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Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.

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sábado, 25 de agosto de 2012

Ao meu amigo Amaury de Souza - Mac Margolis


Ao meu amigo Amaury de Souza
Mac Margolis
O Estado de S. Paulo, 24 de agosto de 2012

Meu amigo Amaury,
Foi de manhã, no outono carioca, que conheci Amaury de Souza. Eu acabara de chegar no Rio, no início dos anos 80, um jovem repórter americano, ansioso para abraçar o Brasil. Naquela época, as matérias eram todas fáceis e as produzia com ligeireza e traçados fortes, sem meios tons ou segundos pensamentos. Conforme fui ficando e conhecendo melhor o país, as suas nuances e contorções, a pauta foi se complicando. Devo a Amaury a correção de rumo. Esse e muitos outros que se seguiram.
À época, Amaury era professor universitário, recém-chegado de uma temporada nos Estados Unidos e agora lotado no Iuperj, conhecida faculdade de ciências sociais em Botafogo. Encontrei-o no seu escritório, uma alcova modesta no segundo piso, abarrotada de livros e teses que ameaçavam tragar toda a superfície da mesa. Atrás dela, cumprimentou-me em inglês impecável um homem de gravata e terno alinhado, trajes que nada combinavam com a universidade espremida e romanticamente desleixada. Já dava para perceber que naquele espaço não cabiam suas ideias.
Por sua sugestão, saímos para almoçar e seguimos caminhando, uma corrida de obstáculos pelas calçadas maltratadas do bairro, ele abrindo caminho e eu, ofegante, no seu rastro. Amaury detestava perder tempo. O destino era um restaurante mineiro tradicional do Rio, que assim como a faculdade, já vivera dias melhores. Professor Amaury ia me decifrando os pratos, o feijão tropeiro, o aroma correto da cachaça e o lugar de cada um desses ingredientes na cultura nacional. Minha aula de Brasil começara pelo paladar.
Amaury falou do fim projetado do regime militar e do redespertar democrático, na época ainda tênue. O Brasil novo estava em obras, tomado pela primeira campanha de eleições livres para governador em duas décadas. Logo mais, viria o clamor pelas eleições diretas presidenciais. Lá, entre tragos e pratos, lancei algumas perguntas a esmo, uma rajada de ideias cruas e desinibidas sobre o país que pensava conhecer. Amaury, atento, abanou lentamente a cabeça, como quem acabasse de assistir a um atentado contra a lógica, e pôs-se a falar, delicado mas firme enquanto tratava de socorrer minha narrativa torta.
Caminhada, uma boa mesa, um trago e uma escova nas ideias. Assim começou minha aprendizagem sobre o Brasil. Para minha sorte, o estágio se estendeu ao longo dos seguintes 30 anos. Daquele dia em adiante, aprendi que conversar com Amaury era essencial. Escutar mais do que conversar, é verdade, mas Amaury também tinha o que dizer. Quando o Brasil me surpreendia e a engrenagem política se mexeu - da abertura democrática ao impeachment de Collor, do Plano Real ao mensalão - era ele, invariavelmente, que eu procurava. Perdi a conta de quantas vezes o abordei: Amaury, e agora?
Certa vez, um editor me chamou à atenção. Será que eu não conhecia nenhum outro analista político do Brasil? Pior que conhecia, sim. Vários deles e de bom quilate. Mas era a Amaury que eu acabei retornando, sempre. Pois ninguém me surpreendia como ele, e certamente nenhum outro dispunha de tanto tempo, muito menos de pachorra, para responder à minha saraivada de dúvidas.
Não que sempre concordássemos. Em quase tudo que fazia, Amaury era intenso e contundente, quando não fulminante. Em sua casa, na mesa do bar ou numa roda de amigos, trovejava impiedoso contra os absurdos do país. Ora era a máquina pública que demandava impostos escandinavos para devolver serviços ugandenses. Ora a militância trabalhista que clamava pela liberdade mas lutava com unhas e dentes para manter o monopólio do imposto sindical. Ele tinha pouca paciência para a esquerda brasileira, paladinos da ética política na oposição, uma quadrilha no poder.
Amaury era politicamente incorreto, às vezes ao ponto de provocar arrepios. Mas fundamentava cada irrupção com fatos e calçava suas filípicas com argumentos. Sociólogo premiado, não admitia o lero sociologuês, tão rico em elucubrações poéticas quanto despido de dados. Amaury acreditava em pesquisa. Em vez de adjetivos, lançava mão de números. Como escreveu Roberto DaMatta, Amaury era um liberal em uma nação entregue à social-democracia, um defensor assumido da liberdade capitalista em uma sociedade com vergonha do lucro. Com ele entendi não só do Brasil mas do desafio de se pensar e repensar. Arrotar opiniões é uma coisa. Defendê-las sob sabatina, é outra. Amaury sabatinava.
Um dia, lá pelo final dos anos 90, farto com os descaminhos do Brasil, Amaury falou seriamente em sair do país. Seu destino seria Miami, confessou, rota de fuga de muitos brasileiros. "Miami?" perguntei, tentando imaginá-lo - aquela presença marcante, sempre alinhada e movida a uma energia quase atômica - flanando pela South Beach, de óculos Ray Ban e camisa estampada de hibisco. Felizmente, Amaury desistiu da ideia. Sua esposa, Martha, vez por outra lembrava daquela conversa, com mistura de espanto e bom humor, e até me agradecia pela intervenção amigável que, quem sabe, os tivesse salvo de um fim tropical kitsch. Obrigado, Martha. Mas foi puro interesse. Como eu iria fazer para entender o Brasil com Amaury lá longe, tomando mojito?
Tive a grande sorte de conviver com Amaury em sua terra, que ele pensava e interpretava como ninguém. Não foi diferente na semana retrasada, quando encontramos na Urca, no bar a poucos passos da sua casa. Magro e fragilizado pela doença, Amaury fazia questão de estar ali, tomar chope, falar de livros (estava imerso em "Jerusalém", último tomo do historiador Simon Sebag Montefiore), comentar o julgamento do mensalão e decifrar os rumos da política brasileira. Amaury podia estar doente, mas nunca o vi adoentado. Gostava demais da vida. Em pouco tempo, passei de aprendiz a admirador, a amigo de Amaury, e custa acreditar que isso tenha terminado.

