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sexta-feira, 21 de fevereiro de 2025

Julgamento de golpe de Estado é vitória histórica da democracia - Marina Amaral (Agência Pública)


Julgamento de golpe de Estado é vitória histórica da democracia

Marina Amaral
Diretora Executiva da Agência Pública

A denúncia da Procuradoria-Geral da República (PGR), entregue ao Supremo Tribunal Federal (STF) nesta terça-feira, sobre o golpe de Estado, em marcha de julho de 2021 a 8 de janeiro de 2023, sob liderança do ex-presidente Jair Bolsonaro, tocou os corações brasileiros machucados pela impunidade dos ditadores, torturadores e assassinos do golpe de 1964. 

Afinal, eles ainda estão aqui, mas desta vez podem ser julgados e punidos, de acordo com a acusação robusta e minuciosa da PGR, pelos crimes de golpe de Estado, abolição violenta do estado de direito e de organização criminosa “com o objetivo de impedir o regular funcionamento dos Poderes da República (art. 359-L do Código Penal) e depor um governo legitimamente eleito (art. 359-M do Código Penal)”.

E a denúncia vai além, estabelecendo a conexão entre a marcha golpista iniciada em 2021 e os crimes de 8 de janeiro, atribuindo, portanto, à mesma organização criminosa também os crimes de dano qualificado pela violência e grave ameaça contra o patrimônio da União “em investida ocorrida contra as sedes do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal”.

Um avanço importante em relação ao inquérito da Polícia Federal (PF), como observa o advogado criminalista Rafael Borges, estudioso dos crimes contra o Estado de Direito. Em excelente entrevista à Agência Pública, Borges destaca que o “grande mérito da denúncia da PGR” é a comprovação de que o 8 de janeiro não foi fruto de uma ação popular espontânea, mas “a face violenta desse conjunto de preparativos, articulações de conjunturas, de maquinações que vinham sendo feitas desde 2021”. 

Entre os 33 denunciados, além de Bolsonaro, fulguram as quatro estrelas dos generais Braga Netto, Augusto Heleno, Paulo Sérgio Nogueira e Estevam Teophilo, além do almirante da Marinha Almir Garnier.

“ Viúvos do golpe de 1964, ressentidos com as investigações da Comissão da Verdade, ciosos de seus privilégios e inconformados com a democracia vigente no país, militares de alta patente, que retomaram o espaço político na derrubada de Dilma Rousseff e ascenderam no governo Temer, reabilitaram o ex-capitão do Exército, proscrito depois de planejar atos terroristas, para que os representasse nas urnas, quando se cogitava a possibilidade de o presidente Lula poder concorrer às eleições.
O que, aliás, é bom lembrar, provocou os tuítes ameaçadores do general Villas Bôas, então comandante do Exército e depois mentor de boa parte dos generais palacianos, às vésperas da votação de um habeas corpus de Lula pelo STF, em abril de 2018. Tuítes esses elaborados em conjunto com o Alto-Comando do Exército, como relatou o próprio Villas Bôas, que confessou ter planejado intervenção militar se Lula fosse solto.

Lula continuou na cadeia até 2019, Bolsonaro foi eleito, levando os militares para o governo, mas a queda de sua popularidade diante da morte de mais de 700 mil brasileiros pela covid, boa parte delas motivada pela má condução de seu governo diante da pandemia, e a anulação da condenação de Lula, em março de 2021, fizeram soar o alarme dos golpistas. Foi a partir daí, segundo a PGR, que a organização criminosa passou a atuar, disseminando mentiras sobre a segurança e isenção do sistema eleitoral para preparar o terreno para a derrubada do Estado democrático. 

