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sexta-feira, 19 de julho de 2024

Crítica da sociologia de um Brasil que não é - José de Souza Martins (Jornal da USP)

 Crítica da sociologia de um Brasil que não é

Por José de Souza Martins, Professor Emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP

Jornal da USP, 17/07/2024

Há alguns anos publiquei o livro Poder do Atraso – Ensaios de sociologia da história lenta, que contém duas conferências que fiz na Universidade de Londres, em 1994. Uma, sobre “Clientelismo e corrupção no Brasil contemporâneo” e outra sobre “A aliança entre capital e propriedade da terra no Brasil: A aliança do atraso”. Nelas analiso a dimensão política das peculiaridades estruturais e históricas da sociedade brasileira, o que muda apenas lentamente, sem superações significativas e definitivas.

Desde minhas primeiras pesquisas, em 1965, tenho me interessado pelos fatores e causas do atraso desta sociedade. Os que discrepam em relação às sociedades que produziram o conhecimento inaugural de um objeto científico original e primevo, a sociologia.

A sociologia já estava nascendo quando o Brasil ainda tinha legalmente escravidão. E apenas esboçava a adoção de um pensamento propriamente sociológico em obras até hoje referenciais de Joaquim Nabuco e de Euclides da Cunha. E até numa obra surpreendente de Machado de Assis, O Alienista, um personagem alienado, louco e poderoso ao mesmo tempo. Até hoje um persistente traço do nosso caráter nacional e das nossas limitações políticas.

No nascimento da república antirrepublicana de 1889, os republicanos militares do golpe de Estado contra os republicanos civis do partido nascido em Itu, em 1873, acabou se definindo na bandeira pelo mote positivista e sociológico de “ordem e progresso”. Uma opção estrangeira e estranha.

Num clássico do pensamento social brasileiro, Alberto Torres estranhava as nossas estranhezas, o que em nós tem sido postiço, ao comentar que só tivéramos ordem na escravidão, o que era verdade: a ordem da sujeição pessoal do escravo e do confinamento estamental dos brancos. Uma ordem antirrepublicana e a ordem diversa da concebida por Augusto Comte e os positivistas. Aqui a ordem foi concebida pelo positivismo militar como expressão da carência de repressão, para enquadramento do povo nos rigores da lei para contrabalançar a liberdade mais ou menos inevitável, como a da abolição. A ordem desse imaginário fora do lugar era e tem sido o sucedâneo da chibata e do tronco do feitor de senzala. Ainda em 1557, escrevendo de Salvador, diz o padre Manoel da Nóbrega sobre os nativos serrem “gente de condição mais de feras bravas que de gente racional, e ser gente servil que se quer por medo…”

O uso da violência física, ainda hoje, no Brasil, nas situações de escravidão por dívida, repete o que se tornou um modo de dominação nas relações laborais. Uma lenta demora própria de nossa história lenta. Não é estranho que num País formalmente capitalista subsistam formas não capitalistas de trabalho.

O Brasil é um País capitalista de um peculiar capitalismo atrasado, marcado por contradições peculiares, subdesenvolvidas, não as contradições típicas das citações e reproduções contidas nos manuais de ideologia política nem nos manuais de economia desenvolvimentista determinantes de uma sociedade condenada à ordem, mas sem progresso.

Nesse plano, as ciências sociais, entre nós, não têm enfrentado o desafio de interpretar nossa sociedade como ela é, optando sobretudo pela interpretação do que ela não é e provavelmente não será. Nós tendemos a analisá-la como se fosse de fato uma sociedade capitalista porque achamos que o é. Mas achar não é próprio da ciência.

As sociedades têm singularidades que as tornam diferentes dos modelos clássicos de definição teórica do que a sociedade é. Até no senso comum acadêmico, isto é, no que é o nosso achismo universitário. Portanto, características que expressam singularmente os desafios interpretativos de suas diferenças e não só daquilo que aparentemente repete o que também são as sociedades dominantes de referência do sociólogo.

Nesse sentido, a expectativa do inesperado é uma referência que os cientistas sociais, especialmente o sociólogo, num País como este, não podem dispensar no elenco dos seus procedimentos de pesquisa. O Brasil que esperamos encontrar no trabalho científico é mais o Brasil que fala a língua mestiça de português e nheengatu do que, propriamente, o português de Camões e do Padre Antonio Vieira. E isso quer dizer uma língua de seres humanos dominados, fala de sujeição e medo, dissimulação e duplo sentido. Língua do faz de conta, do acho e da incerteza.

