O que é este blog?

Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.

Mostrando postagens com marcador Fabiano Lana. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Fabiano Lana. Mostrar todas as postagens

quinta-feira, 5 de setembro de 2024

Os “progressos” da politica brasileira - Fabiano Lana (Estadão)

 https://www.estadao.com.br/politica/fabiano-lana/qual-e-o-o-brasil-que-emerge-de-pablo-marcal/

Originário da classe C, evangélico, do Centro-Oeste agro, forjado na linguagem das redes sociais, de “direita”, vendedor de livros de autoajuda, Pablo Marçal se tornou expressão de um Brasil que tanta gente gosta de desprezar, mas que cada vez mais dá as cartas. Além de um fenômeno inesperado, o candidato do PRTB hoje é um arquétipo de um contingente de brasileiros que não vê com bons olhos nem a tradicional elite cultural-administrativa, com seus intelectuais, artistas, jornalistas, professores de universidades públicas de “humanas”, e políticos, mas também não se entusiasma com as políticas de Estado para a população mais miserável do País – porque se considera esquecido.

O Brasil é tão pobre que hoje um trabalhador com carteira assinada com dois salários mínimos já está na metade superior da pirâmide social brasileira. Essa pessoa, porém, vê a vida como um desafio diário. Estudou em escolas públicas com péssima qualidade, vive em lugares com alto índice de violência e pode ficar horas diárias em um transporte público sucateado – ou arrisca a vida com sua moto de baixa cilindrada em um trânsito feroz. Se faz faculdade, é cara, e se endivida para pagar seus estudos.

Ou então pode ser um motorista de Uber, um entregador de Ifood, uma atendente de farmácia, uma recepcionista de hotel, uma caixa de supermercado. Que sempre que possível confere seu celular para checar as últimas atualizações do Instagram ou ouvir e responder algum áudio do WhatsApp. Que se sente mais cidadã na igreja evangélica, quando finalmente não está vestindo uniforme, conforme insight do antropólogo Juliano Spyer. Ah, é preciso lembrar-se sempre que o atual presidente Lula só venceu nas faixas de renda de quem ganha até dois salários mínimos. Bolsonaro dominou as demais faixas, para terror de tanta gente bem-pensante.

Este articulista já esteve como observador de uma pesquisa qualitativa para avaliar um programa social destinado à classe D e E de um Estado do Nordeste. Uma espécie de complementação ao Bolsa Família. A proposta de política social foi aprovada nas classes mais altas e, obviamente, pelo público beneficiado. Mas houve razoável resistência entre os avaliados da classe C, que se consideraram mais uma vez esquecidos pelas políticas de Estado. Isso ajuda explicar o sucesso do candidato à prefeitura da maior cidade do continente.

Filho de faxineira, ex-atendente de telemarketing, frequentador de igreja evangélica desde a infância, Pablo Marçal é um integrante desse grupo e se tornou imensamente rico, em tese, mantendo esses valores e modo de ser das classes intermediárias – o que gera identificação. É fruto de certa teologia da prosperidade já bem exemplificada com Max Weber, em “A ética protestante e o espírito do capitalismo”, em que a riqueza é consequência de uma bênção divina. Porém, Pablo tenta transformar essa ideologia numa linguagem pop e cheia de termos “neuroliguísticos” e de autoajuda, além de certa postura de humorista de stand up, a dar lições em auditório.

É, exemplar, que o autodenominado ex-coach tenha colocado em suas páginas na rede os apoios ao candidato Boulos, do PSOL, de uma série de cantores como Caetano Veloso, Chico César, além de uma série de artistas globais – em que ele próprio é bastante criticado. Sabe muito bem que esses artistas não são admirados pelas pessoas que procura conquistar, muito pelo contrário – estão entre os adversários a derrotar. E podem saber que os cantores sertanejos, muitas vezes originários do Centro-Oeste, com seus milhões de ouvintes nas plataformas de streaming, com orgulho de suas origens ligadas ao agronegócio, estarão do lado do candidato do nanico PRTB nesta e em eventuais campanhas futuras.

