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segunda-feira, 28 de janeiro de 2019

Octavio Amorim: o governo Bolsonaro e os militares

O Governo Bolsonaro e a Questão Militar

28/01/2019

Com a posse de Bolsonaro e de seus ministros no primeiro dia de 2019 e, depois, com a nomeação de vários titulares de importantes cargos do segundo e terceiro escalões do Executivo Federal, ficou patente a ampla fatia de poder que os militares terão sob o novo presidente, sem falar no seu vice, o general de quatro estrelas Hamilton Mourão[1]. Conquanto se faça uma distinção entre oficiais da ativa e da reserva para justificar a marcante presença dos últimos no governo e, assim, preservar a imagem institucional das Forças Armadas, o fato é que, estejam ou não exercendo funções, os militares têm, quase sempre, visões de mundo e preferências semelhantes. Além disso, a população e as elites civis percebem e tratam os militares como um grupo coeso, usem ou não farda.
Não à toa, tem sido grande o número de artigos e matérias na imprensa escrita e televisionada sobre o papel das Forças Armadas nos próximos quatro anos. Alguns analistas temem que elas ajam como se fossem um partido, tutelem o processo político e imponham seus interesses corporativos à agenda de reformas econômicas do ministro Paulo Guedes. Outros veem os generais que cercam o presidente como um fator de moderação aos excessos ideológicos do bolsonarismo, lembrando também que os oficiais de alta patente de hoje em dia diferem muito dos que lideraram o regime de 1964-1985, sendo mais liberais em temas econômicos e mais comprometidos com a democracia e os ditames constitucionais. Os dois lados têm razão.
Todavia, os comentaristas que têm abordado o assunto não mencionam explicitamente duas questões relevantes e que merecem maior reflexão: o grau de controle dos militares pelos civis (ou o grau de subordinação dos militares à autoridade política dos civis) e a elaboração e orientação da política de defesa. É o que se tenta fazer a seguir.
O referido controle é uma condição necessária de um regime democrático. Não há democracia quando as Forças Armadas vetam decisões governamentais que não digam respeito à defesa nacional. Existe tutela militar justamente quando há esse tipo de veto. Nesse sentido, até o momento, não se pode dizer que o Brasil esteja sob tutela militar, mas o risco existe, sobretudo se a corporação castrense contribuir decisivamente para a derrota da reforma da Previdência prometida pelo ministro da Economia.
Além disso, há graus e graus de controle dos militares pelos civis. Ainda que a participação dos militares no governo tenha sido uma importante promessa de campanha de Bolsonaro e, mesmo sem haver tutela, a presença de tantos oficiais em cargos tipicamente civis do Executivo Federal implicará o enfraquecimento desse controle. E isso não será bom para a política de defesa e para as próprias Forças Armadas. Por quê?
A partir do final do século passado, muita coisa começou a mudar nas relações civis-militares em geral e no papel dos civis na política de defesa em particular, em virtude (1) da criação do Ministério da Defesa em 1999; (2) da publicação da Estratégia Nacional de Defesa em 2008, redigida tanto por civis como por militares; (3) do início, em 2009, de um amplo e ambicioso programa de reaparelhamento das Forças Armadas; (4) da promulgação da Lei da Nova Defesa em 2010; e (5) da publicação do primeiro Livro Branco da Defesa Nacional em 2012, escrito com considerável participação de civis.
Aqueles fatos e eventos indicavam claramente o fortalecimento do controle dos militares pelos civis, um maior envolvimento destes na elaboração da política de defesa e uma maior saliência desta na agenda política nacional. O Brasil, ainda que lenta e tardiamente, avançava no que Narcís Serra, o respeitado ministro da defesa da Espanha no período 1982-1991, chamou de a transição militar, que ocorre concomitantemente à transição política para a democracia.
As transições militares têm etapas muito claras A primeira tarefa das novas elites democráticas é evitar golpes de Estado. A segunda é remover os militares da política, privando-lhes de qualquer veto às decisões de governo que não digam respeito à defesa nacional e reduzindo drasticamente sua autonomia. A última é o estabelecimento da supremacia civil, definida “... como a capacidade de um Governo civil democraticamente eleito de levar a cabo uma política geral sem intromissão por parte dos militares, definir as metas e organização general da defesa nacional, formular e levar a cabo uma política de defesa, e supervisionar a aplicação da política militar”.[2] Até há pouco, o Brasil ensaiava ingressar na última etapa.
Eis que – por uma série de razões, a maioria das quais decorrentes da incompetência e corrupção dos civis – elege-se Bolsonaro. Primeira consequência óbvia desse fato: enquanto permanecer alta a presença dos militares no governo, a ideia de estabelecer a supremacia civil está suspensa. Para além disso, haverá também erosão das bases da segunda etapa, na qual ainda nos encontramos? Mais especificamente, como ficará a participação dos civis na gestão do Ministério da Defesa (MD) e na elaboração da política de defesa, já que, desde de fevereiro de 2018, o MD tem sido chefiado por um general? Essas duas áreas ficarão sob total controle dos militares? O Congresso e os partidos aceitarão passivamente isso? No que toca à orientação da política de defesa, que, em sua essência, são os modos principais de emprego efetivo das Forças Armadas, estas se concentrarão quase que exclusivamente em missões internas ao território nacional, sobretudo nas frequentes operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO)?
Todas as perguntas acima demandam reflexão e respostas urgentes por parte das elites civis e militares. Porém, isso parece estar longe acontecer, o que é muito preocupante. Além disso, os comandantes do Exército sempre afirmam que GLO é desvio de função e que gostariam de concentrar-se em suas tarefas precípuas. Contudo, será que realmente creem que, com tal presença de militares no governo em atividades eminentemente civis (cabe aqui lembrar que até o porta-voz do governo é um general de três estrelas – e da ativa), haverá fortes incentivos para que as Forças Armadas se dediquem prioritariamente às suas missões fundamentais, nomeadamente, a defesa das fronteiras nacionais, a manutenção da paz na América do Sul, o apoio à política externa e a prontidão para guerras interestatais?
A história é farta em exemplos que mostram que, quando as forças armadas de um país passam a exercer excessivamente atividades políticas, o aprestamento militar é a primeira baixa. Quem avisa amigo é.
Este artigo faz parte do Boletim Macro IBRE de janeiro de 2019. Leia aqui a versão integral do BMI Janeiro/19. 
 As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV. 

