O que é este blog?

Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.

Mostrando postagens com marcador Marina Amaral. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Marina Amaral. Mostrar todas as postagens

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2025

Julgamento de golpe de Estado é vitória histórica da democracia - Marina Amaral (Agência Pública)


Julgamento de golpe de Estado é vitória histórica da democracia

Marina Amaral
Diretora Executiva da Agência Pública

A denúncia da Procuradoria-Geral da República (PGR), entregue ao Supremo Tribunal Federal (STF) nesta terça-feira, sobre o golpe de Estado, em marcha de julho de 2021 a 8 de janeiro de 2023, sob liderança do ex-presidente Jair Bolsonaro, tocou os corações brasileiros machucados pela impunidade dos ditadores, torturadores e assassinos do golpe de 1964. 

Afinal, eles ainda estão aqui, mas desta vez podem ser julgados e punidos, de acordo com a acusação robusta e minuciosa da PGR, pelos crimes de golpe de Estado, abolição violenta do estado de direito e de organização criminosa “com o objetivo de impedir o regular funcionamento dos Poderes da República (art. 359-L do Código Penal) e depor um governo legitimamente eleito (art. 359-M do Código Penal)”.

E a denúncia vai além, estabelecendo a conexão entre a marcha golpista iniciada em 2021 e os crimes de 8 de janeiro, atribuindo, portanto, à mesma organização criminosa também os crimes de dano qualificado pela violência e grave ameaça contra o patrimônio da União “em investida ocorrida contra as sedes do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal”.

Um avanço importante em relação ao inquérito da Polícia Federal (PF), como observa o advogado criminalista Rafael Borges, estudioso dos crimes contra o Estado de Direito. Em excelente entrevista à Agência Pública, Borges destaca que o “grande mérito da denúncia da PGR” é a comprovação de que o 8 de janeiro não foi fruto de uma ação popular espontânea, mas “a face violenta desse conjunto de preparativos, articulações de conjunturas, de maquinações que vinham sendo feitas desde 2021”. 

Entre os 33 denunciados, além de Bolsonaro, fulguram as quatro estrelas dos generais Braga Netto, Augusto Heleno, Paulo Sérgio Nogueira e Estevam Teophilo, além do almirante da Marinha Almir Garnier.

“ Viúvos do golpe de 1964, ressentidos com as investigações da Comissão da Verdade, ciosos de seus privilégios e inconformados com a democracia vigente no país, militares de alta patente, que retomaram o espaço político na derrubada de Dilma Rousseff e ascenderam no governo Temer, reabilitaram o ex-capitão do Exército, proscrito depois de planejar atos terroristas, para que os representasse nas urnas, quando se cogitava a possibilidade de o presidente Lula poder concorrer às eleições.
O que, aliás, é bom lembrar, provocou os tuítes ameaçadores do general Villas Bôas, então comandante do Exército e depois mentor de boa parte dos generais palacianos, às vésperas da votação de um habeas corpus de Lula pelo STF, em abril de 2018. Tuítes esses elaborados em conjunto com o Alto-Comando do Exército, como relatou o próprio Villas Bôas, que confessou ter planejado intervenção militar se Lula fosse solto.

Lula continuou na cadeia até 2019, Bolsonaro foi eleito, levando os militares para o governo, mas a queda de sua popularidade diante da morte de mais de 700 mil brasileiros pela covid, boa parte delas motivada pela má condução de seu governo diante da pandemia, e a anulação da condenação de Lula, em março de 2021, fizeram soar o alarme dos golpistas. Foi a partir daí, segundo a PGR, que a organização criminosa passou a atuar, disseminando mentiras sobre a segurança e isenção do sistema eleitoral para preparar o terreno para a derrubada do Estado democrático. 

