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segunda-feira, 15 de setembro de 2014
Diplomacia: o G20 esquizofrenico e a India atrasada - Rodrigo Galvão Pinho Lins
Paulo Roberto de Almeida
A insegurança alimentar na Índia
Rodrigo Galvão Pinho Lins
Mundorama, 13 Sep 2014 09:24 AM PDT
Em agosto deste ano a Índia frustrou a implementação do Trade Facilitation Agreement (TFA), acordado entre os ministros do Comércio dos países com representantes na Organização Mundial do Comércio (OMC). Tal acordo, firmado no encontro realizado em Bali, em novembro de 2013, deveria ser adotado a partir do dia primeiro de agosto deste ano com o propósito de diminuir barreiras comerciais entre as nações. No entanto, devido ao caráter de unanimidade das decisões da OMC, ele foi bloqueado pela não adoção indiana.
Críticas severas se originaram em países da Europa e nos Estados Unidos. Um grupo liderado pela Austrália também afirmou que esta atitude poderia minar a capacidade da OMC em atuar no futuro. Apesar de tais críticas, a comissão indiana argumentou que nenhum tratado de facilitação de comércio mundial, sobretudo os que versam sobre produtos agrícolas, pode ser firmado sem que antes seja encontrada uma solução permanente para a questão de segurança alimentar do país.
Atualmente, a Índia mantém uma rede de subsídio com duas finalidades: para que pequenos agricultores possam desenvolver sua cultura de subsistência e para repassar alimentos para os que mais precisam. O governo, assim, compra produtos com valores artificialmente mais caros e, em seguida, revende as mercadorias a preços simbólicos para os mais pobres do país. Esse modelo vai no mesmo caminho da prioridade apontada por Sen (2010). “O enfoque tem de ser sobre o poder econômico e a liberdade substantiva dos indivíduos e famílias para comprar alimento suficiente, e não apenas sobre a quantidade de alimento disponível no país em questão” (Sen, 2010, p. 211). Essa política abrange arroz e trigo – principais alimentos da dieta de um indiano comum (Iqbal e Amjda, 2010) –, mas só é realizada com sucesso nos estados de Punjab, Haryana, Andhra Pradesh e Madhya Pradesh. Esse serviço é tocado pela Food Corporation of India (FCI), que utiliza a ferramenta de preço de suporte mínimo (minimum support price) e garante a estabilidade dos preços. As normas da OMC limitam o valor do subsídio em 10% do valor total da produção de grãos de alimento. O cálculo, no entanto, é baseado em valores de 1986. A revisão dessa base de cálculo é um dos pedidos da Índia para que o acordo do TFA possa seguir em frente.
Para entender a necessidade indiana de manter os subsídios para o setor agrícola, é primordial entender não só a dinâmica econômica do país, mas também a social. É compreensível a preocupação de um governo em uma nação em que 568 milhões de pessoas sobrevivem ao cotidiano com menos de US$ 1,25/dia. A consequência pode ser sentida ainda na infância: entre os anos de 2005 e 2011, 48% das crianças com menos de cinco anos de idade eram mal nutrida. Ambos os dados são do Banco Mundial (2013). De acordo com o relatório do Global Hunger Index de 2013, dos 78 países com piores índices, apenas 15 se encontram em situação pior que a Índia (que obteve resultado de 21,3). Vizinhos como Sri Lanka (15,6) e Paquistão (19,2) estão em melhor colocação. Apontado como um dos principais fatores da causa da insegurança alimentar (Sen, 2010), o aumento populacional é especialmente alarmante na Índia, uma vez que até 2020 o país se torne o mais populoso do mundo (Banco Mundial, 2013). Entre outras fontes, também pode ser citado o baixo investimento no setor agrícola nos últimos anos, (Iqbal e Amjda, 2010).
Preocupado com essa situação, o governo indiano aprovou, no ano passado, The National Food Security Act (NFSA). O objetivo é cobrir 75% das áreas rurais – onde existe maior concentração dos pobres no país – e 50% das áreas urbanas, fornecendo 5 quilos de alimentos por pessoa a cada mês em famílias tidas como prioritárias. Cada estado está responsável pelo levantamento e cadastramento dos lares que se encaixem no perfil. Essas informações, publicadas pelo Economic Survey 2013-2014 realizado pelo Ministério do Planejamento indiano, dão conta da necessidade de gerar uma política pública voltada para a segurança alimentar do país.
