Oppenheimer e a suspeita generalizada de comunismo
José de Souza Martins*
Eu & / Valor Econômico, 4/08/2023
O grande interesse pelo filme de Christopher Nolan sobre o físico americano mostra que persistem inquietações quanto ao poder político paralelo de ignorantes e toscos
Na apreciação da biografia de J. Robert Oppenheimer, que liderou a criação da bomba atômica, mais importante do que as explosões no Japão e suas consequências trágicas é o episódio das vítimas da retaguarda, ele próprio incluído. O das vítimas do poder político pelas bombas criado, o poder da morte e de um novo medo social.
O grande interesse pelo filme de Christopher Nolan mostra que persistem inquietações não só quanto à destruição de Hiroshima e Nagasaki: em 6 segundos, mais de 100 mil seres humanos foram transformados em pó. Mas também a um novo poder político paralelo, o dos poderios de ignorantes e toscos que sobrepõem suas aspirações de mando ao conhecimento e seus limites éticos.
A concepção perversa de que é político matar o outro, eliminar o diferente, inventou uma nova economia da morte intencional, tornou mais rápida e barata a guerra de extermínio. Colocou no centro da história a possibilidade da bomba no lugar da guerra. Transformou a incerteza na única certeza do mundo. Qualquer irresponsável que saiba manipular essa incerteza, por diferentes meios, como a religião, o populismo, o militarismo, pode usurpar o poder legítimo.
Nos países que têm vivido surtos e tendências autoritários, como o do trumpismo, do bolsonarismo, do orteguismo, de vários modos essa incerteza define um inesperado tipo de dominação política, o da ignorância apoiada na falta de ética.
A erudita conferência de Oppenheimer no Seminário de Teologia da Universidade de Princeton, em 1958, uma universidade protestante, já depois da repressão macarthista que sofrera em 1954, indica que ele tinha ampla consciência das circunstâncias do desencontro entre o poder da bomba e o poder para administrar seu emprego.
Confessa dificuldade para lidar com o tema dos valores. Reconhece o enorme papel da tradição. Mas a tradição foi esvaziada. Em parte porque conhecemos mais, em parte porque não conhecemos mais, em parte porque conhecemos de modo diferente.
O problema não estava, pois, nos que se adiantaram para produzi-la, mas nos que se atrasaram para ter princípios para usá-la. Como os teólogos que foram ouvi-lo, no fundo para que lhes contasse o que sobrara de Deus.
Na explosão da bomba experimental, Trindade, em 1945, em Los Alamos, a Oppenheimer ocorreu uma frase de Krishna: “Agora me tornei a morte, o destruidor de mundos”. E dois anos depois diria: “... os físicos conheceram o pecado...”.
Essa é uma ideia antiga. A ideia da descoberta da função reveladora do fruto proibido está também no Velho Testamento, quando Eva o come e tanto ela quanto Adão perdem a inocência. Em Los Alamos e no Éden houve a ruptura dos limites humanos do conhecimento.
A história da ciência é demarcada pelas rupturas, na circunstância do conhecimento, que criam novas eras. Em Cambridge, na Inglaterra, há um pub antigo, do século XVIII, o Eagle. Num canto, há uma mesa de seis lugares onde Francis Crick e James Watson costumavam almoçar com a equipe da pesquisa sobre o DNA no Laboratório Cavendish, ali perto.
Em 28 de fevereiro de 1953, o grupo havia trabalhado a manhã inteira. Quando saiu para almoçar, Crick ficou para trás para fazer uma última verificação nos dados. Dali a pouco, pálido, ele entrou no pub e disse: “Watson, nós acabamos de descobrir o segredo da vida”. Era o meio-dia de um sábado chuvoso.
A partir daquele instante, um dos maiores enigmas da vida, decifrado por uma equipe de cientistas de uma das mais antigas universidades do mundo, a Universidade de Cambridge, deixava de ser monopólio de Deus. Nem por isso os pesquisadores tiveram que se defrontar com a repressão que se abateria sobre Oppenheimer em 1954. Fora ele investigado, interrogado e humilhado pela comissão do senador McCarthy, que desencadeou uma onda de perseguições políticas contra cientistas, escritores, atores e artistas por motivos ideológicos.
Uma verdadeira epidemia de delações estimuladas arrastou muitos para a suspeita generalizada de comunismo. A onda chegou até aqui com a ditadura de 1964 e as vítimas que fez em nossas universidades.
Grandes nomes de diferentes universidades brasileiras foram espionados, arrolados, interrogados, presos alguns e demitidos outros sob acusação falsa de subversão e de comunismo. Na USP, em sua Faculdade de Filosofia, três foram interrogados por um tenente coronel.
Dentre os seus grandes nomes: Mário Schenberg (físico e crítico de arte), João Cruz Costa (filósofo), Florestan Fernandes (sociólogo). A Cruz Costa, nosso maior conhecedor do positivismo, foi perguntado se ele sabia o significado de Ordem e Progresso. Sabia e deu uma aula. Foi cassado e desligado da USP, em 1969, junto com extenso número de docentes.
*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de "As duas mortes de Francisca Júlia - A Semana de Arte Moderna antes da semana" (Editora Unesp, 2022).
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