ESTADAO, 13fev24
Darwin no Brasil: Livro ilustrado explica impacto brasileiro na vida e obra do naturalista
Escala em Galápagos ficou mais famosa, mas Darwin passou pelo Brasil, viveu por alguns meses no Rio, se encantou por insetos de Botafogo e se horrorizou com escravidão. Nova editora compila histórias; conheça
Por André Aubert
É mais do que conhecida a hecatombe provocada por Charles Darwin (1809-1882) com seu A Origem das Espécies, de 1859, o livro que revolucionou a maneira como entendemos a evolução da vida em nosso planeta.
Tampouco se desconhece que, ainda que as conclusões tenham vindo depois, a viagem de cinco anos ao redor ao globo que o jovem Darwin fez a bordo do Beagle, um navio da Marinha Real, entre 1831 e 1836, foi essencial para que o cientista tivesse acesso direto a um gigantesco volume de informações e experiências que seriam essenciais para a construção de sua teoria.
Algumas etapas da viagem, como a escala em Galápagos, ficaram famosas. Por outro lado, são muito menos conhecidas as passagens do Beagle pelo Brasil e como contribuíram para as pesquisas de Darwin.
Os registros que o biólogo escreveu durante a expedição serviram de base para a publicação, em 1839, de um livro com o título de Diário e Comentários, mais tarde rebatizado como A Viagem do Beagle. Como foi editado algum tempo depois da expedição, não se tratava exatamente de um diário, mas de um relato instigante das reflexões de Darwin a partir das realidades com as quais se deparou. A Viagem mostra uma mente aberta, que não apenas observava, mas que pensava e criticava, jamais aceitando passivamente as verdades pré-estabelecidas.
Como a expedição do Beagle tinha caráter científico, as escalas com frequência eram longas, dando tempo para que fosse possível fazer pesquisas e se aprofundar nas características de cada lugar. No Rio de Janeiro, por exemplo, Darwin viveria por alguns meses, inclusive alugando uma casa com dois outros membros da tripulação.
O Brasil proporcionou escalas fundamentais para o Beagle – e para o pensamento de Darwin, aparecendo com destaque na Viagem. O que o cientista registrou a respeito de nossos antepassados e da terra em que viviam é nada menos que precioso.
É curioso passear, apenas para citar um exemplo, pelo que era chamado de povoado de Botafogo, então a cinco quilômetros da cidade do Rio de Janeiro, com sua profusão de árvores, samambaias, macacos e insetos. Chega a ser difícil acreditar que se trata do mesmo bairro de Botafogo de hoje.
Em outro trecho, estupefato com a quantidade de insetos com que se deparava, Darwin escreveu: “Se o que me foi dito em Londres é verdade, ou seja, que não há insetos minúsculos nas coleções dos trópicos, diga aos entomologistas que se preparem...”.
Ou ainda, confrontando a noção europeia então vigente de que planárias, semelhantes a lesmas, eram animais exclusivamente aquáticos, ele registrou: “Aquelas que descrevi foram encontradas nas partes mais secas da floresta, embaixo de troncos podres, dos quais acredito que se alimentam (...). Encontrei nada menos que 12 espécies distintas de planárias terrestres (...).”
‘Darwin no Brasil’
O problema é que, para o leitor brasileiro de hoje, embarcar na Viagem do Beagle não é uma tarefa fácil. Além de ser extensa, a obra tem inúmeras passagens com digressões sobre geologia, biologia e botânica que serão indigestas para um não especialista.
A lacuna com relação ao País é o que a bela edição Darwin no Brasil – A viagem de Charles Darwin ao Brasil e suas contribuições para a teoria da evolução (Editora Duas Aspas, 2023), realizada com financiamento coletivo, contribui para suprir. É a primeira publicação da Duas Aspas, que pretende entrar neste mercado de livros sobre ciência.
Traduzido e editado por Pedro Alencastro, o livro selecionou os trechos do relato que mencionam o nosso País, que aparecem intercalados com excelentes comentários do editor. A obra começa com uma breve biografia de Darwin antes do Beagle, na qual ficamos sabendo um pouco mais sobre a família, a infância e os anos de formação do autor.
'Darwin no Brasil – A viagem de Charles Darwin ao Brasil e suas contribuições para a teoria da evolução' (Editora Duas Aspas, 2023) Foto: Editora Duas Aspas/Divulgação
Em seguida, vêm os capítulos sobre a viagem. O primeiro fala da travessia atlântica e do contato inicial com o território brasileiro, no rochedo desabitado de São Pedro e São Paulo. Os seguintes mencionam Fernando de Noronha, Bahia, Rio de Janeiro, Botafogo e o Pampa gaúcho. O capítulo sete expande para a América do Sul e o oito trata do regresso, desde Galápagos, passando novamente pelo Brasil, rumo à Inglaterra.