Ainda assim, aproximadamente 40% do valor total da produção anual é desperdiçada. Dessa forma, duas características podem ser destacadas: o modelo de armazenamento dos alimentos e a distribuição dos mesmos. Apesar da declaração de Roma (1996) apresentar uma definição mais ampla, Pinstrup-Andersen (2009) ressalta que os principais pontos do termo segurança alimentar deve ir da preocupação de haver comida suficiente para todos até o formato de distribuição desse alimento. Para o autor, “the distribution of the available food is critical” (Pinstrup-Andersen, 2009). No que diz respeito ao armazenamento, a Índia parece começar a se atentar. O Food Bank of SAARC (States of South Asian Association for Regional Cooperation) aprovou, em 2013, que sejam realizados treinamentos para o armazenamento dos produtos.
A história do país mostra que a fome é, de fato, endêmica, e que ela se repete. Em 1943, na iminência da independência indiana, a Grande Fome de Bengala – gerada pela má administração, que decidiu desviar grãos do campo para as cidades após a interrupção das importações de arroz da Birmânia – pode ter matado 2 milhões de pessoas (Metcalf e Metcalf, 2013). Já em meados da década de 1960, com a Índia já soberana, Indira Gandhi (1917-1984) precisou buscar a ajuda dos Estados Unidos e importar alimentos para evitar mais um desastre.
A atual política de gerenciamento de alimentos serve para o alívio imediato da população mais pobre, mas ainda mantém o país em uma situação crítica. Em países com situações sociais tão críticas como a Índia, é preciso que o governo central tenha uma margem de manobra dentro de seu próprio país para poder cuidar da população. Instituições internacionais – tais como a OMC – precisam levar em considerações as situações específicas de cada membro no momento de adoção das políticas propostas. A posição tomada pela Índia serve para chamar atenção para um dos problemas mais sérios enfrentado pelos países do Sul Asiático especificamente e por países em desenvolvimento de forma geral.
Por fim, é importante ressaltar que segurança alimentar não é a mesma coisa que segurança nutricional. Para que esta última seja alcançada, outros fatores não alimentares – como qualidade da água e condições sanitárias – precisariam ser mensurados. Nesse sentido, devido à dificuldade de obter serviços de necessidades básicas por parte de boa parcela da população, parece uma meta ainda mais difícil de ser alcançada pela Índia.
Bibliografia:
COSTA LIMA, Marcos. (2013). “A Experiência Indiana: crescimento predatório e manutenção da pobreza”. Estudos Internacionais, vol. 1, n. 2, pp. 185-203, jul-dez 2013.
GLOBAL HUNGER INDEX. (2013). The Challenge of Hunger: building resilience to achieve food and nutrition secutiry. Disponível em: http://www.ifpri.org/sites/default/files/publications/ghi13.pdf
GUHA, Ramachandra. (2007). India After Gandhi: the history of the world’s largest democracy. New York: HarperCollins Publishers.
IQBAL, Muhammad e AMJAD, Rashid (2010): “Food security in South Asia: strategies and programmes for regional collaboration”. Regional Integration and Economic Development in South Asia, Edgar Elgar Publisher, Cheltenham
METCALF, Barbara D. e Metcalf, Thomas R. (2013). História Concisa da Índia Moderna. São Paulo: Edipro.
PINSTRUP-Andersen, Per. (2009). “Food Security: definition and measurement”. Food Security Journal, vol. 1, pp. 5-7, 2009.
PROJECT SYNDICATE. (2014). India’s Homemade Food Crisis. Disponível em: http://www.project-syndicate.org/commentary/asit-k–biswas-and-cecilia-tortajada-attribute-shortages-and-undernourishment-to-widespread-wastage-of-output
SEN, Amartya. (2010). Desenvolvimento como Liberdade. São Paulo: Companhia das Letras.
WORLD BANK. (2013). Atlas of Global Development: a visual guide to the world’s greatest challenges. Washington, DC: World Bank.
Rodrigo Galvão Pinho Lins é mestrando em Ciência Política pela Universidade Federal de Pernambuco e Bolsista do CNPq
sábado, 7 de maio de 2011
A esquizofrenia economica do G20 comercial -- protecionismo agricola chines
Mas eu alertei, desde o início, para o caráter totalmente esquizofrênico do G20 comercial, composto de exportadores agrícolas competitivos, que pretendiam reduzir o protecionismo agrícola e o subvencionismo renitente dos países avançados, ao mesmo tempo em que se calava, e de fato protegia, o subvencionismo e o protecionismo agrícolas de alguns dos seus próprios membros, a começar pelos gigantes China e Índia.