[1] Para uma lista de nomeados militares até o dia 17 de janeiro de 2019, ver Rafael Neves, “Governo Bolsonaro já passa de 30 militares em postos-chave”, Congresso em Foco, 18/01/2019, disponível em https://congressoemfoco.uol.com.br/governo/governo-bolsonaro-ja-passa-de-30-militares-em-postos-chave/.
[2] Narcís Serra, La Transición Militar:Reflexiones en Torno a la Reforma Democrática de las Fuerzas Armadas(Barcelona: Randon House Mondadori, 2008, p. 47).

quinta-feira, 18 de julho de 2013

Octavio Amorim Neto: De Dutra a Lula: a... politica externa brasileira (resenha de livro: Dawisson Lopes)

Uma excelente resenha de um mais que excelente livro, que também vou resenhar assim que me libertar dos trabalhos mais urgentes no meu pipeline.
Paulo Roberto de Almeida


Octavio Amorim Neto
(Rio de Janeiro: Campus, Konrad-Adenauer-Stiftung, 2011) 

Dawisson Belém Lopes
Professor do Programa de Pós-graduação em Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais (Belo Horizonte, MG). E-mail:dawisson@ufmg.br

Revista Brasileira de Ciência Política

versão impressa ISSN 0103-3352

Rev. Bras. Ciênc. Polít.  no.11 Brasília maio/ago. 2013

http://dx.doi.org/10.1590/S0103-33522013000200009 


Em polêmico artigo recentemente publicado nos Estados Unidos, os professores John Mearsheimer (University of Chicago) e Stephen Walt (Harvard Kennedy School) foram taxativos no diagnóstico de que, no afã de testar as hipóteses da literatura por meio de ferramentas metodológicas e técnicas cada vez mais sofisticadas, os trabalhos acadêmicos sobre temas internacionais estão relegando para o segundo plano a preocupação com a teoria e os conceitos. Decorre daí que, se, por um lado, temos sido contemplados nas publicações especializadas com um grande número de "evidências" e "achados", lastreados em observação empírica e experiências, por outro, diminuiu ostensivamente a produção de grandes teses e narrativas com capacidade de redirecionar a discussão acadêmica. Ainda mais grave é o desdobramento qualitativo: segundo os autores, a atomização da produção resulta em crescente incapacidade de compreensão dos macroprocessos internacionais contemporâneos, já que estamos perdendo a habilidade de identificar boas variáveis explicativas, de fazer as perguntas de pesquisa relevantes e, ainda, de traçar as conexões entre a parte e o todo (Mearsheimer e Walt, 2013). Longe de ser consensual, a opinião reflete um foco de tensão no cânone da disciplina acadêmica de relações internacionais, o qual tem potencial para alastrar-se e influenciar as suas diversas subáreas.
Enquanto isso, no Brasil, a situação é distinta. A obra De Dutra a Lula: a condução e os determinantes da política externa brasileira, de autoria do cientista político Octavio Amorim Neto, foi saudada pela comunidade acadêmica como a primeira grande tentativa de aproximar, em termos metodológicos, a ciência política das relações internacionais. Amorim Neto tomou para si a empreitada de apontar quais teriam sido, entre 1945 e 2008, as variáveis determinantes para a condução da política externa brasileira, valendo-se intensivamente de estatística descritiva e inferencial. Uma das vozes a pronunciar-se sobre o livro foi a professora Maria Regina Soares de Lima (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), que assim descreveu o intento, no prefácio à obra:
Octavio [Amorim Neto] nos brinda com uma análise sistemática do alcance empírico de argumentos produzidos na literatura qualitativa - que tem sido o modo predominante dos estudos sobre a política externa brasileira. E o faz combinando o viés quantitativo com grande sensibilidade histórica (p. ii).
Também dão conta da boa acolhida que a obra recebeu as resenhas e notas publicadas em periódicos e na grande imprensa. Segundo o jornal Folha de S.Paulo, "Octavio se ampara em dados estatísticos para criar um método de pesquisa quantitativa. Como resultado, o volume interessa a cientistas políticos, internacionalistas e historiadores" (Folha de S.Paulo, 2012). A revista Pesquisa, da Fundação de Amparo à Pesquisa de São Paulo, celebrou:
Se havia uma exceção gritante na crescente quantificação dos saberes, essa era a política externa, sempre analisada de forma qualitativa e, na maior parte dos casos, em um diapasão subjetivo. O estudo de Octavio Amorim Neto traz essa nova variável, objetiva, revertendo certezas e confirmando hipóteses (Carlos Haag, 2012, p. 91).
A culminância do processo foi a concessão do prêmio Victor Nunes da Leal, pela Associação Brasileira de Ciência Política, àquele que foi considerado por júri de especialistas o melhor livro científico em ciência política e relações internacionais do biênio 2010-2012.
Uma vez tendo sido feitos todos os reconhecimentos aos méritos de De Dutra a Lula - assim como às qualidades de pesquisador e escritor do seu autor - , talvez seja chegada a hora de avaliar mais criticamente o seu conteúdo e as prováveis consequências para o campo de estudos da Política Externa Brasileira (PEB). Não se pretende aqui repisar as apreciações prévias do livro (em sua maioria, francamente positivas). Antes, esta resenha pretende colocar em debate alguns pontos que, até onde conseguimos monitorar, ainda não passaram pelo devido escrutínio da comunidade acadêmica.
Recapitulando: De Dutra a Lula consiste, fundamentalmente, na tentativa de apreensão das principais linhas de força que modelaram a política externa ao longo de três grandes ciclos da política brasileira - o Interregno Democrático (1946-1964), o Regime Militar (1964-1985) e a Nova República (1985-2008) - por intermédio do método quantitativo.
No esquema explicativo de inspiração neorrealista, a convergência política entre Brasil e Estados Unidos significaria a capacidade deste país (considerado hegemônico na ordem global) de influenciar as ações daquele. Entretanto, a grande tese deixada por Amorim Neto ao fim do esforço argumentativo é que, a partir dos dados relativos ao período de 1946 a 2008, se teria tornado evidente o distanciamento do Brasil em relação às posições assumidas pelos EUA na política internacional. No contínuo que vai de 1946 a 2008 (vide o gráfico à página 69), a tendência que se depreende é de uma convergência cada vez menor entre os votos do Brasil e dos Estados Unidos, em diversas matérias, no âmbito da Assembleia Geral das Nações Unidas. Donde a ilação, apresentada já na conclusão do texto, de que:
A partir da segunda metade do século XX, à medida que crescia e se industrializava a economia brasileira, se expandia a população, se urbanizava a sociedade, e aumentavam os gastos militares e o tamanho das Forças Armadas, o país foi se sentindo em condições de, passo a passo, se distanciar daquele que havia sido seu grande aliado na primeira metade do século passado (p. 171).
A passagem acima serve, deliberadamente ou não, de combustível para todos os que acreditam na existência de "antiamericanismo" na condução da política externa na última década. Impressão que fica reforçada com o trecho seguinte:
O aumento da participação ministerial da esquerda - isto é, justamente no centro de gravidade do sistema político brasileiro, o Poder Executivo - cria condições políticas excelentes para que partidos bem organizados e com intensas preferências a respeito da ação internacional do Brasil alterem a política externa, no sentido de distanciá-la dos Estados Unidos (p. 175).
Amorim Neto, contudo, confessa a sua perplexidade ao perceber que, mesmo no período em que a esquerda esteve completamente ausente do poder no país (1964-1985), ainda assim se alargou a distância de posicionamentos entre Brasil e EUA. O autor sai-se então com uma hipótese auxiliar ad hoc: a proximidade substantiva das agendas diplomáticas da esquerda e da direita durante a ditadura dos militares era, possivelmente, o que levava à suspensão temporária da lógica esboçada no parágrafo anterior.