Não por acaso, em julho daquele ano, o general Mário Fernandes tornou-se secretário-executivo da Secretaria-Geral da Presidência. Preso em novembro de 2023 como suspeito de planejar atividades golpistas violentas como o assassinato de autoridades, como Alexandre de Moraes, o presidente Lula e o vice Alckmin, revelados no inquérito da PF, Fernandes foi comandante dos kids pretos, encarregados do “trabalho sujo” do golpe de Bolsonaro, incluindo a articulação e a radicalização dos acampamentos nos quartéis e os atos golpistas, como o de 8 de janeiro. 

Tudo feito com a anuência e liderança de Jair Bolsonaro, segundo a PGR, que destaca eventos, presenciados por todos nós, que apontavam na direção do golpe. Entre eles, a live de 29 de julho de 2021, quando Bolsonaro incitou publicamente a intervenção das Forças Armadas, e o discurso do ex-presidente em 7 de setembro de 2021, quando transmitiu uma mensagem explícita de golpe em caso de derrota nas urnas em 2022. 

Em 2022, a conspiração escalou com a reunião com os embaixadores estrangeiros, em julho, transmitida ao vivo pelo YouTube, em que o então presidente repisou falsidades contra as urnas e o TSE. Depois a PF descobriria a Abin paralela; a minuta do golpe – segundo a delação de Mauro Cid, editada pelo próprio presidente e por ele apresentada aos comandantes das Forças Armadas; planos de uso das operações da Garantia da Lei e da Ordem (GLO) para impedir a posse de Lula, flagrados com o general Braga Netto; as pressões feitas para que o comandante do Exército, Gomes Freire, aderisse ao golpe, as operações da Polícia Rodoviária Federal para impedir a votação de eleitores de Lula.

Os atentados que se seguiram à diplomação de Lula no TSE até o 8 de janeiro foram o desfecho desse plano que, felizmente, não apenas fracassou em seu principal objetivo, mas foi minuciosamente reconstruído pela PF e PGR e poderá levar à prisão de Bolsonaro, militares e civis golpistas. 

Das investigações da PF à peça da PGR, prevaleceram a competência, a transparência e o respeito pelos fatos, pelas leis e ritos institucionais, o que traz alívio para nós, cidadãos, que queremos viver em um país democrático. 

Por mais que os envolvidos e seus aliados, incluindo um jornalão que se dizia progressista e parece ter retornado às origens colaboracionistas de 1964, tentem colocar esse trabalho em dúvida. Longa vida para a democracia e para o jornalismo de interesse público!


Marina Amaral
Diretora Executiva da Agência Pública
marina@apublica.org 

sábado, 18 de maio de 2024

“Porto Alegre não deve copiar o mau exemplo de New Orleans” - Marina Amaral (Agência Pública)

 https://apublica.org/2024/05/porto-alegre-nao-deve-copiar-o-mau-exemplo-de-new-orleans/

*Porto Alegre não deve copiar o mau exemplo de New Orleans*

Marina Amaral

Agência Pública, 18/05/2024


Leio aqui e ali que a New Orleans pós-Katrina “traz lições” para Porto Alegre. No mesmo tom, noticia-se que o prefeito Sebastião Melo (MDB) contratou uma consultoria norte-americana “que atuou no Katrina” para fazer o plano de reconstrução da capital gaúcha. Ele ainda não sabe nem o quanto isso vai custar: a consultoria Alvarez & Marsal (A&M) ofereceu dois meses de trabalho gratuito antes de apresentar a conta para a prefeitura. No Brasil, a A&M é conhecida por empregar o ex-juiz Sergio Moro, depois de lucrar R$ 65 milhões como administradora judicial de empresas alvo da Lava Jato. 

“No momento, a equipe concentra seus esforços no diagnóstico e no plano emergencial de ações e, tão logo tenha a estrutura, apresentará cronograma para implementação", disse a A&M em nota publicada na Folha de S.Paulo. Quando indagado por que, afinal, havia decidido contratar a empresa, o prefeito simplesmente respondeu: “Eu decidi contratar uma consultoria, umas duzentas me ofereceram, eu decidi contratar essa, se ela for bem, bom, eu decidi, porque eu posso decidir”. 