Ora, todos sabemos que se houver expansão da demanda agrícola no mundo ela virá sobretudo de países emergentes, como os dois citados.
Defender, ocultar, até proteger as práticas deletérias desses dois grandes nos mercados agrícolas mundiais só pode ser visto, assim, como uma burrice monumental, como uma ação deletéria do ponto de vista dos interesses nacionais, como uma traição à pátria.
Sempre me surpreendeu que jornalistas não chamassem a atenção para esse fato, no entanto tão evidente. Parece que agora começam a fazê-lo.
Não sei se burrice é contagiosa, mas no caso de certas pessoas do governo anterior, a motivação era puramente ideológica e totalmente estúpida, para sermos mais claros...
Paulo Roberto de Almeida
O protecionismo agrícola chinês
Raquel Landim
O Estado de S.Paulo, 4 de maio de 2011
Não é nenhuma novidade contar que a China é um grande comprador de commodities brasileiras. O país asiático se tornou o maior parceiro comercial do Brasil adquirindo minério de ferro, soja e petróleo. Esses produtos respondem por mais de 80% das exportações brasileiras para a China. Em sua recente viagem a Pequim, a presidente Dilma Rousseff arrancou um compromisso – ainda teórico – dos chineses de aumentar as compras de manufaturados do Brasil.
Fica a impressão de que a China é um excelente cliente dos agricultores brasileiros, que vendem matérias-primas. É verdade, mas apenas em parte. A China é hoje o principal comprador de soja brasileira e absorveu 66% do grão vendido pelo País no exterior no ano passado, o equivalente a US$ 7,92 bilhões. O problema é que esse produto responde por mais de 90% das exportações agrícolas do Brasil para a China. Não parece, mas os chineses são extremamente protecionistas na agricultura.
“Se a China exporta manufaturados para o Brasil, tem que compensar e permitir a entrada de nossos produtos agrícolas. É nesse setor que somos competitivos”, disse ao blog Pedro de Camargo Neto, presidente da Associação dos Exportadores de Carne Suína (Abipecs). “Queremos que o governo demonstre aos chineses as dificuldades que a nossa agroindústria enfrenta com as barreiras sanitárias”, completou Carlos Gilberto Farias, presidente do conselho da agroindústria da Confederação Nacional da Indústria (CNI).
Vejam o exemplo da própria soja. Mais de 90% das exportações brasileiras são de grão, ao invés de farelo e óleo, que possuem valor agregado mais alto. Os chineses praticam uma “escalada tarifária” no complexo soja: cobram 3% de imposto de importação do grão, 5% do farelo e 9% do óleo. O setor também desconfia de outras barreiras informais, como isentar apenas o grão de impostos internos. Com essas políticas protecionistas, os chineses desenvolveram uma robusta indústria processadora de soja e desestimularam essa atividade no Brasil. A China é hoje o quarto maior produtor mundial de soja, com 17 milhões de toneladas, mas esmaga 50 milhões de toneladas.
A avaliação do agronegócio brasileiro hoje é que a melhor estratégia é tentar viabilizar a exportação de carne para a China. A produção de carne bovina, suína e de frango representa uma agregação de valor ainda maior, porque os animais são alimentados com ração a base de farelo de soja e milho. Mas não é tarefa fácil. Na visita de Dilma, foi liberada a importação de carne suína proveniente de treze frigoríficos. A batalha de conquista desse imenso mercado deve ser dura.
A China já permite a entrada de carne bovina e de frango do Brasil, mas os volumes exportados ainda são insignificantes por conta das retrições de cotas e do pequeno número de frigoríficos habilitados a exportar. No ano passado, os chineses absorveram 130 mil toneladas de carne de frango e apenas 1,4 mil toneladas de carne bovina do Brasil. As exportações totais do País chegam a 3,8 milhões de toneladas de carne de frango e 1,2 mihão de toneladas de carne bovina.
A pedido do blog, André Nassar, diretor-executivo do Instituto de Estudos do Comércio e Negociações Internacionais (Icone) , calculou quanto o Brasil perde com o protecionismo agrícola chinês. Ele avaliou os setores de soja, carnes, açúcar e algodão. O levantamento considerou que, sem as barreiras, o Brasil pode alcançar nas importações chinesas a mesma participação nesses produtos que detém no mundo. Isso significa US$ 1 bilhão a mais em exportação por ano.