terça-feira, 21 de agosto de 2012

Amaury de Souza: um mestre incomparavel - Octavio Amorim

Conheci Amaury de Souza, o acadêmico, muito tempo antes de conhecer Amaury de Souza, o homem.
Devo ter lido algum artigo dele ainda nos anos 1970, ao pesquisar sobre a política brasileira para meu "mémoire de licence", preparado na Bélgica. 
Quando o conheci, em algum seminário no Rio de Janeiro ou em Brasília, já bem entrados os anos 1990, desenvolvemos uma relação distante mas mutuamente respeitosa, e colaborativa, pois participei de várias pesquisas que ele conduziu (para o seu livro sobre a política externa brasileira, por exemplo, mas também sobre a Alca e o Mercosul).
Recebia seus e-mails com artigos e matérias de imprensa sobre temas internacionais, ainda poucos dias (talvez não mais que dois) antes de seu passamento, que ressinto como se ele tivesse sido meu professor.
Meus mais profundos sentimentos a sua família, a seus amigos, a todos os seus alunos, entre os quais eu posso me incluir.
Paulo Roberto de Almeida 

Amaury de Souza
Octavio Amorim Neto (EBAPE/FGV-Rio)

 Na madrugada de 17 de agosto de 2012, faleceu, no Rio de Janeiro, Amaury de Souza. Um dos líderes do “esquadrão de ouro” que fundou o IUPERJ e criou a moderna ciência política brasileira – em pleno regime militar –, Amaury deixou inúmeras contribuições à disciplina e à profissão. Fiel à marca da sua geração, nunca abandonou a militância política, vendo nesta o irmão siamês do labor acadêmico. Foi pioneiro em tudo que fez, seja no doutoramento em instituições de elite dos EUA (Amaury foi Ph.D. pelo MIT), na adoção de métodos quantitativos, na análise de pesquisas de opinião, no estudo do planejamento urbano, no uso da computação, como no estabelecimento da atividade de consultor político profissional.
O pioneirismo de Amaury é um produto nobre do pioneirismo da Faculdade de Ciências Econômicas da UFMG, em que, apesar da precariedade dos meios, buscou-se consolidar o ensino das ciências sociais em nível universitário, algo incipiente no país à época. Entre seus colegas dos tempos de graduação que viriam a colaborar decisivamente no estabelecimento da ciência política acadêmica no Brasil estavam Antônio Octávio Cintra (Ph.D. pelo MIT), Bolívar Lamounier (Ph.D. pela UCLA), Fábio Wanderley Reis (Ph.D. por Harvard), José Murilo de Carvalho (Ph.D. por Stanford) e Simon Schwartzman (Ph.D. por Berkeley).
Amaury não foi apenas politólogo. Além de bacharel em sociologia política, obteve também o diploma de administração, ambos os títulos pela UFMG. Daí ter-se tornado também especialista em consultoria empresarial, atividade a que viria dedicar-se intensamente após desligar-se do IUPERJ em 1987.
Amaury era, pois, um homem polivalente e, como acadêmico, multitemático. Suas dezenas de artigos e livros versam sobre os mais variados assuntos: política local, sindicalismo, eleições, sistemas eleitorais, sistemas partidários, Congresso, elites, presidencialismo, cultura política, burocracias, consolidação democrática, desenvolvimento político, economia política, política urbana, demografia, reforma política, política externa, política comercial, e a nova classe média.
Esse rol impressionante de temas é, na verdade, a melhor expressão do que foi a grande vocação de Amaury: a atividade acadêmica. Apesar de ter deixado de ser professor em tempo integral relativamente cedo e passado a dedicar-se à consultoria política e empresarial, Amaury nunca deixou de ser um grande scholar, impecável no seu profissionalismo e na adesão ao estilo de trabalho universitário que aprendera no MIT. Prova disso eram sua insaciável sede por ler tudo de relevante sobre todo assunto que entrava em seu radar, seu interesse por obras clássicas e pelo que escreviam os mais verdes autores, pela atenção aguda a detalhes, pela análise isenta dos dados empíricos apesar das intensas paixões políticas que o animavam, e o fato de estar sempre atualizado com os debates acadêmicos. Não obstante sua pesada agenda de compromissos empresariais e políticos, Amaury sempre impressionava por dominar todas as vertentes que marcavam as áreas de pesquisa que porventura estudasse, como se ainda fosse um recém-doutor cheio de ardor pelo assunto da sua tese. Foi assim até o último dia de vida.