Não por acaso, em julho daquele ano, o general Mário Fernandes tornou-se secretário-executivo da Secretaria-Geral da Presidência. Preso em novembro de 2023 como suspeito de planejar atividades golpistas violentas como o assassinato de autoridades, como Alexandre de Moraes, o presidente Lula e o vice Alckmin, revelados no inquérito da PF, Fernandes foi comandante dos kids pretos, encarregados do “trabalho sujo” do golpe de Bolsonaro, incluindo a articulação e a radicalização dos acampamentos nos quartéis e os atos golpistas, como o de 8 de janeiro. 

Tudo feito com a anuência e liderança de Jair Bolsonaro, segundo a PGR, que destaca eventos, presenciados por todos nós, que apontavam na direção do golpe. Entre eles, a live de 29 de julho de 2021, quando Bolsonaro incitou publicamente a intervenção das Forças Armadas, e o discurso do ex-presidente em 7 de setembro de 2021, quando transmitiu uma mensagem explícita de golpe em caso de derrota nas urnas em 2022. 

Em 2022, a conspiração escalou com a reunião com os embaixadores estrangeiros, em julho, transmitida ao vivo pelo YouTube, em que o então presidente repisou falsidades contra as urnas e o TSE. Depois a PF descobriria a Abin paralela; a minuta do golpe – segundo a delação de Mauro Cid, editada pelo próprio presidente e por ele apresentada aos comandantes das Forças Armadas; planos de uso das operações da Garantia da Lei e da Ordem (GLO) para impedir a posse de Lula, flagrados com o general Braga Netto; as pressões feitas para que o comandante do Exército, Gomes Freire, aderisse ao golpe, as operações da Polícia Rodoviária Federal para impedir a votação de eleitores de Lula.

Os atentados que se seguiram à diplomação de Lula no TSE até o 8 de janeiro foram o desfecho desse plano que, felizmente, não apenas fracassou em seu principal objetivo, mas foi minuciosamente reconstruído pela PF e PGR e poderá levar à prisão de Bolsonaro, militares e civis golpistas. 

Das investigações da PF à peça da PGR, prevaleceram a competência, a transparência e o respeito pelos fatos, pelas leis e ritos institucionais, o que traz alívio para nós, cidadãos, que queremos viver em um país democrático. 

Por mais que os envolvidos e seus aliados, incluindo um jornalão que se dizia progressista e parece ter retornado às origens colaboracionistas de 1964, tentem colocar esse trabalho em dúvida. Longa vida para a democracia e para o jornalismo de interesse público!


Marina Amaral
Diretora Executiva da Agência Pública
marina@apublica.org 

segunda-feira, 26 de agosto de 2024

Pablo Marçal: como lidar com um vigarista digital? - Nataliae Viana, Diretora Executiva (Agência Pública)

 Pablo Marçal: como lidar com um vigarista digital?

 Xeque na Democracia

Natalia Viana, Diretora Agência Publica

Caros leitores,

Chegamos hoje à 100ª newsletter Xeque na Democracia! Lançamos a newsletter antes das eleições de 2022 e a edição de hoje mostra que as coisas mudaram desde então, mas nem tanto. Se você ainda não recebe, inscreva-separa tentar entender junto comigo essa nova fronteira digital nas nossas democracias, que se parece cada vez mais com um faroeste.

Pablo Marçal: como lidar com um vigarista digital?


Não se fala em outra coisa. Em pouco mais de três semanas, Pablo Marçal conseguiu criar caos na disputa eleitoral em São Paulo, crescer 7 pontos percentuais nas pesquisas, brigar com Bolsonaro, tirar Tabata Amaral da posição de boa moça para o ataque, afastar os líderes na disputa dos debates – e agora até os canais de TV começam a pensar se deve mesmo haver novos debates, depois do esvaziado programa da revista Veja. 