É importante vender mais manufaturados para a China, país cujo consumo cresce exponencialmente. Mas a verdade é que pouquíssimos setores tem condições de competir com a máquina de produção chinesa. O agronegócio é um deles. Vale a pena o governo brasileiro pressionar pela derrubada do protecionismo agrícola chinês.
terça-feira, 1 de fevereiro de 2011
G20 comercial e G20 financeiro: a confusao continua...
Vamos aguardar uma matéria para desfazer a confusão, pois os esclarecimentos ainda não foram muito explícitos.
Paulo Roberto de Almeida
Os G-20
Merval Pereira
O Globo, 1/02/2010
O economista Nouriel Roubini, professor de economia na Universidade de Nova York, que ganhou notoriedade por ter sido talvez o único a antecipar a crise financeira que abalou os mercados mundiais nos últimos anos, tem uma visão pessimista da atuação do G-20, o grupo que reúne as maiores economias do mundo, afirmando que há “um completo desentendimento” no que chama de G-Zero.
No Fórum Econômico Mundial de Davos, Roubini lamentou que não existam hoje no mundo lideranças que possam organizar a ação internacional para enfrentar a crise, que ainda está presente.
Essa, porém, não é a opinião predominante entre os principais executivos e autoridades que andaram na semana passada pelo Fórum de Davos.
O papel do G-20 de coordenar uma resposta efetiva à crise financeira global que estourou em 2008 foi considerado exitoso pela maioria dos presentes que, ao contrário, consideram que o organismo internacional ganhou corpo para enfrentar uma tarefa mais complexa, que representa um desafio até maior: assegurar a estabilidade e uma recuperação econômica sustentável.
Para isso, o G-20 terá que tomar medidas que previnam uma próxima crise sistêmica. Essa foi a conclusão genérica de um painel realizado no Fórum Econômico Mundial em Davos, coordenado pelo jornalista Michael J. Elliott, editor da revista “Time” e que teve a presença, entre outros, de Tony Clement, ministro da Indústria do Canadá; Cui Tiankai, vice-ministro Relações Exteriores da China; e Mari Elka Pangestu, ministro do Comércio da Indonésia.
O desafio mais sensível é a regulação dos mercados financeiros internacionais, uma prioridade já anunciada pelo presidente francês Nicolas Sarkozy, que preside o grupo este ano.
Houve um consenso na mesa de debates: os líderes do G-20 terão que ser cautelosos em relação à regulação dos mercados financeiros, pesando bem os custos dessa regulação e o potencial destrutivo de suas consequências. Tão importante quanto a regulação deve ser a criação de mecanismos que façam com que o sistema seja resistente a futuras crises, como uma rede de proteção para países vulneráveis a choques externos e fuga de capitais.
Há um entendimento generalizado, contrariando a visão de Roubini, apelidado de “Mr. Catástrofe” por seu pessimismo, de que o G-20 representa um passo gigantesco em termos de governança e cooperação internacionais, embora haja críticas quanto à sua representatividade.
Em particular, há a sensação de que a África deveria estar mais representada no grupo, enquanto a Europa está super-representada.
Também as economias emergentes precisam ter papéis mais afirmativos no FMI e no Banco Mundial, a partir de suas presenças no G-20.
Acima de tudo, diz um resumo do debate no Fórum Econômico Mundial, o G-20 tem que evitar ser um “ clube exclusivo”, encarando os problemas globais que interessem a todos os países, e não apenas aos interesses específicos de seus membros.
De qualquer maneira, o G-20 transformou-se em pouco tempo em um organismo importante e teve um papel fundamental de prevenção na crise financeira de 2008, restaurando um mínimo de senso de estabilidade coordenando uma expansão fiscal sem precedentes de cerca de US$5 trilhões.
O G-20 que reúne as maiores economias do mundo, na definição do embaixador Roberto Abdenur, é mais relevante “e agora se ergue, no complicado esforço de administrar a crise e tentar proceder de maneira consensual a um rearranjo do poder decisório sobre a economia internacional”. Na avaliação de Abdenur, porém, o G-20 comercial surgido há vários anos no seio da OMC, no contexto das negociações da Rodada de Doha para o Desenvolvimento, teve sua importância.
Iniciativa de Brasil e Índia, reuniu 20 países em desenvolvimento, irmanados num objetivo comum: a luta contra os subsídios agrícolas praticados pela UE, EUA e muitos outros países desenvolvidos.