Outra importante lição de De Dutra a Lula diz respeito ao papel inexpressivo (estatisticamente não significativo) desempenhado pelo Poder Legislativo na definição da política exterior a ser implementada pelo Estado brasileiro. O autor, não obstante, vai além das evidências encontradas, enunciando ao cabo uma nova hipótese que, claramente, não encontra arrimo nos números apresentados: "[U]ma razão para ossupostos excessos da diplomacia praticada entre 2003 e 2010 pode encontrar-se na falta de freios domésticos à ação do Executivo. A ausência de freios ao Poder Executivo remete imediatamente ao papel do Congresso na política externa" (p. 176). A proposição é feita na forma condicional - ex hypothesi - porque, afinal, como adverte Amorim Neto, não é propósito do livro "posicionar-se a respeito de a política externa de Lula ter sido ou não excessivamente ideológica" (p. 176).
Temo discordar da linha interpretativa explorada no livro em tela. Em primeiro lugar, por embutir uma falácia de dispersão na sua tese principal. A dificuldade deriva do recorte temporal do trabalho (1945-2008), que induz a uma distorção logo na origem da análise. Explica-se: Eurico Gaspar Dutra foi, provavelmente, ao longo de toda a história republicana da política externa, o presidente que mais resolutamente alinhou o Brasil às posições estadunidenses. Mais até que Castelo Branco ou Collor de Mello. O seu mandato corresponde ao que o historiador Gerson Moura (1990) tratou como "o alinhamento sem recompensa", uma vez que, embora o Brasil tivesse apoiado os Estados Unidos na Segunda Guerra Mundial (a partir de 1943) e seguisse incondicionalmente associado àquele país (nos primeiros anos sob Dutra), pouco recebeu de concreto em contrapartida: não veio o assento permanente no Conselho de Segurança da ONU, tampouco um Plano Marshall para a América Latina. Dessa maneira, é natural que todos os sucessores de Dutra tenham se afastado de seu americanismo extremo e objetivamente malsucedido. Corresponde, por assim dizer, à normalização da curva da política externa.
Além disso, o recorte temporal de De Dutra a Lula peca por desprezar os antecedentes históricos do fenômeno do americanismo (e também do antiamericanismo) na PEB. Desconsidera, por exemplo, que o momento imediatamente anterior ao da adesão do Brasil ao bloco dos Aliados, na Segunda Guerra, com Vargas na presidência, acomodou lances explícitos de aproximação com a Alemanha nazista - e, por conseguinte, de afastamento em relação às posições diplomáticas dos EUA. Se retrocedermos até a geração que fundou a linhagem americanista da PEB, ainda assim notaremos que nem mesmo o Barão do Rio Branco, Joaquim Nabuco e Rui Barbosa deixaram de divergir dos americanos em repetidas e cruciais oportunidades (como, por exemplo, na II Conferência da Haia, de 1907). Em suma: na história da República, o governo Dutra é um outlier da política externa - e isso torna enviesada a narrativa construída por Amorim Neto.
Na exposição dos motivos para o aumento das divergências entre Brasil e EUA, a partir da segunda metade do século XX, postula-se que o crescimento econômico e demográfico brasileiro, associado à urbanização e aos investimentos militares, fez o país "se sentir em condições de, passo a passo, se distanciar daquele que havia sido seu grande aliado na primeira metade do século passado [XX]" (p. 171). Alternativamente, ofereço a seguinte narrativa: não foi o simples acúmulo de atributos de poder ("capacidades", segundo o jargão da escola realista das relações internacionais) que levou ao afastamento brasileiro das posições estadunidenses, mas a progressiva autonomização do país em relação ao resto do mundo - entendida, na tradição da PEB, como a capacidade de gerar a própria norma de conduta na política internacional - que trouxe, como epifenômeno, a diminuição da taxa de convergência de votos Brasil/EUA na Assembleia Geral da ONU. É sintomático que, ao tempo do Brasil Império, não se falasse em americanismo na política externa. A tradição associativa (ou "reboquista", na estranha tradução de Amorim Neto) no século XIX era o europeísmo. Porém, desde sempre, associativistas foram desafiados por autonomistas - independentemente dos rótulos que as duas correntes receberiam dos historiadores e cientistas políticos ao longo dos anos: agraristas vs. industrialistas, entreguistas vs. nacionalistas, liberais vs. desenvolvimentistas, interdependentistas vs. soberanistas, americanistas vs. globalistas etc..
O alinhamento diplomático aos EUA há que ser compreendido não como essência ou ideologia perene da PEB, mas como opção pragmática dos formuladores da inserção internacional do país, passível de reavaliação contínua, conforme o cálculo estratégico dos homens de Estado de um determinado momento histórico. Essa marcha pela autonomização do Brasil ajuda a entender, por exemplo, por que os governos de dois presidentes comprometidos com ideais de esquerda na política externa - Jânio Quadros e João Goulart, artífices da "Política Externa Independente" - puderam apresentar índices de convergência de voto com os Estados Unidos consistentemente mais altos do que dois reconhecidos americanistas da Nova República - Fernando Collor de Mello e Fernando Henrique Cardoso. Aparentemente, portanto, o processo de ascensão e autoafirmação do Brasil no cenário internacional, transformado em orientação de política externa, guarda pouca relação direta com o (anti)americanismo.
Ao sobrestimar o peso da variável independente "composição ministerial" na formulação da política externa brasileira, além de sugerir nexo causal entre a tibieza da atuação do Legislativo na PEB e a execução de uma política externa (supostamente) "ideológica", Amorim Neto parece desconsiderar outros dois aspectos importantes do processo: a) o histórico insulamento burocrático do Ministério das Relações Exteriores, agência governamental que, por várias décadas, exerceu um virtual monopólio sobre as etapas de formulação e implementação da política externa brasileira, sob a delegação, tácita ou expressa, do chefe do Poder Executivo (Cheibub, 1985)1; e b) a tendência mundial - e não apenas brasileira - de concentração de competências sobre os atos internacionais do Estado soberano nas mãos do chefe do Poder Executivo, seja no presidencialismo, seja no parlamentarismo (Milner, 1997), contrastando com o papel secundário do Poder Legislativo na produção da política externa, inclusive nos Estados Unidos da América (Jacobs e Page, 2005). A insistência do autor em enxergar "ideologia excessiva" e "preferências partidárias fortes" na atual condução da política externa, sem oferecer ao leitor o devido suporte factual, poderá, antes, constituir um caso de raciocínio normativamente guiado (wishful thinking).
Adicionalmente, cumpre apontar a fragilidade do organograma elaborado pelo autor sobre a produção da política externa brasileira entre 1946 e 2008 (vide figura 3.1, à página 81). Amorim Neto confunde-se ao conceder enorme centralidade às Forças Armadas no processo decisório da PEB, numa presumível emulação do sistema estadunidense de formulação da política exterior. Em um país constitucional e historicamente vinculado ao pacifismo como o Brasil, em que a gestão política das questões de defesa doméstica e internacional está a cargo de um Ministério da Defesa comandado por servidores civis desde a sua criação, em 1999, há nítida superestimação do componente militar. Ademais, parece artificial a busca por uma síntese do processo decisório brasileiro em política externa ao longo de período tão dilatado de tempo, que comporta tantas e tão profundas mudanças nas estruturas institucionais do Estado. O autor também demonstra desconhecimento da "horizontalização da PEB", isto é, do cada vez maior compartilhamento das competências internacionais do Estado brasileiro entre os ministérios da Esplanada. Como apontam estudos recentes, mais de 90% dos ministérios (ou órgãos com estatuto de ministério) em Brasília já contam com departamentos, diretorias ou coordenações de assuntos internacionais. Alguns ministérios, como o da Cultura ou o dos Esportes, mobilizam intensamente as suas estruturas de atuação internacional, até mesmo à revelia do Itamaraty (Badin e França, 2010; Faria, 2012). Confinar a produção contemporânea da PEB aos ministérios das Relações Exteriores e da Fazenda é anacronismo, para dizer o mínimo.
