, americanos e europeus certamente reagiriam de forma a minar a influência do bloco.
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