Para além da aparente falta de critérios na decisão tomada, sem ouvir os especialistas brasileiros, como revelou o site Matinal, Melo parece desconhecer a desastrosa atuação da A&M em New Orleans que deixou como legado a demissão de mais de 7 mil professores de escolas públicas, a privatização da educação e saúde, o acirramento da violência policial e miliciana (o que ameaça acontecer por aqui) e, por fim, o branqueamento da população de New Orleans. 

A pretexto de retirar os desalojados, que foram impedidos de voltar, foi feita uma limpeza étnica na cidade turística, e a população negra, que correspondia a 75% da população total, caiu para menos da metade cinco anos depois da inundação que se seguiu ao furacão Katrina e deixou mais de 1.300 mortos no desastre.  

Até hoje a população original de New Orleans não se recuperou – há cerca de 100 mil habitantes a menos dos quase 500 mil que havia em 2005. Já a população negra, somando os que conseguiram por fim voltar, corresponde a 60% do total, boa parte dela concentrada na periferia depois de perder suas casas em bairros gentrificados na reconstrução. Muitos ainda lutam para pagar dívidas com moradia. 

Para saber o que aconteceu em New Orleans, e aprender com suas falhas – estas, sim, lições para nós, como notou a BBC –, o prefeito pode aproveitar que a energia foi restabelecida no Guarujá, o bairro onde mora, e assistir a Tremé, ótima série de David Simon (o mesmo criador de The Wire) que mostra a resiliência da cultura negra e os absurdos e injustiças cometidas na reconstrução de New Orleans com forte viés de racismo, principalmente por parte do governo federal de George W. Bush. 

Tremé é o nome de um bairro negro em New Orleans, berço do jazz e de tradições afro-americanas e creole da Louisiana, que foi um dos mais atingidos pela inundação. A série começa três meses depois do Katrina e acompanha a reconstrução marcada pelo lobby das empreiteiras e a corrupção das autoridades, ligados à desigualdade de tratamento a atingidos negros e brancos.

“ Como acontece em Porto Alegre: embora quase a cidade toda tenha sido atingida pelas águas, é a população de baixa renda que mais sofre com as consequências, sendo a grande maioria nos abrigos e também entre os que não terão onde morar, como reconheceu o próprio prefeito na mesma entrevista à Folha. 

Um levantamento feito pelo Observatório das Metrópoles mostra que os bairros pobres foram os mais atingidos na capital e na região metropolitana. “Nem todos os bairros mais pobres foram atingidos, mas todos os mais atingidos são pobres”, explicou o pesquisador André Augustin ao site Sul 21.

Há outras semelhanças mórbidas entre as duas cidades diante do desastre – “que não foi natural, mas provocado por gigantescas falhas humanas”, como gosta de repetir um personagem de Tremé, o professor de inglês Craig Bernette, que usa o YouTube para fazer denúncias contra as autoridades. É Bernette quem enuncia a verdade calada até então: o que provocou a tragédia em New Orleans não foi o furacão Katrina, mas a enchente que se seguiu por causa do rompimento dos diques por erros de engenharia e manutenção.

As falhas no sistema de prevenção de enchentes em Porto Alegre, de responsabilidade da prefeitura, e criticadas pelo presidente Lula, certamente também desempenharam um papel relevante na tragédia brasileira.

“ Lá como cá, também houve demora para acordar para a emergência climática com políticas públicas eficazes e o afrouxamento na legislação ambiental em plano estadual e federal. Não precisamos copiar mais fracassos. 

Aliás, vale lembrar ao prefeito Sebastião Melo que seu colega em New Orleans, Ray Nagin, foi condenado em 2014 a dez anos de prisão por corrupção, propina e lavagem de dinheiro na gestão da reconstrução. A sentença expirou em março deste ano e ele agora luta para reaver o direito de votar e, pasmem, de portar armas. 

Definitivamente, não precisamos desses exemplos. 

Marina Amaral

Diretora Executiva da Agência Pública

marina@apublica.org

https://apublica.org/2024/05/porto-alegre-nao-deve-copiar-o-mau-exemplo-de-new-orleans/