As dificuldades de De Dutra a Lula não se circunscrevem ao campo de estudos da Política Externa Brasileira. Há evidentes problemas no método escolhido (monitoramento dos votos de Brasil e EUA na Assembleia Geral das Nações Unidas) e na principal variável proxy do trabalho. Inicio por chamar a atenção para a estrutura organizacional das Nações Unidas (ONU). Esta compõe-se de cinco órgãos principais - Assembleia Geral, Conselho de Segurança, Conselho Econômico e Social, Conselho de Tutela e Secretariado - e de uma Corte Internacional de Justiça. Como corolário da diferenciação funcional das burocracias, cada órgão desempenha um papel específico e conta com uma composição diferente. O único desses órgãos com orientação universalista (tanto em termos geográficos quanto temáticos) é a Assembleia Geral (AG), a qual acolhe em suas plenárias todos os 193 países membros da ONU, em estrita igualdade de condições. Contudo, a Assembleia é incapaz de impor-se coercitivamente a seus membros. A prerrogativa de produzir normas imperativas é exclusiva do Conselho de Segurança (CS), órgão de acesso restrito, com participação limitada a 15 Estados membros da ONU - dos quais 5 são cativos2 e outros 10 são temporários.
E qual a consequência disso para a dinâmica da ONU? Apesar de a AG revestir-se de considerável legitimidade política, as suas decisões têm valor meramente simbólico. (Na mais otimista das hipóteses, juristas dirão tratar-se de soft law, isto é, de um conteúdo normativo com capacidade de influenciar os Estados, mas não de desencadear efeitos jurídicos propriamente ditos.) As decisões mais dramáticas a respeito da ordem internacional são, invariavelmente, tomadas no âmbito do Conselho de Segurança das Nações Unidas. Assim, embora a consulta à base de dados com os votos registrados desde 1945 por todos os países da ONU, acerca de uma ampla gama de temas, seja uma ação possível apenas no nível da Assembleia Geral, é lícito questionar: qual é o verdadeiro sentido atribuído pelos países a essas votações? Com que nível de seriedade e motivação esses debates são conduzidos? Efetivamente, o que está em jogo para os representantes dos Estados? Qual a mobilização de recursos de cada Estado para tais discussões?
Em certo sentido, é argumentável ser este o próprio espírito dos que conceberam a Carta da ONU: contrabalançar o idealismo da representação política universal (Assembleia) com o realismo militarizado das potências (Conselho). Uma linha de ação diplomática plausível - e já praticada anteriormente pelo Brasil - é fazer avançar determinadas posições na Assembleia Geral, mas não no Conselho de Segurança. O "pragmatismo responsável" - modo como ficou conhecida a política externa sob Médici e Geisel - conseguiu equilibrar-se entre as concessões ao terceiro-mundismo na AG e a não confrontação com as potências do CS (entre 1968 e 1988, o Brasil ausentou-se do fórum de segurança). Os Estados Unidos, na sua história diplomática recente, também expressaram diferentes atitudes e níveis de engajamento em relação às Nações Unidas. Depois de desfrutarem, entre 1945 e 1960, de hegemonia no interior da instituição, viram-se ameaçados pela independência política dos "satélites" soviéticos - ex-colônias europeias situadas na África, na Ásia e no Oriente Próximo. Michael Dunne notou que, a partir de então, "os americanos ficaram desiludidos com a ONU, onde o bloco 'afro-asiático' parecia representar um Terceiro Mundo pouco confiável politicamente e muito demandante economicamente, e os latino-americanos não mais eram dependentes [dos EUA]" (Dunne apud Lopes, 2012, p. 198). Japão e Europa Ocidental, elementos-chave da esfera de influência americana, passaram a discordar dos Estados Unidos em questões pontuais, no âmbito da ONU. Em 1971, a República Popular de China ingressou na organização, assumindo o lugar da representação de Formosa (Taiwan) no Conselho de Segurança. Crescentemente, como descreveu o embaixador Daniel Patrick Moynihan, a ONU se tornava "um lugar perigoso para os americanos". Assim sendo, por décadas a fio, os Estados Unidos viraram as costas para a instituição que eles não mais conseguiam controlar, até que, com o fim da Guerra Fria, ensaiassem um retorno triunfante (cf. Lopes, 2012).
Outro problema que distorce a análise empreendida por Amorim Neto é a reportada tendência de que temas comuns, debatidos originalmente na Assembleia, estejam migrando nos últimos tempos para o Conselho de Segurança. Hoje em dia, são recorrentes as deliberações no CS sobre tópicos de "segurança humana", "segurança alimentar", "segurança ambiental", "segurança energética" etc. - configurando o que se tem chamado de "securitização da agenda internacional". Evidentemente, isso também reflete a percepção dos atores de que o órgão da ONU que realmente importa é o Conselho de Segurança; o resto é "talk shop". Donde o referido deslocamento do eixo político da organização. Finalmente, é necessário ter em mente que, por toda a história da Organização das Nações Unidas, coexistiram dois registros - o formal e o informal. Isso é válido para praticamente toda organização política, não constituindo excepcionalidade da ONU, não fosse a constatação de, nos últimos 25 anos, ter-se dado a progressiva substituição da técnica de construção das maiorias (majoritarismo) pela de construção de consensos entre os Estados membros. Tal tendência é particularmente saliente no Conselho de Segurança, resultando na baixa utilização do expediente do veto a partir da década de 1990. Parte das divergências e convergências substantivas entre os países não chega sequer a se expressar formalmente, por meio do voto, dado que, de maneira informal, as diferenças são acomodadas e as contradições mais estridentes são dissipadas. Para além disso, as estruturas paralelas aos fóruns da ONU, tais como as coalizões intergovernamentais, interferem nos votos proferidos pelos Estados, pois induzem ao estabelecimento de posições de bloco e padrões de votação, aplainando (ou magnificando) diferenças entre países (Kahler, 1992; Prantl, 2005). Lamentavelmente, essa complexidade das votações não está problematizada em De Dutra a Lula.
Amorim Neto, enfim, encerra o seu texto com um eloquente parágrafo de disclaimer, no qual alega que o modelo de análise desenvolvido no livro é datado historicamente. No entendimento do autor, os seus supostos são desafiados pela "universalização das relações internacionais do Brasil", por sua "ascensão à condição de ator global", pela "emergência da China como principal parceiro comercial do país", pelo "declínio imperial estadunidense desde 2003" e ainda pela "multiplicação de atores envolvidos no processo decisório doméstico [da PEB]" (p. 177). É justo. E talvez fosse o caso de perguntar, mediante todas as ressalvas feitas, se De Dutra a Lula constituiria, ainda assim, uma leitura de referência para iniciantes e iniciados em política externa. Naturalmente, é cedo para responder convictamente à questão, ou para estimar o impacto do livro sobre a comunidade pensante das relações internacionais do Brasil. O tempo dimensionará a importância desse esforço inaugural.
Os reparos que lhe fazemos nesta resenha não devem, em absoluto, diminuir o tamanho da ousadia analítica do seu autor. Tampouco devem ser lidos como um manifesto antiempirismo e, muito menos, conduzir o leitor à conclusão de que a chegada dos quantitativistas ao campo de estudos da Política Externa Brasileira é evento indesejável e perigoso. Definitivamente, não se trata disso. O avanço do estado da arte pede mais e novas aproximações do objeto, preferencialmente com orientação empírica - sejam estudos de caso, sejam estudos comparativos. Todavia, resta patente, como saldo do empreendimento acadêmico de Amorim Neto, a necessidade de refinamentos conceituais e teóricos. Só um melhor equilíbrio entre as velhas e as novas abordagens da PEB poderá conduzir a um porto seguro.