Para os jornalistas e debatedores, Marçal é meio um pesadelo, gera um ambiente até mesmo “distópico” conforme definição da apresentadora do Roda Viva, Vera Magalhães. Ao invés de responder perguntas de quem o questiona, simplesmente transforma a falsa interação em cortes nas redes que recebem dezenas de milhares de curtidas. Nesse sentido, utiliza seus oponentes como escada. Até mesmo as graves acusações que recebe, de desviar eletronicamente dinheiro de correntistas, se transformam em vitimização cibernética em seus famigerados cortes, feitos também, em grande medida, por apoiadores anônimos.

Pablo Marçal está seguro na agressividade com que parte contra jornalistas, artistas ou políticos tradicionais. Enquanto arquétipo da mentalidade de uma classe, sabe que não está sozinho nessa batalha contra o “sistema”. É um representante da cultura do ressentimento potencializada pelas redes sociais. E também transforma esse rancor em piada, em vídeos rápidos para o Tik Tok, em material de campanha.

Se Pablo irá vencer as eleições ainda é um chute - bem ou mal embasado. Temos, de qualquer maneira, um fenômeno novo que ainda não sabemos como pode ser neutralizado do ponto de vista político ou da comunicação. A versão atualizada de Jair Bolsonaro, entretanto, pode ser apenas uma evolução natural da espécie. Se não for o Pablo haverá outro, porque tem base popular e representa valores e comportamento comuns a uma gigantesca parcela da população brasileira.

Opinião por Fabiano Lana


Fabiano Lana é formado em Comunicação Social pela UFMG e em Filosofia pela UnB, onde também tem mestrado na área. Foi repórter do Jornal do Brasil, entre outros veículos. Atua como consultor de comunicação. É autor do livro “Riobaldo agarra sua morte”, em que discute interseções entre jornalismo, política e ética.

domingo, 2 de junho de 2024

Lula e Celso Amorim inscreveram o Brasil no ‘eixo do mal’ - Fabiano Lana (Estadão)

Disputas de poder e o debate político-cultural brasileiro

Opinião

Lula e Celso Amorim inscreveram o Brasil no ‘eixo do mal’

O conselheiro internacional de Lula tem levado o presidente a um pântano moral no qual o petista pode ser afogar.

Por Fabiano Lana

O Estado de S. Paulo, 01/06/2024 


Como argumentos humanitários parecem não importar nesse caso específico, se há um ponto do atual governo que afasta os moderados, prejudica os índices de popularidade, e causa até mesmo certa repugnância é a posição do presidente Lula e de seu principal conselheiro internacional, Celso Amorim, com relação à invasão da Ucrânia pela Rússia. Por motivos que vão desde interesses comerciais a um antiamericanismo sectário, as posições do governo indicam que o compromisso com a democracia do petismo era apenas uma conveniência para vencer as eleições. Mas podem pagar caro por isso. 

A questão é mais ampla. Em momentos decisivos, o coração dos petistas bate mais forte para qualquer ditadura que se oponha aos Estados Unidos e, atualmente, mesmo à Europa. E pelo jeito pode ser uma teocracia misógina como o Irã (leiam “Faca”, de Salman Rushdie), um governo que tornou sua população miserável, como a Venezuela (leiam Mãe Pátria, de Paula Ramón), uma ditadura mofada e em forte crise como Cuba (o país passa por mais uma onda de desabastecimento), que, se gritam “fora USA”, contam com a simpatia aberta ou velada de nossos atuais governantes. A verdade, além disso, é que se for para fulanizar, as posições de Amorim estão as que causam mais estragos em um governo num período do país em que qualquer minoria faz a diferença para virar a balança eleitoral.