Ao mesmo tempo, cresceu seu nome, ou melhor, seu “reconhecimento de marca”, ampliou o número de pessoas dispostas a espalhar sua mensagem e participar de seu gigantesco esquema de views.Com suas redes suspensas por decisão da Justiça, terá se tornado talvez o candidato mais popular. Desde que foi anunciada a decisão do juiz Antonio Maria Patino Zorz de suspender todas as suas contas até o fim da campanha, Pablo trocou sua foto de perfil para uma imagem dramática, em preto e branco com uma mordaça sobre a boca, onde está escrito “sistema”. Desde então, ele é o nome mais procurado no Google, superando de lavada Lula e Bolsonaro. Em apenas um dia, a conta reserva que ele criou no Instagram para quando a principal for bloqueada já tem mais de 2,7 milhões de seguidores (a oficial tem 14 milhões).  

De fato. O “sistema” – as instituições que trabalham para salvaguardar as regras eleitorais e a democracia – não sabe o que fazer com Pablo Marçal. E isso só demonstra que não aprendemos nada nos últimos anos. 

Vejamos. Pablo Marçal é um vigarista, daqueles de longa ficha corrida. Foi condenado em 2010 por participar de uma quadrilha que desviou dinheiro de bancos como a Caixa e o Banco do Brasil, ajudando a gangue a obter emails de clientes, que então recebiam emails acusando-os de inadimplência e tinham seus dados roubados, assim como o dinheiro. Em 2022, liderou uma expedição “motivacional” a uma área montanhosa de São Paulo que teve que ser resgatada pelos bombeiros. Seu sócio nos cursos, Renato Cariani, é investigado por tráfico de drogas e lavagem de dinheiro; uma de suas empresas teria emitido notas fraudulentas para desviar produtos químicos para o refino de cocaína e de crack. E, como deixou claro a Tabata Amaral no seu último vídeo de campanha, há indícios preocupantes de proximidade do coach com o PCC. Não seria nenhuma surpresa que todo o esquema montado para essas eleições fosse uma grande máquina de lavar dinheiro. 

Erra quem acha que Pablo está “roubando o bolsonarismo de Bolsonaro”, ou que estamos vivendo mais um repeat da estratégia eleitoral da extrema direita. Pablo Marçal é um passo além na manipulação do debate público para ganho próprio. Ele coroa a era do faroeste digital, que tem seu maior expoente no dono do Twitter, Elon Musk. Pablo não adota a estratégia digital para projetar uma mensagem ou ideia, ele é o produto.Sua campanha é tão oca quanto o sonho de milhões de adolescentes que querem virar influenciadores quando crescerem. Fala-se dele porque fala-se dele. 

E por ser uma pessoa tão vigarista, ele está unicamente posicionado para abraçar essa nova era do faroeste. Usando o jargão de outro grande vigarista de estimação dos brasileiros, recentemente falecido, Pablo “topa tudo por dinheiro”, e não tem vergonha de assumir.    

Sua base de apoio online é formada por milhares de jovens e adolescentes de classe baixa que estão em busca de dinheiro fácil diante de uma realidade que é cada vez mais brutal, onde o mercado de trabalho está derretendo e onde virar entregador de moto é a mais provável promessa.  

Funciona assim a fábrica “sweatshops” de Pablo Marçal. Pra quem não sabe, ele adotou a estratégia de crescimento digital de Andrew Tate, um americano que ganhou fama na “manosfera” masculinista e hoje está preso na Romênia depois de ser investigado por estupro e tráfico de mulheres. 

Funciona assim a estratégia: Misturando gamificação com promessa de dinheiro fácil, Pablo alicia jovens e adolescentes para criarem contas “do zero” que funcionam apenas para promover a sua marca (o seu nome). Através de um aplicativo, recebem vídeos do “criador” que depois eles têm que cortar, postar online, sempre marcando os perfis do coach. Com 112 mil membros, o Discord do Marçal funciona como funcionavam os grupos de Whatsapp e Telegram pro Bolsonarismo: ali os usuários são orientados a postarem diversos vídeos no Instagram, Youtube e TikTok. Os vídeos mais assistidos recebem uma compensação financeira, e o próprio Pablo garante que os “garotos” ganham até mil reais por mês. 