O autoritarismo brasileiro, particularmente agudo nas nossas incertezas desta hora, prenhe de mentiras, em que o povo tem estado sujeito à manipulação social, com base no pressuposto de que é povo vulnerável ao poder do outro. Os poderosos e manipuladores acreditam nisso como se vê em suas ações. Mas o nosso caráter social duplo e da duplicidade permite ao povo manipular o manipulador. No duplo sentido existe o outro lado, o lado invisível e ativo da sociedade e da práxis. O que, com Henri Lefebvre, podemos definir como o avesso do visto e percebido.


sexta-feira, 4 de agosto de 2023

As lições do caso Oppenheimer - José de Souza Martins

Oppenheimer e a suspeita generalizada de comunismo

 José de Souza Martins*

Eu & / Valor Econômico, 4/08/2023


O grande interesse pelo filme de Christopher Nolan sobre o físico americano mostra que persistem inquietações quanto ao poder político paralelo de ignorantes e toscos

Na apreciação da biografia de J. Robert Oppenheimer, que liderou a criação da bomba atômica, mais importante do que as explosões no Japão e suas consequências trágicas é o episódio das vítimas da retaguarda, ele próprio incluído. O das vítimas do poder político pelas bombas criado, o poder da morte e de um novo medo social.

O grande interesse pelo filme de Christopher Nolan mostra que persistem inquietações não só quanto à destruição de Hiroshima e Nagasaki: em 6 segundos, mais de 100 mil seres humanos foram transformados em pó. Mas também a um novo poder político paralelo, o dos poderios de ignorantes e toscos que sobrepõem suas aspirações de mando ao conhecimento e seus limites éticos.

A concepção perversa de que é político matar o outro, eliminar o diferente, inventou uma nova economia da morte intencional, tornou mais rápida e barata a guerra de extermínio. Colocou no centro da história a possibilidade da bomba no lugar da guerra. Transformou a incerteza na única certeza do mundo. Qualquer irresponsável que saiba manipular essa incerteza, por diferentes meios, como a religião, o populismo, o militarismo, pode usurpar o poder legítimo.

Nos países que têm vivido surtos e tendências autoritários, como o do trumpismo, do bolsonarismo, do orteguismo, de vários modos essa incerteza define um inesperado tipo de dominação política, o da ignorância apoiada na falta de ética.

A erudita conferência de Oppenheimer no Seminário de Teologia da Universidade de Princeton, em 1958, uma universidade protestante, já depois da repressão macarthista que sofrera em 1954, indica que ele tinha ampla consciência das circunstâncias do desencontro entre o poder da bomba e o poder para administrar seu emprego.

Confessa dificuldade para lidar com o tema dos valores. Reconhece o enorme papel da tradição. Mas a tradição foi esvaziada. Em parte porque conhecemos mais, em parte porque não conhecemos mais, em parte porque conhecemos de modo diferente.

O problema não estava, pois, nos que se adiantaram para produzi-la, mas nos que se atrasaram para ter princípios para usá-la. Como os teólogos que foram ouvi-lo, no fundo para que lhes contasse o que sobrara de Deus.

Na explosão da bomba experimental, Trindade, em 1945, em Los Alamos, a Oppenheimer ocorreu uma frase de Krishna: “Agora me tornei a morte, o destruidor de mundos”. E dois anos depois diria: “... os físicos conheceram o pecado...”.

Essa é uma ideia antiga. A ideia da descoberta da função reveladora do fruto proibido está também no Velho Testamento, quando Eva o come e tanto ela quanto Adão perdem a inocência. Em Los Alamos e no Éden houve a ruptura dos limites humanos do conhecimento.

A história da ciência é demarcada pelas rupturas, na circunstância do conhecimento, que criam novas eras. Em Cambridge, na Inglaterra, há um pub antigo, do século XVIII, o Eagle. Num canto, há uma mesa de seis lugares onde Francis Crick e James Watson costumavam almoçar com a equipe da pesquisa sobre o DNA no Laboratório Cavendish, ali perto.

Em 28 de fevereiro de 1953, o grupo havia trabalhado a manhã inteira. Quando saiu para almoçar, Crick ficou para trás para fazer uma última verificação nos dados. Dali a pouco, pálido, ele entrou no pub e disse: “Watson, nós acabamos de descobrir o segredo da vida”. Era o meio-dia de um sábado chuvoso.