Para além disso, congregava o grupo o sentimento de que a agenda agrícola não poderia ser jogada de lado, como havia ocorrido na Rodada Uruguai.
O G-20 se dividiu quando da apresentação, em meados de 2008, de um pacote de conciliação. O Brasil aceitou a iniciativa, Índia e China se opuseram fortemente, pois, ao contrário do Brasil, têm postura defensiva no que se refere a acesso a seus mercados agrícolas, o que resultou no fracasso das negociações.
Embora volta e meia seja anunciada a retomada das negociações da Rodada Doha, e este ano em Davos não foi diferente, Abdenur diz ironicamente que ela está “em estado de coma meio criogênico, à maneira da tripulação da nave do Avatar. Talvez algum dia volte ao planeta Terra, e se reanime. Mas isso, nas presentes circunstâncias, ainda vai demorar”.
O outro G-20 é aquele que agora reúne o G-7/8 — que sobrevive, dedicado agora a questões da paz e segurança internacionais — e outros 12 países, todos eles emergentes, entre os quais China e Índia, os mesmos que discordaram do Brasil na rodada do G-20 comercial de 2008.
Agora, esses mesmos países estarão discutindo a agenda do presidente francês Nicolas Sarkozy, que prioriza a regulamentação dos mercados financeiros internacionais e também o mercado de commodities, inclusive o de alimentos, e provavelmente estarão unidos novamente para defender seus interesses específicos.
Esse G-20 já existia há alguns anos, reunindo-se, no nível de ministros das Finanças, à sombra do FMI/Banco Mundial. O embaixador Roberto Abdenur localiza na sua origem uma ideia do então influente ministro canadense, Paul Martin.
Abdenur considera que a “revolução”, em termos do reordenamento do sistema decisório, foi a elevação, ainda na Presidência de George W. Bush, do G-20 ao nível de chefes de governo, como uma maneira de encarar os problemas internacionais que estiveram na origem da crise global desatada em fins de 2008.
sábado, 29 de janeiro de 2011
Merval Pereira : "No centro das decisoes" - O Globo, 28/01/2011: carta PRA
Caro Merval,
Leitor regular, ainda que não constante, de suas colunas no jornal e de seus comentários na CBN sobre a atualidade política nacional e mundial, não posso deixar de chamar sua atenção para um equívoco importante cometido em sua coluna da sexta-feira, 28/01, e para uma outra passagem que reflete um equívoco do presidente Sarkozy, que deveria ter sido registrado e corrigido por você.
Ao início de seu texto, você escreveu isto:
"O G20, que reúne as maiores economias do mundo, toma cada vez mais jeito de ser o organismo apropriado para as decisões do novo mundo multipolar que vem se desenhando, substituindo o G-8 antes que os fatos o tornassem obsoleto. Em poucos anos, países emergentes como China, Índia e Brasil estarão entre as principais economia do mundo, superando muitas das que hoje fazem parte do G-8."
Mas, no meio do seu texto, você escreve isto:
"O G-20 nasceu em 2003, por ocasião da reunião da Organização Mundial do Comércio em Cancún, no México -- que paralisou as negociações da Rodada de Doha para liberalização do comércio internacional devido a um impasse que colocou o grupo de países emergentes, ~a época liderado pelo brasil, em contraposição a Estados Unidos, Japão, e União Europeia."
Seu equívoco, que me parece grave, pois pode induzir os leitores a confusão, é o de ter confundido o G20 comercial, grupo de países em desenvolvimento criado por iniciativa do Brasil na ministerial de 2003 da OMC em Cancun, para tratar EXCLUSIVAMENTE de quesões de política agrícola naquele foro multilateral, com um grupo totalmente diferente, o G20 financeiro, que existe desde 1999, paralelamente ao Forum de Estabilidade Financeira, criando no âmbito do FMI para tratar da questão dos desequilíbrios monetários, mas que tinha permanecido numa relativa obscuridade, até ser redespertado de seu torpor institucional pela crise americana, a partir de 2008.
Se trata de dois grupos completamente diferentes, pelo escopo, objetivos e composição, ainda que alguns (mesmos) países participem de ambos, como é obviamente o caso do Brasil e da China, por exemplo. Mas um grupo não tem absolutamente nada a ver com o outro, pois o G20 financeiro incorpora todos os países do G8 e outros da OCDE (menos a Espanha, para desgosto dela, mas ela se esforça por participar) e algo como 11 países ditos "emergentes", mas importantes em termos economicos (finanças, investimentos, comércio, propriedade intelectual, tecnologia, meio ambiente, etc.).