No epílogo, destaca-se novamente a voz do editor, comentando a vida pessoal e profissional de Darwin após a viagem, já então uma pessoa amadurecida. Aí se fala do casamento, dos filhos, dos debates científicos e, finalmente, da publicação de A Origem das Espécies e da enorme polêmica provocada pelo livro (a qual, por incrível que pareça, ainda persiste, embora não na Ciência, por conta dos criacionistas).
Nem tudo são flores
A primeira escala do Beagle em solo continental brasileiro foi em Salvador, na Bahia, quando Darwin levou um verdadeiro susto com a exuberância e a variedade da natureza tropical:
O dia transcorreu deliciosamente. Mas esse talvez seja um termo pobre para expressar as emoções de um naturalista que, pela primeira vez, aventurou-se sozinho em uma floresta brasileira (...). Para quem ama história natural, um dia como este proporciona um prazer tão profundo que não se pode esperar sentir algo assim novamente.
Ainda que maravilhado com a natureza brasileira, nem tudo foram flores na relação de Darwin com o nosso País. No último capítulo, por exemplo, ele escreve: “No dia 19 de agosto, finalmente, deixamos o litoral do Brasil. Agradeço a Deus e espero nunca mais visitar um país escravocrata. Até hoje, quando escuto um grito distante, lembro com dolorosa clareza o que senti ao passar por uma casa perto de Recife. Eu ouvi os mais terríveis gemidos”.
“Perto do Rio de Janeiro, morei em frente a uma senhora que guardava torniquetes para esmagar os dedos de suas escravas. Vi ainda um menino de seis ou sete anos levar três chibatadas na cabeça com um chicote de açoitar cavalos (antes que eu pudesse interferir), simplesmente por ter me oferecido um copo de água que não estava limpo o bastante”, completa.
Darwin no Brasil é uma obra caprichada, com mapas e belas ilustrações, que se lê com prazer, trazendo uma importante contribuição para quem quer saber mais sobre Darwin e, principalmente, sobre como o Brasil impactou e influenciou o autor de A Origem das Espécies.
Conforme avançava pelas páginas desse livro, foi inevitável imaginar o que Darwin pensaria se, quase 200 anos depois, voltasse a nos visitar e encontrasse um País que devastou sem piedade a Mata Atlântica que tanto o fascinou e ensinou, e que evoluiu muito menos do que deveria na questão da injustiça social que o incomodava.
O que Darwin guardava em sua biblioteca? Acervo é revelado pela primeira vez
Catálogo detalha os milhares de livros, periódicos e documentos que moldaram o pensamento do pai da evolução
Por Redação
Em um feito inédito, o público agora tem acesso ao catálogo completo da biblioteca pessoal de Charles Darwin. Este catálogo inclui desde estudos sobre porquinhos-da-índia epilépticos até os romances preferidos do cientista, como os de Elizabeth Gaskell. Quase duas décadas de investigação meticulosa permitiram localizar milhares de livros, periódicos, panfletos e artigos que constituíam a coleção do célebre naturalista. As informações são do The Guardian.
John van Wyhe, líder do projeto e acadêmico, destacou a amplitude e diversidade das leituras de Darwin, que abarcavam uma variedade surpreendente de temas. Van Wyhe salientou a natureza eclética de Darwin, evidenciada pela sua coleção que inclui desde recortes de notícias sobre espécies invasoras até importantes obras científicas.
O catálogo de 300 páginas, disponibilizado por Darwin Online, enumera 7.400 títulos e 13.000 itens, abrangendo jornais, panfletos e críticas. Alguns desses materiais remontam aos dias de escola de Darwin, revelando a profundidade de suas leituras desde a juventude. Registros de leilões desempenharam papel crucial na reconstrução da história de certos itens, como um artigo de 1826 de John James Audubon e um romance de Elizabeth Gaskell de 1880, este último um dos favoritos de Darwin.
Antes desse levantamento, apenas 15% do conteúdo real da biblioteca de Darwin era conhecido. A lista atual revela a gama de interesses do cientista, que vai de biologia a religião, passando por arte, história e geografia. Mais da metade das obras está em inglês, com o restante em línguas como alemão, francês e italiano, incluindo o primeiro registro fotográfico conhecido de bactérias e estudos sobre características animais atípicas.
Além de compilar os títulos, o projeto proporcionou uma reconstrução virtual da biblioteca de Darwin, com links para cópias gratuitas de 9.300 obras, reafirmando o impacto duradouro de Darwin no entendimento do mundo natural. A publicação do catálogo coincide com o aniversário de 215 anos de Darwin, realçando a vastidão de seu legado intelectual.
John van Wyhe refletiu sobre a importância do projeto, questionando a demora em realizar um levantamento tão abrangente, dada a ampla atenção dedicada a Darwin ao longo dos anos. Este esforço revela Darwin não apenas como um pioneiro da teoria da evolução, mas também como um erudito que construiu suas ideias com base em um vasto espectro de conhecimento.