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terça-feira, 29 de agosto de 2023

A cúpula do Brics e o projeto mirabolante de uma moeda comum - Paulo Roberto de Almeida (Crusoé)

Só achava – 0 artigo foi escrito antes da cúpula de Joanesburgo – que o Brasil e a Índia resistiriam um pouco mais ao projeto chinês de ampliação do Brics, que não serve aos dois países. O que houve com suas bravas diplomacias? Se renderam ao gigante chinês? 

1520. “A cúpula do Brics e o projeto mirabolante de uma moeda comum”, revista Crusoé (edição 270, 18/08/2023; link: https://crusoe.com.br/edicoes/277/a-cupula-do-brics-e-o-projeto-mirabolante-de-uma-moeda-comum/). Relação de Originais n. 4459. 


A cúpula do Brics e o projeto mirabolante de uma moeda comum

  

Paulo Roberto de Almeida

Diplomata, professor

(www.pralmeida.org; diplomatizzando.blogspot.com) 

 

O Brics – originalmente apenas Bric, como proposto pelo criador da sigla – é uma espécie de ornitorrinco dos grupos de coordenação e consulta entre países supostamente convergentes em termos de objetivos, metas, características e intenções, como podem ser outros grupos formais ou informais, como OCDE, G7, ou até o G20, que congrega grandes economias engajadas no debate sobre os rumos da economia mundial. Mas grupos que não servem apenas para debate, mas para objetivos, como OCDE, G7 e outros, possuem um mínimo de convergência de propósitos, capaz de capacitá-los a empreendimentos conjuntos. 

O ornitorrinco Bric-Brics é um animal estranho, com características emprestadas a diferentes espécies, sem que se saiba exatamente que nicho ele ocupa no ambiente animal ou na própria natureza, no caso, a comunidade internacional. Não existe nenhuma convergência natural entre seus cinco integrantes atuais, ou mesmo entre os quatro membros originais, a não ser justamente o fato de eles não pertencerem a um grupo com propósitos delimitados, claros e convergentes. A principal característica de seus membros é precisamente o fato de NÃO SEREM semelhantes, sequer similares, e de manterem políticas econômicas e políticas exteriores sensivelmente diferentes. A Rússia, durante certo tempo, foi acolhida numa espécie de puxadinho do G7, o G8, mas que existia para fins exclusivos de declarações políticas, ao passo que o G7 continuava mantendo suas reuniões regulares para fins de coordenação de políticas econômicas e financeiras, e também, em grande medida, políticas externas, como grandes democracias de mercado que sempre foram.

Ora, o Bric-Brics sempre foi formado por duas grandes autocracias, uma atualmente engajada numa cruel guerra de agressão contra um vizinho infeliz, uma outra ainda capaz de se afirmar socialista – ainda que seja um capitalismo com características chinesas –, e duas outras democracias de baixa qualidade, às quais veio se juntar uma terceira democracia de baixíssima qualidade, as três com um quadro interno marcado por muita pobreza, miséria mesmo, e graus extremos de desigualdades sociais, além de corrupção pervasiva. Essas divergências estruturais foram contornadas politicamente, como uma espécie de contraponto ao G7-OCDE e não é nenhuma surpresa que o grupo sequer possui algum acordo comercial operacional entre seus membros, apenas projetos ou propostas de cooperação nas mais diversas áreas, que rendem muitas viagens e diárias de diplomatas e tecnocratas dos cinco países. O padrão de votação na ONU também aparece como muito diferenciado, em função de interesses contrastantes nos planos regionais e internacional. 

No caso do Brasil, trata-se de uma democracia em construção que sempre manteve laços culturais, humanos, econômicos e políticos com as nações que fazem parte de seu substrato humano e civilizatório, fortemente marcado por traços ibéricos e europeus e, no século XX, pela intensa interface, em praticamente em todas as áreas, com os Estados Unidos. Mais recentemente, a partir de 2009, a China passou a ocupar o primeiro lugar, mas apenas no comércio exterior, sendo que o turnover total bilateral é mais do que o dobro da soma conjunta dos intercâmbios realizados com os dois maiores parceiros seguintes, os Estados Unidos e a UE. Mas essa relação comercial bilateral corresponde basicamente às vantagens comparativas de cada um dele, não a uma união de propósitos substantivos entre parceiros, que vá além das necessidades chinesas em commodities (que ela aliás importa de muitos outros parceiros) e das importações baratas em manufaturas por parte do Brasil, fortemente competitivas com ofertas alhures ou no próprio país. 

