Se Lula imaginava que seria recebido com flores e aplausos onde quer que fosse, se enganou, e já deve ter percebido que sua postura no tocante à guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia— em relação à qual permanece visivelmente pró-Rússia, por diferentes motivos —, visivelmente não agradou americanos e europeus. Não adianta repetir que fará as melhores escolhas para o Brasil soberanamente, só pensando nos “interesses nacionais”, que isso não é visto como legítimo, do ponto de vista do Direito Internacional, nem é verdade, pois são suas simpatias ideológicas que o ditaram. Os americanos ainda estão tentando convencê-lo de aderir a “bons modos”, mas os europeus já sinalizaram o que é inaceitável.
Paulo Roberto de Almeida
Documento secreto indica preocupação da União Europeia com o governo Lula
Arquivo vazado do bloco europeu expressa reservas em relação a postura do presidente sobre Guerra da Ucrânia e meio ambiente
Ivan Finotti
MADRI
A União Europeia está preocupada com a posição do Brasil em relação à Guerra da Ucrânia e com a falta de cumprimento de obrigações na área ambiental, indica um documento oficial e confidencial que trata das relações do bloco europeu com quatro países emergentes: Brasil, Chile, Nigéria e Cazaquistão.
Se as "informações não públicas", conforme é dito no texto, não trazem informações bombásticas, são um vislumbre do trabalho de bastidores da diplomacia atual e traçam um instantâneo de como o Brasil é visto neste momento pela Europa. O documento, obtido nesta segunda-feira (24) pela Folha, teve seu teor inicialmente divulgado pelo site de notícias americano Politico.
Apesar de os líderes europeus se mostrarem aliviados com a eleição de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e com a volta do Brasil ao cenário internacional —após quatro anos de apagão sob o ex-presidente Jair Bolsonaro—, o texto mostra preocupação com as recentes declarações do petista.
“Relançar a parceria estratégica com o Brasil" é um dos pontos do documento descritos como de interesse da comunidade europeia. "UE preocupada que o foco de Lula na reindustrialização possa se tornar protecionista" é outro tópico citado.
Entre os interesses do Brasil, diz a UE, está "ser reconhecido e tratado como ator global" e a "diversificação do fornecimento de fertilizantes (dependência excessiva da Rússia e da Belarus)", entre outros.
Preparado por diplomatas do bloco, o "Plano de Ação da UE sobre as Consequências Geopolíticas da Invasão Russa da Ucrânia em Países Terceiros" detalha estratégias para reaproximar ou manter a proximidade dos quatro países.
O arquivo de sete páginas reserva, após a introdução, uma página para cada nação, exibindo pontos divididos em quatro partes: "interesses da UE", "interesses do país terceiro", "desafios" e "oportunidades".
Na introdução, há um breve resumo da situação de cada país e a do Brasil diz o seguinte: "O atual governo mostra sinais de disposição para intensificar a cooperação. Uma estrutura para fortalecer o engajamento já existe, uma vez que a UE já tem uma parceria estratégica que pode ser reativada. O avanço do acordo UE-Mercosul será de fundamental importância. Mas a UE também precisará aumentar os investimentos em energia e nas áreas digital e de sustentabilidade".
A introdução revela a razão do relatório: "Tornou-se claro logo após o início da invasão russa da Ucrânia que suas consequências eram globais. A resposta da UE baseou-se, portanto, no apoio à Ucrânia, no combate à Rússia e no apoio aos parceiros em todo o mundo para lidar com consequências globais".
O texto dos diplomatas europeus cita ainda um "um ambiente geopolítico competitivo" em que há "não apenas uma batalha de narrativas, mas também uma batalha de ofertas" como justificativa para a renovação de estratégias nas parcerias internacionais. Em especial, infere-se, com os quatro países citados. "O ‘Plano de Ação’ faz exatamente isso: com base na geografia, na influência regional e na abrangência política da UE, selecionamos países prioritários para negociar uma oferta com cada um deles, adaptada aos interesses deles e aos nossos", diz o documento.
A seguir, o texto apresenta resumos dos países emergentes priorizados no documento. No caso da Nigéria, lembra que "haverá um novo presidente e um novo governo após a posse em maio. Um diálogo ministerial está planejado." Em seguida, o relatório sugere que a UE deve facilitar o fornecimento de vistos aos cidadãos do Cazaquistão "em vista de um relacionamento aprimorado".