“O que que é fazer corte? É assistir um pedaço de um vídeo, pegar uma mensagem, o corte pode ter quinze segundos, trinta, quarenta e cinco; quem tiver mais visualizações eu pago em dinheiro. Então toda semana tem a medição disso. Então tem garotos que tão ganhando quatrocentos, seiscentos, mil reais fazendo isso”, explicou.  

Foi com essa estratégia que, investindo cerca de 7 milhões de reais para sua massa de trabalhadores precarizados (muitos menores de idade), Pablo conseguiu o recorde de uma campanha digital no Brasil, arrecadou 100 milhões de reais vendendo cursos em 9 semanas.Seus “produtos” são tão vazios como ele mesmo: Pablo vende cursos sobre como ganhar dinheiro, como ser um vencedor, como manter-se focado. É assim a roda: Pablo vende porque Pablo vende. E faz o que vende.      
 
Para melhor viralizar, ele próprio assumiu que mudou sua postura nas redes. “Tem 4 mil pessoas que estão em um campeonato de corte, e eu pago um dinheiro até relevante para esse pessoal por visualizações. Comecei a pagar as primeiras competições, só que só tinha vídeo bonzinho, cara. Bonitinho, não viraliza. Eu estava aparecendo em tudo, só que com pouco comentário e pouca curtida. As visualizações polêmicas são muito maiores. Tem vídeo com 40 mil comentários, 40 milhões de visualizações. Aí eu chamei meu time e falei, cara é isso aqui que eu tenho que pagar”, explicou em uma entrevista. “Às vezes eu nem queria falar aquele tema, mas eu falo, vou falar só pro corte pegar”, disse em outra ocasião. 

Agora, na eleição, a fórmula se repete, com um exército de mais de 100 mil “garotos” acionados pelo Discord fazendo cortes dos vídeos de Pablo com a hashtag #prefeitomarcal e sonhando em ganhar alguns trocados. Nesse sentido, os seguidores de Pablo são menos ideológicos e fiéis que os bolsonaristas: eles querem, no fundo, apenas participar da abundância financeira que o líder projeta. Pablo capitaliza, assim, um sentimento que é muito cooptado pelas igrejas evangélicas – aliás, coalhadas de vigaristas, como sabemos – e expressa pela teologia da prosperidade.  

A pirâmide de Pablo, entretanto, vale-se de algo que eu cansei de repetir aqui e que é uma tremenda sacada, o fato de que as redes sociais são sócias da desinformação e, neste caso, de vigaristas como ele.

Uma de suas “cortadoras”, responsável pelo perfil Billion Marçal, explicou como outros “cooptados” poderiam passar a ganhar dinheiro não só com os concursos de cortes, mas também das próprias plataformas. “São mais de vinte estratégias para você fazer dinheiro com os vídeos do Pablo Marçal, tem como você fazer dinheiro no Youtube, no Tik Tok, que são plataformas que pagam em dólar pela quantidade de visualização, que tem os seus vídeos, e como você vai aprender a viralizar um vídeo fica mais rápido dessas plataformas começarem a te pagar”, escreveu. Terminando com um mantra quase-religioso-mindful-pósfuturista: 
“Pablo Marçal todos os dias nos ensina a prosperar”, #prosperidade, #Riqueza, #Mind, #Pablo Marçal.    

Tudo isso funciona totalmente fora das regras da propaganda eleitoral, claro, e com fortes indícios de abuso de poder econômico nos termos da lei eleitoral, conforme apontou a petição da candidata Tábata Amaral ao TRE. E, por isso mesmo, fez muito bem o juiz Antonio Maria Patino Zorz ao suspender as contas de Marçal, mesmo que isso o torne mais popular ainda: afinal, o papel da Justiça eleitoral é fazer cumprir a lei. 