Referências
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JACOBS, Lawrence & PAGE, Benjamin (2005). "Who influences U.S. foreign policy?". American Political Science Review, n. 99, p. 107-123.         [ Links ]
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FOLHA DE S.PAULO (2012). "'De Dutra a Lula' investiga meio século de diplomacia brasileira" (texto inserido na internet em 02.02.2012). Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/livrariadafolha/1043085-de-dutra-a-lula-investiga-meio-seculo-de-diplomacia-brasileira.shtml>. Acessado em 25 de mar. de 2013.         [ Links ]
LOPES, Dawisson Belém (2012). A ONU entre o passado e o futuro: a política da autoridade. Curitiba: Appris.         [ Links ]
MEARSHEIMER, John & WALT, Stephen (2013). "Leaving theory behind: why hypothesis testing has become bad for IR". Harvard Kennedy School (HKS) Faculty Research Working Paper Series, RW 13-001. Disponível em: <http://web.hks.harvard.edu/publications/getFile.aspx?Id=902>. Acessado em 16 jan. 2013.         [ Links ]
MILNER, Helen (1997). Interests, institutions, and information: domestic politics and international relations. Princeton: Princeton University Press.         [ Links ]
MOURA, Gerson (1990). "O alinhamento sem recompensa: a política externa do governo Dutra". Textos CPDOC, Rio de Janeiro: MRE, FGV/CPDOC.         [ Links ]
PRANTL, Jochen (2005). "Informal groups of States and the UN Security Council". International Organization, v. 59, n. 3, pp. 559-592.         [ Links ]