Quanto ao Chile, "quase não há atritos bilaterais no relacionamento com a UE, e há um engajamento de alto nível em todas as políticas com esse parceiro de mentalidade semelhante. (...) Mas a UE deve estabelecer uma boa sequência de visitas e diálogos como parte de um pacote geral".
Ao fim, o relatório ainda apresenta o que chama de "narrativas para o público externo", sugerindo forma de abordar os temas com os outros países. Entre essas narrativas estão frases mais genéricas como "o Plano de Ação tem como objetivo unir forças com os parceiros, para o benefício de nossos povos e com o objetivo final de contribuir para a estabilidade e o crescimento globais" e "ações necessárias para enfrentar os desafios comuns e aproveitar as oportunidades, para as quais mobilizaremos todos os instrumentos à nossa disposição".
Confira a seguir a íntegra dos pontos confidenciais listados pelo "Plano de Ação da UE" em relação ao Brasil, divididos em quatro blocos.
Interesses da União Europeia
Relançar a parceria estratégica com o Brasil
Concluir o acordo de Associação UE-Mercosul
Obter maior apoio político do Brasil na ONU, globalmente e regionalmente
Acesso ao mercado e aumento de oportunidades no Brasil para negócios e investimentos da UE
Obter o reconhecimento brasileiro para as garantias de segurança alimentar da UE
Impulsionar a cooperação em transformações verdes e digitais, ação climática e ambiente
Garantir matérias-primas essenciais para o Acordo Verde da UE
Abordar a atuação da China na adesão do Brasil ao Acordo de Compras Governamentais da Organização Mundial do Comércio
Fortalecer a cooperação em defesa e segurança
Interesses do Brasil
Ser reconhecido e tratado como um ator global (inclusive em relação à reforma da ONU)
Concluir o Acordo de Associação UE-Mercosul (ao mesmo tempo em que enfatiza a necessidade de resolver desequilíbrios nas relações UE-Mercosul)
Atrair mais comércio, investimento e tecnologia da UE e aproveitar as oportunidades em clima, energia e mineração
Melhorar o acesso ao mercado da UE para produtos agrícolas
Diversificação do fornecimento de fertilizantes (dependência excessiva da Rússia e da Belarus)
Agregar valor à matéria-prima exportada
Apoio ao desenvolvimento de instituições democráticas, direitos indígenas e meios de subsistência, redução da pobreza, desenvolvimento sustentável e políticas sociais, educação
Fortalecer a cooperação em defesa, segurança e espaço (Centro de Alcântara)
Desafios
O Brasil vê as propostas legislativas autônomas da UE (legislação do Acordo Verde) como medidas unilaterais protecionistas, em especial a legislação sobre desmatamento e a CBAM (Mecanismo de Ajuste de Limites de Carbono). Essa preocupação também foi levantada pelo BR nas discussões em andamento sobre a finalização do Acordo UE-Mercosul
O Brasil sente falta de uma agenda positiva para o engajamento mútuo: nenhuma cúpula desde 2014
UE preocupada que o foco de Lula na reindustrialização possa se tornar protecionista
UE preocupada com a possibilidade de o Brasil querer reabrir o Acordo do Mercosul
UE preocupada com a posição do Brasil sobre a guerra da Rússia contra a Ucrânia e com a falta de cumprimento de obrigações em relação a clima, ambiente e aprovação sanitária dos produtos da UE
Oportunidades
A política externa está de volta ao topo da agenda do Brasil, com o presidente Lula ansioso para obter êxitos (o Acordo de Associação UE-Mercosul poderia ser um deles)
Forte alinhamento de políticas com o governo Lula, por exemplo, nas transições verde e digital, direitos humanos, direitos indígenas, combate ao garimpo ilegal de ouro, defesa e segurança
Possível avanço no combate ao desmatamento e biodiversidade se a UE conseguir apoiar o Brasil na criação de empregos e na adaptação às novas regulamentações da UE
Alavancar o papel do Brasil como um ator construtivo na região, inclusive na Celac (Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos)
Ajudar no processo de adesão do Brasil à OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) e à presidência do G20 (2024)