Ernesto Araujo, ministro das Relações Exteriores, ao invés de fazer diplomacia, aproveitou seu tempo ocioso para estapear Slavoj Zizek, num texto entitulado ‘Chegou o Comunavírus’.
Zizek é um controverso pensador esloveno, mestre em inverter o senso comum, ao ponto de simultaneamente abraçar a esquerda e atacar o politicamente correto.
Em meio a pandemia, Zizek, no recém publicado livreto ‘Vírus’, diz que a ocasião é oportuna para o ressurgimento de idílicos sentimentos coletivistas. Afinal, como se percebe, estamos todos na mesma tempestade, mas em barcos diferentes.
Invocar a práxis comunista é fazer operações de resgate, acolher os mais desafortunados, é ultrapassar as fronteiras nacionais, é a união de todos contra um inimigo comum (ao invés do salve-se-quem-puder anarco-capitalista).
Mas, como toda fé exige seu dízimo, esse preço é pago com a exacerbação dos aparatos de controle social, ao modo neo-orweliano chinês. Sobre esse último ponto, como bem observa Araújo, Zizek revela-se ambiguamente omisso.
De fato, não se pode perder do horizonte que a pandemia vai, mas o Estado mutante ficará. Por outro lado, é incessibilidade volver-se, nesse instante, contra sentimentos que inspiram a solidariedade.
Araújo, em seu blog, Metapolítica Brasil, deita seu fígado contra Zizek. O ataque, com pitadas de histerismo, mostra o embaixador, um homem reprimido pelo pragmatismo que a diplomacia exige, tendo que despejar em Zizek a hostilidade que gostaria de manifestar contra a China.
O desespero tem suas causas. A pandemia é um dos poucos exemplos, assim como a causa ecológica, onde as soluções puramente liberais (no sentido clássico) parecem insuficientes: Quem pode ver-se contra uma OMS, ou SUS forte? Quem pode ver-se contra um mínimo de medidas restritivas coordenadas por um agente público centralizado de vigilância sanitária? Quem pode ver-se contra medidas econômicas contra-cíclicas e a suspensão momentânea da rigidez fiscal? Além do mais, tudo o que não queremos ver no momento são expressões do egoísmo.
Se nosso momento econômico, antes, permitia a reconstrução, agora voltamos a terra arrasada, e a arrogância terá seu preço.
O presidente eleito, que teve a oportunidade de unir o país, preferiu expandir a fissura de onde brotou sua candidatura, e fazer dessa caverna um poderoso bunker, a fim de acomodar sua crescente família.
Ao invés de encarnar a solução, agora acuado, a cada dia que passa, dobra sua aposta na divisão, assim como fez o PT.
O covid-19, por contraste, acabou revelando esse outro mal, a genese problemática de um governo, agora reduzido a puro ressentimento, em estado de choque e negação profunda, limitado a enxergar apenas seu próprio drama e cego para as mortes que avançam.
Contudo, o efeito placebo da patológica fé messiânica não atuará sem limites. O vírus do comunismo não pode ser combatido com a cloroquina da sociopatia. Como bem deve saber Zizek, os movimentos dialéticos exigem a internalização dos opostos, enquanto a foraclusão é mecanismo das psicoses.
A negação e a demência não são caminhos possíveis. Assim, tampouco, a liberdade restringida hoje não pode perpetuar-se, fazendo deste estado de emergência um eterno estado de exceção.
O custo de parar essa pandemia não pode ser a servidão eterna num Estado policialesco. Nossas únicas opções não podem estar entre a rendição aos mecanismos de controle social, desejáveis dos sistemas autoritários, e a sociopatia.