Recebida em 19 de janeiro de 2013
Aprovada em 9 de março de 2013

1 Insulamento que apenas recentemente começou a ser revertido. Ver Faria (2012). 2 Os vencedores da II Guerra Mundial: Estados Unidos, Reino Unido, França, República Popular da China e Federação Russa.

terça-feira, 21 de agosto de 2012

Amaury de Souza: um mestre incomparavel - Octavio Amorim

Conheci Amaury de Souza, o acadêmico, muito tempo antes de conhecer Amaury de Souza, o homem.
Devo ter lido algum artigo dele ainda nos anos 1970, ao pesquisar sobre a política brasileira para meu "mémoire de licence", preparado na Bélgica. 
Quando o conheci, em algum seminário no Rio de Janeiro ou em Brasília, já bem entrados os anos 1990, desenvolvemos uma relação distante mas mutuamente respeitosa, e colaborativa, pois participei de várias pesquisas que ele conduziu (para o seu livro sobre a política externa brasileira, por exemplo, mas também sobre a Alca e o Mercosul).
Recebia seus e-mails com artigos e matérias de imprensa sobre temas internacionais, ainda poucos dias (talvez não mais que dois) antes de seu passamento, que ressinto como se ele tivesse sido meu professor.
Meus mais profundos sentimentos a sua família, a seus amigos, a todos os seus alunos, entre os quais eu posso me incluir.
Paulo Roberto de Almeida 

Amaury de Souza
Octavio Amorim Neto (EBAPE/FGV-Rio)

 Na madrugada de 17 de agosto de 2012, faleceu, no Rio de Janeiro, Amaury de Souza. Um dos líderes do “esquadrão de ouro” que fundou o IUPERJ e criou a moderna ciência política brasileira – em pleno regime militar –, Amaury deixou inúmeras contribuições à disciplina e à profissão. Fiel à marca da sua geração, nunca abandonou a militância política, vendo nesta o irmão siamês do labor acadêmico. Foi pioneiro em tudo que fez, seja no doutoramento em instituições de elite dos EUA (Amaury foi Ph.D. pelo MIT), na adoção de métodos quantitativos, na análise de pesquisas de opinião, no estudo do planejamento urbano, no uso da computação, como no estabelecimento da atividade de consultor político profissional.
O pioneirismo de Amaury é um produto nobre do pioneirismo da Faculdade de Ciências Econômicas da UFMG, em que, apesar da precariedade dos meios, buscou-se consolidar o ensino das ciências sociais em nível universitário, algo incipiente no país à época. Entre seus colegas dos tempos de graduação que viriam a colaborar decisivamente no estabelecimento da ciência política acadêmica no Brasil estavam Antônio Octávio Cintra (Ph.D. pelo MIT), Bolívar Lamounier (Ph.D. pela UCLA), Fábio Wanderley Reis (Ph.D. por Harvard), José Murilo de Carvalho (Ph.D. por Stanford) e Simon Schwartzman (Ph.D. por Berkeley).
Amaury não foi apenas politólogo. Além de bacharel em sociologia política, obteve também o diploma de administração, ambos os títulos pela UFMG. Daí ter-se tornado também especialista em consultoria empresarial, atividade a que viria dedicar-se intensamente após desligar-se do IUPERJ em 1987.
Amaury era, pois, um homem polivalente e, como acadêmico, multitemático. Suas dezenas de artigos e livros versam sobre os mais variados assuntos: política local, sindicalismo, eleições, sistemas eleitorais, sistemas partidários, Congresso, elites, presidencialismo, cultura política, burocracias, consolidação democrática, desenvolvimento político, economia política, política urbana, demografia, reforma política, política externa, política comercial, e a nova classe média.
Esse rol impressionante de temas é, na verdade, a melhor expressão do que foi a grande vocação de Amaury: a atividade acadêmica. Apesar de ter deixado de ser professor em tempo integral relativamente cedo e passado a dedicar-se à consultoria política e empresarial, Amaury nunca deixou de ser um grande scholar, impecável no seu profissionalismo e na adesão ao estilo de trabalho universitário que aprendera no MIT. Prova disso eram sua insaciável sede por ler tudo de relevante sobre todo assunto que entrava em seu radar, seu interesse por obras clássicas e pelo que escreviam os mais verdes autores, pela atenção aguda a detalhes, pela análise isenta dos dados empíricos apesar das intensas paixões políticas que o animavam, e o fato de estar sempre atualizado com os debates acadêmicos. Não obstante sua pesada agenda de compromissos empresariais e políticos, Amaury sempre impressionava por dominar todas as vertentes que marcavam as áreas de pesquisa que porventura estudasse, como se ainda fosse um recém-doutor cheio de ardor pelo assunto da sua tese. Foi assim até o último dia de vida.
Evidência eloquente de que Amaury foi sempre um acadêmico é o fato de seus últimos dois livros terem sido publicados há pouquíssimo tempo: A Agenda Internacional do Brasil: A Política Externa de FHC a Lula (Campus, 2009) e A Classe Média Brasileira: Ambições, Valores e Novos Projetos de Sociedade(Campus, 2010), este escrito juntamente com Bolívar Lamounier. De maneira coerente com o que Amaury fez ao longo de sua carreira, essas duas obras já são referências obrigatórias para os principais debates sobre o novo Brasil que nasceu no começo do século XXI.
O que permitiu uma carreira tão polivalente, multitemática e produtiva? O fato de Amaury combinar uma grande inteligência com um trabalho obsessivo e incansável. Essa foi sua segunda grande marca. Todos aqueles que foram seus alunos ou assistentes aprenderam não apenas a substância do que ele ensinava ou pesquisava, mas também o amor ao trabalho, que transmitia com muito orgulho e carisma. Amaury podia ser também um mestre duro e abrasivo, mas sua generosidade sempre foi muito maior do que suas idiossincrasias. Há hoje uma legião de cientistas sociais que muito deve ao coração de Amaury, entre eles o autor destas linhas.
Amaury se dedicou de corpo e alma a várias causas. A sua defesa intelectual da democracia representativa, do parlamentarismo, do voto distrital, da economia de mercado e da redução de impostos ficará também como mais uma das suas contribuições à ciência política nacional e à vida política do país.
Infatigável em sua vocação acadêmica, Amaury deu o ponto final ao seu último artigo dois dias antes de partir. Aliás, só se permitiu partir depois de fazê-lo.
Valeu, Mestre!
==========
AMAURY DE SOUZA (1942-2012)
Pioneiro em consultorias políticas
DAMARIS GIULIANA
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA, DO RIO, 21/08/2012

