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sábado, 29 de janeiro de 2011

Merval Pereira : "No centro das decisoes" - O Globo, 28/01/2011: carta PRA

Abaixo o teor de uma carta que despachei ao jornalista, colunista do jornal O Globo e comentarista da rádio CBN:

Caro Merval,
Leitor regular, ainda que não constante, de suas colunas no jornal e de seus comentários na CBN sobre a atualidade política nacional e mundial, não posso deixar de chamar sua atenção para um equívoco importante cometido em sua coluna da sexta-feira, 28/01, e para uma outra passagem que reflete um equívoco do presidente Sarkozy, que deveria ter sido registrado e corrigido por você.

Ao início de seu texto, você escreveu isto:
"O G20, que reúne as maiores economias do mundo, toma cada vez mais jeito de ser o organismo apropriado para as decisões do novo mundo multipolar que vem se desenhando, substituindo o G-8 antes que os fatos o tornassem obsoleto. Em poucos anos, países emergentes como China, Índia e Brasil estarão entre as principais economia do mundo, superando muitas das que hoje fazem parte do G-8."
Mas, no meio do seu texto, você escreve isto:
"O G-20 nasceu em 2003, por ocasião da reunião da Organização Mundial do Comércio em Cancún, no México -- que paralisou as negociações da Rodada de Doha para liberalização do comércio internacional devido a um impasse que colocou o grupo de países emergentes, ~a época liderado pelo brasil, em contraposição a Estados Unidos, Japão, e União Europeia."

Seu equívoco, que me parece grave, pois pode induzir os leitores a confusão, é o de ter confundido o G20 comercial, grupo de países em desenvolvimento criado por iniciativa do Brasil na ministerial de 2003 da OMC em Cancun, para tratar EXCLUSIVAMENTE de quesões de política agrícola naquele foro multilateral, com um grupo totalmente diferente, o G20 financeiro, que existe desde 1999, paralelamente ao Forum de Estabilidade Financeira, criando no âmbito do FMI para tratar da questão dos desequilíbrios monetários, mas que tinha permanecido numa relativa obscuridade, até ser redespertado de seu torpor institucional pela crise americana, a partir de 2008.
Se trata de dois grupos completamente diferentes, pelo escopo, objetivos e composição, ainda que alguns (mesmos) países participem de ambos, como é obviamente o caso do Brasil e da China, por exemplo. Mas um grupo não tem absolutamente nada a ver com o outro, pois o G20 financeiro incorpora todos os países do G8 e outros da OCDE (menos a Espanha, para desgosto dela, mas ela se esforça por participar) e algo como 11 países ditos "emergentes", mas importantes em termos economicos (finanças, investimentos, comércio, propriedade intelectual, tecnologia, meio ambiente, etc.).

Creio, sinceramente, mas isto é apenas uma sugestão, que você deveria registrar esse pequeno equívoco e talvez aproveitar a ocasião para tratar de ambos os grupos, ou da questão da agenda internacional como um todo, fazendo as necessárias distinções entre um debate "comercial-agrícola" de um lado (com o seu G20 comercial de países em desenvolvimento), e os debates de governança global, de outro, com os importantes problemas financeiros e monetários, nos quais o G20 financeiro talvez tenha um papel a desempenhar.
Pessoalmente, creio que, depois de vermos a velha Guerra Fria enterrada em grande medida, estamos em meio a uma "Guerra Fria econômica", com todas as potenciais tensões, eventualmente cambiais, a ela associados.

No que se refere ao equívoco de Sarkozy, que pessoalmente creio você deveria ter corrigido, por corresponder a um absurdo lógico e econômico, ele se reflete na seguinte passagem:

"É dentro de um contexto de um mundo que muda rapidamente, (...) que Sarkozy vê a necessidade de uma ação para conter as especulações." [O presidente francês preconiza, em suas palavras, "regulamentar não apenas os mercados financeiros internacionais, mas também o mercado internacional de commodities, em especial o de produtos agrícolas".]
"Não parecia [Sarkozy] estar fazendo cena quando previu que em 20 a 30 anos, se não houver uma mudança de postura diante dos problemas como escassez de alimentos devido à alta especulativa de preços, pode haver uma crise de proporções inestimáveis."

Ou a posição de Sarkozy é absolutamente inconsistente com os dados da realidade -- e eu tendo a concordar em que ele está atuando politicamente de maneira totalmente irracional e ilógica, no plano econômico -- ou seu texto é muito ambíguo e não chega a perceber a tremenda contradição que existe nessas frases.
Vejamos: a escassez de alimentos não se deve, de nenhuma forma, à alta especulativa de preços, em absoluto. Os preços de produtos agrícolas, e os de várias outras commodities, subiram porque houve aumento da demanda -- o que é claramente percebido pelo aumento de renda em vários mercados emergentes em crescimento sustentado -- ou então quebra temporária, acidental ou natural, da produção, cabendo então responsabilizar a alta de preços pela velha lei da oferta e da procura, e não a qualquer movimento especulativo, o que num mercado absolutamente aberto e globalizado como esse seria difícil de se registrar.
Mas a posição do Sarkozy é ainda mais inconsistente, no plano da lógica e da economia, porque, se existe aumento de preços, haverá novos estímulos à produção agrícola, que tenderá a aumentar, portanto, jamais tendência à escassez catastrófica que ele anuncia. A história, aliás, nos confirma o grau de estupidez que existe em todas essas previsões malthusianas: a população mundial aumentou seis vezes, ao longo do século 20, mas o PIB mundial cresceu mais de 20 vezes, aumentando a riqueza, a renda, a disponibilidade de alimentos e de bens e serviços de todos os tipos para todos os povos do mundo. Apenas aqueles que não participam das trocas mundiais é que podem ter enfrentado fomes epidêmicas ou surtos temporários de escassez de oferta, o que não tem nada a ver com a indisponibilidade de alimentos em outras partes do mundo ou com movimentos temporariamente especulativos em determinados mercados sujeitos a desequilibrios momentâneos.
Surpreende-me, portanto, essa total falta de lógica em aliar "alta especulativa de preços" com "escassez de alimentos". Isso não faz nenhum sentido, nunca fez e não fará daqui para a frente. O presidente Sarkozy está apenas querendo disfarçar um desconforto orçamentário e inflacionário com uma alta temporária dos alimentos, propondo um tipo de regulamentação absolutamente contrária à lógica econômica e à experiência da história.
Se a França e a União Europeia decidissem terminar com o subvencionismo e o protecionismo agrícolas, de fato a absurda "Loucura Agrícola Comum" que eles defendem, o mundo seria um lugar bem mais abundante em produtos agrícolas, sem a penúria e a pobreza que essas políticas provocam em países africanos e outros em desenvolvimento.

Com minhas saudações cordiais, e certo de que você receberá minhas observações com um testemunho do apreço que mantenho por sua coluna e comentários de rádio, despeço-me, cordialmente,
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Paulo Roberto Almeida