Creio, sinceramente, mas isto é apenas uma sugestão, que você deveria registrar esse pequeno equívoco e talvez aproveitar a ocasião para tratar de ambos os grupos, ou da questão da agenda internacional como um todo, fazendo as necessárias distinções entre um debate "comercial-agrícola" de um lado (com o seu G20 comercial de países em desenvolvimento), e os debates de governança global, de outro, com os importantes problemas financeiros e monetários, nos quais o G20 financeiro talvez tenha um papel a desempenhar.
Pessoalmente, creio que, depois de vermos a velha Guerra Fria enterrada em grande medida, estamos em meio a uma "Guerra Fria econômica", com todas as potenciais tensões, eventualmente cambiais, a ela associados.
No que se refere ao equívoco de Sarkozy, que pessoalmente creio você deveria ter corrigido, por corresponder a um absurdo lógico e econômico, ele se reflete na seguinte passagem:
"É dentro de um contexto de um mundo que muda rapidamente, (...) que Sarkozy vê a necessidade de uma ação para conter as especulações." [O presidente francês preconiza, em suas palavras, "regulamentar não apenas os mercados financeiros internacionais, mas também o mercado internacional de commodities, em especial o de produtos agrícolas".]
"Não parecia [Sarkozy] estar fazendo cena quando previu que em 20 a 30 anos, se não houver uma mudança de postura diante dos problemas como escassez de alimentos devido à alta especulativa de preços, pode haver uma crise de proporções inestimáveis."
Ou a posição de Sarkozy é absolutamente inconsistente com os dados da realidade -- e eu tendo a concordar em que ele está atuando politicamente de maneira totalmente irracional e ilógica, no plano econômico -- ou seu texto é muito ambíguo e não chega a perceber a tremenda contradição que existe nessas frases.
Vejamos: a escassez de alimentos não se deve, de nenhuma forma, à alta especulativa de preços, em absoluto. Os preços de produtos agrícolas, e os de várias outras commodities, subiram porque houve aumento da demanda -- o que é claramente percebido pelo aumento de renda em vários mercados emergentes em crescimento sustentado -- ou então quebra temporária, acidental ou natural, da produção, cabendo então responsabilizar a alta de preços pela velha lei da oferta e da procura, e não a qualquer movimento especulativo, o que num mercado absolutamente aberto e globalizado como esse seria difícil de se registrar.
Mas a posição do Sarkozy é ainda mais inconsistente, no plano da lógica e da economia, porque, se existe aumento de preços, haverá novos estímulos à produção agrícola, que tenderá a aumentar, portanto, jamais tendência à escassez catastrófica que ele anuncia. A história, aliás, nos confirma o grau de estupidez que existe em todas essas previsões malthusianas: a população mundial aumentou seis vezes, ao longo do século 20, mas o PIB mundial cresceu mais de 20 vezes, aumentando a riqueza, a renda, a disponibilidade de alimentos e de bens e serviços de todos os tipos para todos os povos do mundo. Apenas aqueles que não participam das trocas mundiais é que podem ter enfrentado fomes epidêmicas ou surtos temporários de escassez de oferta, o que não tem nada a ver com a indisponibilidade de alimentos em outras partes do mundo ou com movimentos temporariamente especulativos em determinados mercados sujeitos a desequilibrios momentâneos.
Surpreende-me, portanto, essa total falta de lógica em aliar "alta especulativa de preços" com "escassez de alimentos". Isso não faz nenhum sentido, nunca fez e não fará daqui para a frente. O presidente Sarkozy está apenas querendo disfarçar um desconforto orçamentário e inflacionário com uma alta temporária dos alimentos, propondo um tipo de regulamentação absolutamente contrária à lógica econômica e à experiência da história.
Se a França e a União Europeia decidissem terminar com o subvencionismo e o protecionismo agrícolas, de fato a absurda "Loucura Agrícola Comum" que eles defendem, o mundo seria um lugar bem mais abundante em produtos agrícolas, sem a penúria e a pobreza que essas políticas provocam em países africanos e outros em desenvolvimento.
Com minhas saudações cordiais, e certo de que você receberá minhas observações com um testemunho do apreço que mantenho por sua coluna e comentários de rádio, despeço-me, cordialmente,
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Paulo Roberto Almeida