Aurélio Schommer explica como “foi feito” o povo brasileiro, uma mistura formidável, como não existe em nenhum lugar do mundo:
“ Em termos genéticos, o Brasil é majoritariamente europeu, como, ademais, o é na cultura, a começar pelo idioma. Os dados dos estudos de marcadores genéticos de nossa população convergem para cerca de 70% de herança europeia, predominando a africana sobre a ameríndia para os 30% restantes. Os estudos são os resultados preliminares do projeto DNA do Brasil, da USP, de uma compilação de 51 pesquisas por Souza e outros, de 2019, publicados pelo Genetics and Molecular Biology Journal, e de um levantamento do laboratório Genera com 200 mil amostras de brasileiros.
Até aí, não há muita história para contar além do que todos já sabem. Os portugueses chegaram, se miscigenaram com os nativos, em seguida trouxeram africanos. Mais tarde, vieram os alemães, italianos, poloneses etc, na grande imigração de 1870 a 1970. Porém, quando separamos as linhas paterna e materna dos cromossomos dos brasileiros, desvendamos outra história.
O y-DNA, ou seja, o patrilinear, dos brasileiros varia entre 75 e 85% de origem europeia, a depender de contar como europeus apenas os da Europa geográfica ou agregarmos berberes, judeus, turcos, sírio-libaneses, árabes e afins. Cerca de 15% de nossos pais são africanos e apenas 1% indígenas.
Já no DNA mitocondrial, também chamado mtDNA, somos um terço, um terço, um terço, partes mais ou menos iguais de mães ameríndias, africanas e indígenas. Nem mesmo a chegada de aproximadas 2 milhões de mulheres europeias no pós-Independência e o inicial alto índice de fertilidade delas teve o poder de mudar uma base que não poderia ser europeia, pois os aproximados 1 milhão de portugueses chegados antes da Independência eram quase todos homens. E assim continuaram depois, quando passaram de migrantes internos a imigrantes. No censo de 1872, apenas 17% dos portugueses encontrados eram mulheres.
Nos primeiros trezentos anos de Brasil, o filho do português com a ameríndia era chamado mameluco. Os homens mamelucos passariam o y-DNA, patrilinear, europeu a todas as dezenas de gerações vindouras, até hoje. As mulheres mamelucas, o matrilinear, em tal medida que pelo menos 60 milhões de brasileiros do século XXI descendem diretamente delas. Não chega a um terço exato porque algumas indígenas geraram filhos com africanos e afrodescendentes ou com os 1% de pais também indígenas. Lembremo-nos de Caramuru e Catarina Paraguaçu, de João Ramalho e Bartira, de Jerônimo de Albuquerque e Maria Arcoverde, também chamada Muira Ubi. Esses casais Adão e Eva da Bahia, de São Paulo e de Pernambuco respectivamente deram origem a uma descendência vasta e relativamente privilegiada, dona da terra. No Censo de 1872, o mameluco é quase toda população identificada como branca, 38% dos brasileiros de então.
Já o filho de português com africana era o pardo. Também uma vez mestiço e homem, toda descendência dele era y-DNA europeu. Das mulheres africanas, por sua vez, descendem 70 milhões de brasileiros atuais. No Censo de 1872, o pardo é contado como pardo mesmo, outros 38% dos brasileiros de então. Para completar, 20% foram identificados como pretos, não miscigenados, 4% como caboclos, que podiam ser indígenas aculturados ou mestiços não contados como brancos. Estamos a falar de uma base composta por apenas 1 milhão e meio de africanas, pois elas representaram apenas 1/3 dos africanos da diáspora, do infame a abjeto comércio escravista, cessado em 1850.
O quase sumiço do y-DNA dos pais indígenas não se deve necessariamente à violência, a matar ou espantar os homens e recolher as mulheres, como muitos atribuem com base em achismo. Tanto entre tupis quanto entre os guaranis e o kaingangues, para ficar nos exemplos mais numerosos e bem documentados em crônicas, os próprios moradores das aldeias, homens ou mulheres, convidavam o europeu a gerar filhos com as indígenas. Não poucos passavam até a viver como nativos, adotando seus costumes. Houve as chamadas “guerras justas”, sem dúvida, mas a maior parte da interação entre portugueses e nativos não foi assim, até porque os indígenas eram pessoas completas, capazes de negociar e contra-atacar se fosse o caso, de tomar decisões individuais ou coletivas, usando a lógica, tão dotados de razão quanto os d’além-mar.
Mais complexa era a relação com o africano e o afrodescendente, com realidades que variaram no tempo e no espaço. A prevalência de cerca de 15% de patrilinearidade africana na população atual indica uma resistência notável, possível por uma série de fatores, entre os quais contam o isolamento em quilombos, a organização em irmandades católicas, os nascidos livres e libertos com prestígio, como os soldados e oficiais do Terço dos Henriques, e mesmo o incentivo de alguns senhores a que se formassem casais nas senzalas.
O caso do povoamento de Minas Gerais revela uma realidade demográfica aguda e de grande peso relativo na formação genética do brasileiro. Alguém se lembrou de Chica da Silva? Pois é. Ela teve 14 filhos. Ao contrário do que se insinuou dela em representações da dramaturgia, foi católica devota e esposa fiel. Quando viúva, herdou o patrimônio do esposo, um dos portugueses mais ricos de todo império, e o administrou com zelo.
Nos primeiros 50 anos de povoamento das Minas, seis em cada sete africanos introduzidos na capitania eram homens. Entre os portugueses e mamelucos (paulistas, baianos e fluminenses), quase todos homens também. A chance de reproduzir dos homens se restringia às africanas e afrodescendentes, que eram menos de 10% da população total. Quase não havia mulheres ameríndias disponíveis, pois a povoamento indígena ali era rarefeito, tanto que hoje o estado de Minas Gerais tem a menor proporção de DNA ameríndio entre todas as unidades da federação.
Aquelas preciosas mulheres africanas, mães de Minas, podem ter sofrido violência? Infelizmente, sim, deve ter acontecido muito. Mas Chica da Silva não foi exceção. A historiografia descobriu que a maior parte dos estabelecimentos de comércio a retalho, varejista, de Minas Gerais, no final do século XVIII, pertencia a mulheres negras.
O alto grau de miscigenação da população brasileira, possivelmente a maior do mundo, é uma dádiva a ser celebrada. Ela passou pela crueldade infame da escravatura e pela exclusão aguda da patrilinearidade indígena. Mas também por afeto genuíno e pela formação de famílias, formais ou informais, por consentimento, como nos conta a historiadora Mary Del Priore. Somos na maior parte mestiços. Ainda bem. Carregamos em nós o patrimônio genético de muitos povos, da diversidade.
(texto para o próximo vídeo do canal Enciclopédia de História: História do Brasil Explicada pela Genética)”