Não existem relações internacionais sem hipocrisia. Muitas vezes apenas governos vis possuem ou querem comprar a preços competitivos produtos de maneira a salvar uma economia como a brasileira – logo, negociar comercialmente será sempre preciso. Porém, o que há no caso da dupla Lula-Amorim é pior. Entre países que, apesar dos pesares e incoerências, são democráticos, buscam seguir certos princípios do iluminismo, respeitam as minorias e a livre expressão e, do outro lado, países dominados por grupos repressivos, que transgridem a soberania internacional, e subjugam seus povos, preferem a segunda opção. Em outras palavras, por influência de Amorim resolvemos, como país, optar pelo “eixo do mal”. 

Curioso que essa posição não traz grandes variações no tabuleiro mundial. Pela distância geográfica, pela falta de poderio bélico, entre outras razões, o governo Lula é visto como café com leite das relações internacionais. É interessante tê-lo no mesmo lado, mas não causará significativa diferença prática. Mesmo assim, em seu terceiro mandato, Lula preferiu priorizar sua ação internacional – após tantas derrotas no Congresso aparentemente terá de mudar o foco, a conferir. Entretanto, será que Lula e Amorim ainda sonham estar na frente das negociações que selarão tanto a paz na Rússia como em Gaza e ganhar o Nobel da Paz? Eles acreditam na própria megalomania delirante? Na realidade, mesmo internacionalmente, têm colhido é antipatia dos líderes ocidentais. O presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelenski, é apenas o mais vocal deles. Nem na América latina conseguem se sobressair, tome-se os pitos que levaram de Gabriel Boric, do Chile, e Lacalle Pou, do Uruguai, sem falar do hostil argentino Javier Milei.

A invasão russa no território ucraniano é a primeira violação territorial neste nível na Europa desde que a Alemanha Nazista invadiu a Polônia em 1939, deflagrando a segunda guerra mundial. Existe claramente um lado agressor. Mas, para Amorim, são apenas visões divergentes em jogo. O conselheiro dá a entender que a Rússia teria certa razão por se sentir ameaçada pela OTAN. É um contorcionismo mental que esconde ranços e ideologias. Mas a realidade pode ser exatamente o contrário: se não fosse a OTAN, uma série de repúblicas que já fizeram parte da União Soviética e conseguiram se libertar, como a Estônia, a Letônia e a Lituânia, já teriam sido invadidas sem qualquer piedade. Inclusive, nesses três países bálticos, há museus da ocupação que não distinguem as invasões nazista e comunista no século passado, são vistas como algo igualmente ignóbeis, – incluindo aí o período em que houve uma ocupação conjunta de alemães e soviéticos durante o período em que vigorou o acordo de não agressão entre Stalin e Hitler – o Pacto Molotov–Ribbentrop. Na época, a bandeira vermelha da invasão continha os símbolos do nazismo e da foice e o martelo no mesmo pano. 

O papel do Brasil nessas crises ainda acaba por revelar uma outra grande incoerência: a contundência com que Lula condena as mortes de crianças inocentes na faixa de Gaza transforma-se em brandura se o salteador for russo. É tigrão para Israel e tchutchuca para Putin, se quisermos utilizar a expressão zombeteira da moda.

Amorim, que tenta se passar por um grande negociador, na verdade tem levado o seu chefe a um pântano do qual ele não conseguirá sair. É algo que poderá fazer grande diferença entre a pequena minoria decisiva que em 2026 vai votar no PT, nulo, ou na outra opção, ao analisar fatores como esses. Como falar na questão moral não sensibiliza o presidente e seu escudeiro, vale um argumento cínico: em um país tão dividido e por margem tão estreita, uma política internacional conduzida por Amorim pode ser uma das razões para uma derrota eleitoral. O mais sábio, para o presidente, seria cortar as asas de seu desastrado conselheiro.

Opinião por Fabiano Lana

Filósofo e consultor político

 https://www.estadao.com.br/politica/fabiano-lana/lula-e-celso-amorim-inscreveram-o-brasil-no-eixo-do-mal/