A partir daquele instante, um dos maiores enigmas da vida, decifrado por uma equipe de cientistas de uma das mais antigas universidades do mundo, a Universidade de Cambridge, deixava de ser monopólio de Deus. Nem por isso os pesquisadores tiveram que se defrontar com a repressão que se abateria sobre Oppenheimer em 1954. Fora ele investigado, interrogado e humilhado pela comissão do senador McCarthy, que desencadeou uma onda de perseguições políticas contra cientistas, escritores, atores e artistas por motivos ideológicos.

Uma verdadeira epidemia de delações estimuladas arrastou muitos para a suspeita generalizada de comunismo. A onda chegou até aqui com a ditadura de 1964 e as vítimas que fez em nossas universidades.

Grandes nomes de diferentes universidades brasileiras foram espionados, arrolados, interrogados, presos alguns e demitidos outros sob acusação falsa de subversão e de comunismo. Na USP, em sua Faculdade de Filosofia, três foram interrogados por um tenente coronel.

Dentre os seus grandes nomes: Mário Schenberg (físico e crítico de arte), João Cruz Costa (filósofo), Florestan Fernandes (sociólogo). A Cruz Costa, nosso maior conhecedor do positivismo, foi perguntado se ele sabia o significado de Ordem e Progresso. Sabia e deu uma aula. Foi cassado e desligado da USP, em 1969, junto com extenso número de docentes.

*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de "As duas mortes de Francisca Júlia - A Semana de Arte Moderna antes da semana" (Editora Unesp, 2022).

quarta-feira, 14 de fevereiro de 2018

A ignorância triunfou (por enquanto) - José de Souza Martins

O artigo de um dos melhores sociólogos do Brasil — ou seja, da minha tribo — é relativamente pessimista, pois dá a entender que a ignorância triunfou.
Concordo com ele, em grande medida, mas isso não é novo.
Já no começo do século XIX, observando as massas incultas que desembarcavam nos EUA, James Fenimore Cooper (sim, o romancista do Último dos Moicanos), constatava também de forma pessimista que a democratização andava de par com a mediocrização, o que é inevitável quando se abandona uma cultura de elite pela das massas populares.
O Brasil passou por uma grande processo de democratização social desde o início dos anos 40, com a urbanização e a industrialização, e depois, a partir dos anos 1960 com a ampliação do acesso às instituições de ensino. Era inevitável certa mediocrização da cultura popular e dos estratos participantes do jogo político, pois já não se podia manter apenas líderes cosmopolitas, com educação superior, nos mecanismos de decisão.
A República Sindical — corrupta, ignorante, sectária — que não tivemos em 1964, por força do golpe militar, veio com toda força a partir de 2003, com o lulopetismo no poder.
O problema aí não foi tanto a mediocrização de todas as instituições e instâncias de poder — como transparece nesse triunfo da ignorância de que fala José de Souza Martins— mas o fato de que, por um lado, o lulopetismo não foi apenas ignorante, mas também corrupto e criminoso, e que, por outro lado, as elites — industriais, banqueiros, membros das chamadas profissões liberais, a academia — se revelaram singularmente ineptas, quando não coniventes com o poder corruptor da nova República Sindical,  corrupta, medíocre, ignorante, e dominada por um líder carismático que mais se aproxima de um chefe mafioso, e que continua a desafiar as instituições, com parte do Judiciário também medíocre e rastaquera — quando não conivente — incapaz de prendê-lo como reles bandido que é.
Esse é o triunfo da ignorância, da mediocridade e da completa inépcia das elites econômicas incapazes de encontrar em seu meio um estadista capaz de conduzir o Brasil para fora disso tudo.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 14/02/2018

A nova ignorância
José de Souza Martins
Valor Econômico / Eu &Fim de Semana, 9-1-11/02/2018

Historicamente, no Brasil, ignorância é um juízo de valor e manifestação de poder de quem, em posição de mando, não se considera ignorante. Era a definição que os poucos escolarizados davam aos muitos não escolarizados nas primeiras décadas do século passado. Estes, considerados socialmente inferiores, porque trabalhadores, mestiços ou descendentes de escravos, gente ao longo das gerações condenada ao trabalho braçal, supostamente vazio de trabalho intelectual.