A diplomacia do Brasil não deveria, supostamente, ter qualquer interesse em juntar-se a projetos estatais que objetivam conformar uma ordem internacional alterna, ou seja, diferente desta à qual ele esteve integrado nos últimos dois séculos de vida independente, que é a do mundo ocidental das democracias de mercado, respeitadoras de direitos humanos e de valores culturais compatíveis com suas características de sociedade aberta e razoavelmente permissiva no plano político e cultural. Quais metas convergentes o Brasil poderia aspirar no plano da política mundial com duas autocracias que não possuem nenhuma afinidade com as liberdades democráticas e com a promoção dos direitos humanos, mas que elas, sim, visam construir um sistema mundial alternativo ao das democracias ocidentais?

Como maior país da América do Sul, economicamente e diplomaticamente, e com a capacidade potencial de liderar um movimento convergente com seus vizinhos na direção de um processo de integração continental, já partindo da base constituída há mais de 30 anos pelo Mercosul, o Brasil teria muito mais interesses em aprofundar sua preeminência política e diplomática num projeto desse tipo, do que em se lançar num agrupamento heteróclito, que se constitui bem mais num projeto contrário ao chamado “Ocidente hegemônico” do que em favor de um mundo já conhecido e bem definido. Na verdade, o Bric-Brics se deve mais ao oportunismo dos russos – pois que Putin se sentia incomodado, e muito diminuído, no G8 – e à megalomania do Lula, que sempre teve a pretensão de se apresentar como um líder de um fantasmagórico “Sul Global”, uma entidade não existente na prática, e apenas unificada artificialmente por constituir-se aritmeticamente a partir de países em desenvolvimento. 

Quanto ao projeto mirabolante de se “criar” uma moeda comum no Brics – ou no Mercosul, como foi aventado primeiramente – deve-se mais a um preconceito ideológico contra a preeminência do dólar em quase todas as transações (e reservas) internacionais, do que responde a um projeto tecnicamente fundamentado ou factível operacionalmente. A cúpula do Brics pode fazer uma recomendação piegas quanto ao “uso de moedas nacionais” no comércio recíproco, o que poucos agentes de mercado devem acatar (dada a completa inexistência de mecanismos de coordenação monetário ou cambial entre os membros). O Banco dos Brics – NDB – é uma clássica instituição de fomento, totalmente incapacitada, até estatutariamente, para cuidar de um processo que se se arrastou durante anos no esquema europeu, e que ainda assim não compreende todos os membros do esquema comunitário.

Por que, então, esse preconceito contra o dólar, moeda largamente utilizada em enorme proporção no comércio internacional (e até em transações internas) em vasta maioria dos países? Apenas por pruridos anti-imperialistas e antiamericanos? Os grandes comerciantes globais não vão trocar o dólar por uma moeda ainda não testada na prática. Nem o Euro, aliás, teoricamente de maior consistência (pois que administrado num empreendimento supranacional, em lugar de depender do arbítrio de um único país), conseguiu desbancar o dólar de sua preeminência mundial e arrogância quase unilateral. Provavelmente se tentará criar um mecanismo de comércio compensado sem o uso do dólar, um recuo de quase 80 anos em relação ao sistema multilateral de pagamentos criado em Bretton Woods.

O outro objeto da cúpula do Brics de Joanesburgo, este mais sério, seria a ampliação do bloco, um projeto marcadamente chinês – e agora desesperadamente russo, ou de Putin –, com o objetivo de constituir uma espécie de anti-G7, ou anti-OCDE. Uma solução intermediária, certamente não do agrado do Brasil ou da Índia, será encontrada, no sentido de se encontrar uma fórmula de incorporar novos “associados” ao grupo, atualmente bem diferente da “carteira de investimentos prometedora” concebida pelo seu idealizador original.

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 4459: 17 agosto 2023, 3 p.

 


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