Para Pablo, sabemos, é tudo lucro. Com a decisão, sua marca só cresceu, e as menções positivas superaram, agora, as negativas. Ganhe ou perca no voto, Pablo sai ganhando, porque cresce a sua marca, e depois será ainda mais fácil fazer “remarketing” e vender seus cursos sobre como vencer na vida, como bem resumiu o marketeiro digital Icaro de Carvalho na sua conta no Instagram: “ele entendeu que a cada dois anos ele tem dinheiro grátis esperando por ele a cada eleição”. 

A encruzilhada, no final, fica mais para as campanhas de Boulos e Nunes, que acabam ficando reféns do novo fenômeno político, que consegue, com sua estratégia, pautar diariamente o debate público, empobrecê-lo a seu favor. 

Já para Jair Bolsonaro, não acredito que Marçal consiga romper de vez com o padrinho e “roubar” o bolsonarismo dele: existe, afinal, algo  autenticamente brasileiro no bolsonarismo. Na campanha de Marçal, não. Nem acredito tanto, inclusive, na sua professa fé cristã. Se estivéssemos em um momento histórico em que fosse popular ser comunista, garanto, ali estaria Pablo Marçal com bonezinho de Che Guevara. 

O marketing oco de Marçal pode até chegar longe em uma eleição – quiçá ganhá-la – mas não constrói uma carreira política. E, sendo uma figura com um passado tão maculado, não será muito difícil que se encontre um elo frágil pra que o assunto vire caso de polícia. Em especial, este elo pode estar na origem do dinheiro que Pablo já investiu nesta eleição para pagar seu exército de trabalho infantil. 

O maior problema, na verdade, é que o risco Pablo Marçal já aconteceu: ficou claro que, no nosso sistema político, um aproveitador com conhecimento de marketing digital e nenhum escrúpulo consegue alugar uma sigla política e se tornar um fenômeno de votos, do dia para a noite. E que há políticos, partidos e pessoas afim de se aliarem a ele e ganhar unzinho em cima. Temo que veremos, assim, uma pablomarçalização do nosso jogo eleitoral daqui pra frente. 


Nataliae Viana
natalia@apublica.org
Diretora Executiva da Agência Pública

sábado, 18 de maio de 2024

“Porto Alegre não deve copiar o mau exemplo de New Orleans” - Marina Amaral (Agência Pública)

 https://apublica.org/2024/05/porto-alegre-nao-deve-copiar-o-mau-exemplo-de-new-orleans/

*Porto Alegre não deve copiar o mau exemplo de New Orleans*

Marina Amaral

Agência Pública, 18/05/2024


Leio aqui e ali que a New Orleans pós-Katrina “traz lições” para Porto Alegre. No mesmo tom, noticia-se que o prefeito Sebastião Melo (MDB) contratou uma consultoria norte-americana “que atuou no Katrina” para fazer o plano de reconstrução da capital gaúcha. Ele ainda não sabe nem o quanto isso vai custar: a consultoria Alvarez & Marsal (A&M) ofereceu dois meses de trabalho gratuito antes de apresentar a conta para a prefeitura. No Brasil, a A&M é conhecida por empregar o ex-juiz Sergio Moro, depois de lucrar R$ 65 milhões como administradora judicial de empresas alvo da Lava Jato. 

“No momento, a equipe concentra seus esforços no diagnóstico e no plano emergencial de ações e, tão logo tenha a estrutura, apresentará cronograma para implementação", disse a A&M em nota publicada na Folha de S.Paulo. Quando indagado por que, afinal, havia decidido contratar a empresa, o prefeito simplesmente respondeu: “Eu decidi contratar uma consultoria, umas duzentas me ofereceram, eu decidi contratar essa, se ela for bem, bom, eu decidi, porque eu posso decidir”. 