No entanto, seja na lavoura, no artesanato, no trabalho doméstico, havia e há sistemas complexos de conhecimento, modos de fazer e de pensar que a maioria dos críticos da ignorância ignora. Aliás, analfabeto não quer dizer ignorante. Os estudos antropológicos nas áreas das etnociências mostram que o conhecimento popular tem elaborações e peculiaridades lógicas que indicam um labor cognitivo que não é antagônico ao da ciência e ao da arte.

Ao ignorar essa cultura, em vez de uma ponte de diálogo criativo e de aprendizado, a escola preferiu o abismo que a separa daqueles que pretende educar. Raramente nos lembramos de que a escola é um poder e instrumento de poder. Foi esse poder que decretou que aqueles aos quais o trabalho impediu a escolarização fossem definidos como ignorantes.

Ignorância é um rótulo, um dos conceitos de nossa cultura de preconceitos. A ignorância muda com o tempo, a circunstância e a mentalidade dominante. Ignorantes de hoje, na classe média e mesmo na elite, passaram pela escola e até mesmo pela universidade. Apesar de terem opinião sobre todos os assuntos, quando muito dominam apenas uma área do saber. Fora de sua área, são ignorantes pela especialização, pelo raciocínio estereotipado e desvinculado do pensamento crítico.

No plano das condutas e da visibilidade da ignorância, há meio século, os ignorantes já sabiam o motivo pelo qual eram assim definidos. Desenvolveram formas de dissimulação de sua ignorância para enfrentar as adversidades numa sociedade em que ser ignorante tornara-se motivo de discriminação e vergonha. A ignorância expressava-se não só na fala e nos simplismos, mas na apresentação pessoal, no uso impróprio de coisas e modos do que Erving Goffman define como equipamento de identificação.

Uma técnica tem sido a de copiar formas de expressão e de apresentação pessoal em público, prestar muita atenção no que os outros fazem e dizem e tentar imitá-los. Imita-se na fala, no traje, nos gestos. Mas a dissimulação da ignorância tinha e tem limites. Não raramente, gestos, palavras e trajes impróprios denunciam que a pessoa desconhece o que é apropriado para assegurar a eficácia da imitação. É ignorante.

Mas a concepção de que é socialmente mais decisivo parecer do que ser se difundiu, criou uma cultura, definiu valores e regras de penosos esforços de apresentação e de conduta. A forma aparente incluiu socialmente os excluídos. A superficialidade tornou-se democrática e, mesmo, decisiva, para incluir enganosamente o ignorante. Há uma função terapêutica no uso desses recursos numa sociedade que enfrenta, cada vez mais, limites no acesso à cultura erudita e que, cada vez mais, oferece recursos de dissimulação da ignorância. A sabedoria popular foi confrontada com a frágil sabedoria de ocasião.

Nos anos 1960, a difusão da leitura dinâmica, de ler apenas uma de cada duas palavras, ou de cada três, permitia "ler" um livro na metade do tempo da leitura normal. Não era ler para saber, era para que o "leitor" fizesse de conta que o havia lido, para simular conhecimento. O importante não era e não é deixar de ser ignorante. Importante é fingir não ser ignorante. Uma nova forma social de ignorância estava nascendo.

Nos anos 1970, as chamadas classes populares emergiram no cenário político brasileiro. Em alguns anos elegeriam um presidente da República. A intelectualidade dos movimentos populares produziu racionalizações que na essência asseguravam que o ignorante é sábio, na contramão dos valores da própria classe trabalhadora que, desde sua constituição entre nós, sempre valorizou a escola. Ignorância e poder se encontraram. Difundiu-se aqui a raiva como fundamento dos confrontos sociais, uma concepção antipolítica da luta de classes. O novo saber superficial e manipulável amalgamou-se com a raiva política, a incultura tornou-se prepotente. Durante quase um século a consciência da ignorância levou à busca da escola, à valorização da escola. Agora, a nova ignorância elegeu a escola como inimiga.

Da universidade ao palanque e do palanque ao botequim, o ignorante perdeu a consciência da ignorância, ao ponto de questionar o conhecimento erudito e minimizar e afrontar os profissionais do saber.
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José de Souza Martins é sociólogo. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, autor de “O Coração da Pauliceia Ainda Bate” (Ed. Unesp/Imprensa Oficial)