Ph.D em ciência política pelo MIT (Massachusetts Institute of Technology), nos EUA, Amaury de Souza foi um dos pioneiros da área no Brasil.
Deu aulas no Iuperj (Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro), no Departamento de Economia da PUC-Rio e em diversas universidades americanas.
Também iniciou as consultorias políticas no Brasil, que manteve paralelamente às empresariais, sem jamais se afastar da militância.
"Foi um trabalhador obsessivo, incansável", diz o amigo e professor da FGV Octavio Amorim Neto. "Era de uma enorme generosidade, especialmente com os jovens acadêmicos. Tinha posições muito radicais, mas queria ouvir o outro lado. Era democrático no trato", descreve.
Estudioso multidisciplinar, deixou produções em diversas áreas, incluindo administração e sistemas políticos, dedicando-se ao parlamentarismo.
Suas duas últimas obras, ambas de 2009, são referência em política brasileira -"A Agenda Internacional do Brasil: A Política Externa Brasileira de FHC a Lula" e "A Classe Média Brasileira: Ambições, Valores e Projetos de Sociedade".
Desde 2000, atuava na MCM Consultores Associados. Em nota, a empresa diz que Amaury "tornou-se um dos mais brilhantes e lúcidos analistas políticos do país".
Há um ano, descobriu que tinha câncer de pâncreas. Após cirurgia, voltou a trabalhar. Em julho, porém, foi identificada metástase, e retomou a quimioterapia.
Morreu na quarta-feira (15), no Rio, após uma hemorragia. Tinha 69 anos. Deixa mulher, dois filhos e uma neta.

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

De Dutra a Lula: a diplomacia brasileira - Octavio Amorim Neto


02/02/2012 - 20h00

'De Dutra a Lula' investiga meio século de diplomacia brasileira

da Livraria da Folha
Em "De Dutra a Lula", o professor Octavio Amorim Neto analisa a atuação diplomática brasileira usando ferramentas teóricas das relações internacionais e das ciências sociais.
Divulgação
Examina a condução e os determinantes da política externa brasileira
Octavio examina mais de meio século de política externa brasileira
Ao promover a convergência entre essas duas disciplinas, o autor produz um livro raro no Brasil. Apesar de partícipes das ciências humanas, a maior parte dos textos não cria diálogo entre sistema político e história diplomática.
Octavio se ampara em dados estatísticos para criar um método de pesquisa quantitativa. Como resultado, o volume interessa a cientistas políticos, internacionalistas e historiadores.
"Este livro é um convite ao diálogo amigável entre as tradições quantitativa e qualitativa de análise política e entre a literatura sobre as instituições políticas brasileiras e a bibliografia sobre a política externa do país. Infelizmente, ambos os diálogos têm sido muito incipientes entre os acadêmicos nacionais, para o prejuízo de todos", comenta.
Graduado em ciências sociais e pós-graduado em ciência política, Octavio Amorim Neto recebeu prêmios da Associação Brasileira de Ciência Política e da Associação Americana de Ciência Política.
"De Dutra a Lula"
Autor: Octavio Amorim Neto
Editora: Campus Elsevier
Páginas: 216
Quanto: R$ 49,50 

sábado, 24 de dezembro de 2011

O afastamento do Brasil dos EUA: para alegria de muitos...