Para além da aparente falta de critérios na decisão tomada, sem ouvir os especialistas brasileiros, como revelou o site Matinal, Melo parece desconhecer a desastrosa atuação da A&M em New Orleans que deixou como legado a demissão de mais de 7 mil professores de escolas públicas, a privatização da educação e saúde, o acirramento da violência policial e miliciana (o que ameaça acontecer por aqui) e, por fim, o branqueamento da população de New Orleans. 

A pretexto de retirar os desalojados, que foram impedidos de voltar, foi feita uma limpeza étnica na cidade turística, e a população negra, que correspondia a 75% da população total, caiu para menos da metade cinco anos depois da inundação que se seguiu ao furacão Katrina e deixou mais de 1.300 mortos no desastre.  

Até hoje a população original de New Orleans não se recuperou – há cerca de 100 mil habitantes a menos dos quase 500 mil que havia em 2005. Já a população negra, somando os que conseguiram por fim voltar, corresponde a 60% do total, boa parte dela concentrada na periferia depois de perder suas casas em bairros gentrificados na reconstrução. Muitos ainda lutam para pagar dívidas com moradia. 

Para saber o que aconteceu em New Orleans, e aprender com suas falhas – estas, sim, lições para nós, como notou a BBC –, o prefeito pode aproveitar que a energia foi restabelecida no Guarujá, o bairro onde mora, e assistir a Tremé, ótima série de David Simon (o mesmo criador de The Wire) que mostra a resiliência da cultura negra e os absurdos e injustiças cometidas na reconstrução de New Orleans com forte viés de racismo, principalmente por parte do governo federal de George W. Bush. 

Tremé é o nome de um bairro negro em New Orleans, berço do jazz e de tradições afro-americanas e creole da Louisiana, que foi um dos mais atingidos pela inundação. A série começa três meses depois do Katrina e acompanha a reconstrução marcada pelo lobby das empreiteiras e a corrupção das autoridades, ligados à desigualdade de tratamento a atingidos negros e brancos.

“ Como acontece em Porto Alegre: embora quase a cidade toda tenha sido atingida pelas águas, é a população de baixa renda que mais sofre com as consequências, sendo a grande maioria nos abrigos e também entre os que não terão onde morar, como reconheceu o próprio prefeito na mesma entrevista à Folha. 

Um levantamento feito pelo Observatório das Metrópoles mostra que os bairros pobres foram os mais atingidos na capital e na região metropolitana. “Nem todos os bairros mais pobres foram atingidos, mas todos os mais atingidos são pobres”, explicou o pesquisador André Augustin ao site Sul 21.

Há outras semelhanças mórbidas entre as duas cidades diante do desastre – “que não foi natural, mas provocado por gigantescas falhas humanas”, como gosta de repetir um personagem de Tremé, o professor de inglês Craig Bernette, que usa o YouTube para fazer denúncias contra as autoridades. É Bernette quem enuncia a verdade calada até então: o que provocou a tragédia em New Orleans não foi o furacão Katrina, mas a enchente que se seguiu por causa do rompimento dos diques por erros de engenharia e manutenção.

As falhas no sistema de prevenção de enchentes em Porto Alegre, de responsabilidade da prefeitura, e criticadas pelo presidente Lula, certamente também desempenharam um papel relevante na tragédia brasileira.

“ Lá como cá, também houve demora para acordar para a emergência climática com políticas públicas eficazes e o afrouxamento na legislação ambiental em plano estadual e federal. Não precisamos copiar mais fracassos. 

Aliás, vale lembrar ao prefeito Sebastião Melo que seu colega em New Orleans, Ray Nagin, foi condenado em 2014 a dez anos de prisão por corrupção, propina e lavagem de dinheiro na gestão da reconstrução. A sentença expirou em março deste ano e ele agora luta para reaver o direito de votar e, pasmem, de portar armas. 

Definitivamente, não precisamos desses exemplos. 

Marina Amaral

Diretora Executiva da Agência Pública

marina@apublica.org

https://apublica.org/2024/05/porto-alegre-nao-deve-copiar-o-mau-exemplo-de-new-orleans/