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Diferentemente do que foi amplamente noticiado, o Brasil não foi à Corte de Haia para acusar Israel de cometer genocídio. A participação brasileira é limitada à intervenção processual de um Estado interessado em oferecer sua visão jurídica sobre o tratado que fundamenta o caso, qual seja, a Convenção contra o Genocídio.
Houve estratégica prudência por parte do Brasil em sua manifestação ao levantar uma série de elementos jurídicos e fáticos perante as juízas e juízes da Corte de Haia, que serão fundamentais na decisão final do julgamento, cujas audiências deverão ocorrer em 2026. A manifestação brasileira não afirma explicitamente que ocorre um genocídio em Gaza — e deixa muito claro, em diversas passagens, que sua intenção é se pronunciar sobre a interpretação da Convenção.
Spacca
Palestinos são grupo protegido
Em primeiro lugar, o Brasil destacou que a população palestina é um dos grupos protegidos pela Convenção do Genocídio, ou seja, detém direitos específicos de não ser vítima de genocídio. Em seguida, analisou cuidadosamente a jurisprudência da Corte e de outros tribunais internacionais sobre os critérios de comprovação do crime.
Como se sabe, o crime de genocídio é uma das violações mais graves que um Estado ou indivíduos podem cometer. Devido à sua gravidade e às consequências jurídicas e reputacionais para um Estado, a jurisprudência internacional desenvolveu padrões muito elevados para aferir sua ocorrência. Segundo a Corte, ao se examinar as provas de genocídio, a conclusão deve ser que “a única inferência razoável” é a intenção genocida. Não bastam atos bárbaros de natureza genocida contra um grupo; é igualmente necessária a comprovação da intenção de eliminar, total ou parcialmente, aquele grupo (o chamado dolus specialis).
Na visão brasileira, a linguagem empregada pela Corte no passado permite que se adote uma abordagem balanceada na identificação das provas da intenção, à luz de diversos elementos destacados em sua manifestação. Os argumentos do Brasil fundamentaram-se em relatórios de organismos internacionais sobre a situação de mulheres e crianças, a fome em Gaza, deslocamentos forçados, a negação de ajuda humanitária, bem como em declarações públicas de autoridades israelenses.
Amparando-se na jurisprudência da Corte, o Brasil observou que “um certo número de órgãos estatais ou outros indivíduos atuando em nome de um Estado pode produzir um padrão de conduta a partir do qual se pode inferir uma política governamental relativa à destruição de um grupo”. Em outras palavras, não seria necessário um plano formal e específico para a prática do genocídio.
Legítima defesa x genocídio
O Brasil também aproveitou a oportunidade para se pronunciar sobre o argumento de legítima defesa e sua relação com o crime de genocídio — uma das principais teses apresentadas por Israel na fase inicial do processo. Para o Brasil, em conformidade com os pilares da Carta da ONU e das regras sobre o uso da força, toda legítima defesa deve ser necessária e proporcional, não podendo ser invocada como excludente de ilicitude nem servir para atenuar as obrigações relativas à proibição de genocídio.
Numa formulação inovadora, o Brasil parece chamar a Corte Internacional de Justiça à sua responsabilidade no julgamento. Dada a excepcional gravidade do crime de genocídio, não cabe apenas à Corte adotar rigor na verificação da intenção, mas também oferecer uma justificação extensiva caso ela não a encontre no caso concreto — algo que, para alguns juízes internacionais, faltou na decisão sobre a acusação de genocídio entre Croácia e Sérvia. Em suma, o ônus probatório rigoroso deve ser acompanhado de uma motivação igualmente rigorosa, especialmente diante da grande atenção da comunidade internacional ao deslinde do caso.
Se o Brasil não argumentou diretamente pela ocorrência de genocídio em Gaza, sua intervenção não pode ser retirada de contexto nem ter diminuído seu valor simbólico. Politicamente, trata-se de um contundente apoio à África do Sul e ao povo palestino. As sofisticadas estratégias jurídicas empregadas na manifestação configuram traçados de potenciais caminhos jurídicos a serem seguidos. Quando a Corte Internacional de Justiça emitir seu julgamento final no Palácio da Paz, na Haia, saberemos o quão efetiva terá sido a política externa jurídica brasileira.
é professor de Direito Internacional da UFMG, coordenador do grupo de pesquisa em Cortes e Tribunais Internacionais (CNPq/UFMG) e membro da Diretoria da International Law Association – Brasil.