Isso se chama, em certa linguagem, soberania, ou autonomia, e muitos consideram excelente que seja assim. Claro, quanto mais nos afastarmos da hegemonia americana, melhor o Brasil ficará, mais independente, mais rico, mais poderoso, mais autônomo, mais soberano, tudo para o bem do povo e felicidade geral da nação...
Mas, apenas para dizer algo útil: o livro de Octavio Amorim é excelente, e recomendo.
Paulo Roberto de Almeida


Brasil x EUA: afastamento gradual
Coluna: Merval Pereira
O Globo, 23/12/2011

Tomando por base a taxa anual de convergência com os Estados Unidos nas votações realizadas na Assembleia Geral da ONU, em mais de seis décadas e 18 mandatos presidenciais, o cientista político Octavio Amorim Neto, da Fundação Getulio Vargas do Rio, apresenta um interessante panorama do processo histórico que moldou nossa política externa, levando-a a um progressivo distanciamento em relação aos Estados Unidos.

O método estatístico que utilizou pioneiramente para uma avaliação da política externa parte do princípio de que ela é uma "política pública", que pode ser mensurada, embora sem nunca esquecer que o lado preponderante será sempre o qualitativo.

"Apesar da aridez da linguagem matemática, os números também podem oferecer uma narrativa histórica", afirma o autor. Manter o que chama de "diálogo intenso" entre as duas vertentes é um dos objetivos do livro "De Dutra a Lula, a condução e os determinantes da política externa", da editora Elsevier, com apoio da Fundação Konrad Adenauer.

O trabalho de Octavio Amorim Neto demonstra que, "a partir da segunda metade do século XX, à medida que crescia e se industrializava a economia brasileira, se expandia a população, se urbanizava a sociedade, e aumentavam os gastos militares e o tamanho das Forças Armadas, o país foi se sentindo em condições de, passo a passo, se distanciar daquele que havia sido seu grande aliado na primeira metade do século passado".

De 1946, ano que o autor considera "um dos grandes marcos na História brasileira", quando foi promulgada uma Constituição que representa "genuíno esforço de democratização da vida política do país", dando amplos poderes ao Legislativo, e também foi criado o Instituto Rio Branco, até 2008, o país passou do alinhamento, em variados graus de automatismo, com os Estados Unidos a um revisionismo moderado da ordem internacional unipolar vigente a partir do fim da Guerra Fria.

Um padrão de afastamento, explica o autor, de longo prazo e relativamente bem controlado, pois jamais chegou à ruptura ou à inimizade. "Uma chancelaria profissional soube traduzir, racionalmente, as crescentes capacidades nacionais do Brasil em um incremental e cauteloso distanciamento diplomático em relação aos Estados Unidos."

Da mesma forma, explica Amorim Neto, que soube se reaproximar de Washington durante a década de 1990, quando viu congelada ou ameaçada a posição internacional do país por conta da desorganização monetária e da semiestagnação por que vinha passando a economia brasileira desde a década de 1980.

A análise do cientista político toma o lugar da estatística para destacar que nesse período houve três regimes de delegação de autoridade do Ministério das Relações Exteriores.

O regime democrático de 1946 a 1964 destaca-se por uma extensa delegação ao Itamaraty, com poucas viagens internacionais dos presidentes e um corpo de embaixadores influentes.

Já o regime militar, mesmo com todos os chanceleres vindos da carreira, pode ser associado a um período de redução de autonomia decisória do ministério, especialmente durante o governo Geisel.

O regime democrático instalado em 1985 se caracteriza por uma maioria de chanceleres de carreira diplomática, mas um crescimento quase exponencial da chamada "diplomacia presidencial", sobretudo a partir do primeiro governo de Fernando Henrique Cardoso.

Octavio Amorim Neto relaciona os governos que foram mais longe no distanciamento dos Estados Unidos no período: Jânio Quadros, João Goulart, Ernesto Geisel e Lula.

E os que mais se aproximaram dos Estados Unidos: Eurico Dutra, Juscelino Kubitschek, Castelo Branco e Fernando Henrique Cardoso.

As variações correspondem, segundo o autor, a fatores domésticos: a força ministerial dos partidos de esquerda e a força ministerial da direita militar.

Os momentos de pico da força ministerial de esquerda coincidem com os momentos de maior longevidade dos dois regimes democráticos, o governo Goulart e os governos Lula.

Octavio Amorim Neto classifica como "momento de projeção internacional sem precedentes na sua História" a atuação do presidente Lula e do chanceler Celso Amorim na assinatura de um acordo com o Irã e a Turquia sobre o programa nuclear iraniano, o que causou um estranhamento entre o Brasil e os Estados Unidos.

O autor admite, no entanto, que essa atuação foi "controversa e com resultados duvidosos".

Embora não pretenda neste livro discutir se a política externa brasileira durante o governo Lula foi ou não excessivamente ideológica, Octavio Amorim Neto destaca que "uma razão para os supostos excessos da diplomacia praticada entre 2003 e 2010 pode encontrar-se na falta de freios domésticos à ação do Executivo".

O autor vê um "precário lugar" do Congresso em matéria internacional, mesmo que o Legislativo exerça influência indireta sobre a política externa.

"Os parlamentares brasileiros escudam-se na noção segundo a qual questões internacionais não têm relevância eleitoral no país."

As Forças Armadas, por seu turno, foram fator importante na definição da política externa brasileira no período 1946- 2008.

A ascensão e a queda do poder político dos militares tiveram, segundo Amorim Neto, um efeito considerável nos temas políticos e de segurança, afastando-nos dos Estados Unidos.

No fim do livro, Octavio Amorim Neto adverte que o modelo de análise centrado na relação com os Estados Unidos como principal vetor da diplomacia brasileira "está se esgotando".

Por conta do sucesso da universalização das relações internacionais do Brasil, de sua ascensão recente à condição de ator global, da emergência da China como principal parceiro comercial do país, do declínio imperial dos Estados Unidos e da multiplicação de atores envolvidos no processo decisório doméstico, "é muito provável que, a partir da presente década, sejam outros os principais determinantes da política externa brasileira".