Evidência eloquente de que Amaury foi sempre um acadêmico é o fato de seus últimos dois livros terem sido publicados há pouquíssimo tempo: A Agenda Internacional do Brasil: A Política Externa de FHC a Lula (Campus, 2009) e A Classe Média Brasileira: Ambições, Valores e Novos Projetos de Sociedade(Campus, 2010), este escrito juntamente com Bolívar Lamounier. De maneira coerente com o que Amaury fez ao longo de sua carreira, essas duas obras já são referências obrigatórias para os principais debates sobre o novo Brasil que nasceu no começo do século XXI.
O que permitiu uma carreira tão polivalente, multitemática e produtiva? O fato de Amaury combinar uma grande inteligência com um trabalho obsessivo e incansável. Essa foi sua segunda grande marca. Todos aqueles que foram seus alunos ou assistentes aprenderam não apenas a substância do que ele ensinava ou pesquisava, mas também o amor ao trabalho, que transmitia com muito orgulho e carisma. Amaury podia ser também um mestre duro e abrasivo, mas sua generosidade sempre foi muito maior do que suas idiossincrasias. Há hoje uma legião de cientistas sociais que muito deve ao coração de Amaury, entre eles o autor destas linhas.
Amaury se dedicou de corpo e alma a várias causas. A sua defesa intelectual da democracia representativa, do parlamentarismo, do voto distrital, da economia de mercado e da redução de impostos ficará também como mais uma das suas contribuições à ciência política nacional e à vida política do país.
Infatigável em sua vocação acadêmica, Amaury deu o ponto final ao seu último artigo dois dias antes de partir. Aliás, só se permitiu partir depois de fazê-lo.
Valeu, Mestre!
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AMAURY DE SOUZA (1942-2012)
Pioneiro em consultorias políticas
DAMARIS GIULIANA
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA, DO RIO, 21/08/2012

Ph.D em ciência política pelo MIT (Massachusetts Institute of Technology), nos EUA, Amaury de Souza foi um dos pioneiros da área no Brasil.
Deu aulas no Iuperj (Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro), no Departamento de Economia da PUC-Rio e em diversas universidades americanas.
Também iniciou as consultorias políticas no Brasil, que manteve paralelamente às empresariais, sem jamais se afastar da militância.
"Foi um trabalhador obsessivo, incansável", diz o amigo e professor da FGV Octavio Amorim Neto. "Era de uma enorme generosidade, especialmente com os jovens acadêmicos. Tinha posições muito radicais, mas queria ouvir o outro lado. Era democrático no trato", descreve.
Estudioso multidisciplinar, deixou produções em diversas áreas, incluindo administração e sistemas políticos, dedicando-se ao parlamentarismo.
Suas duas últimas obras, ambas de 2009, são referência em política brasileira -"A Agenda Internacional do Brasil: A Política Externa Brasileira de FHC a Lula" e "A Classe Média Brasileira: Ambições, Valores e Projetos de Sociedade".
Desde 2000, atuava na MCM Consultores Associados. Em nota, a empresa diz que Amaury "tornou-se um dos mais brilhantes e lúcidos analistas políticos do país".
Há um ano, descobriu que tinha câncer de pâncreas. Após cirurgia, voltou a trabalhar. Em julho, porém, foi identificada metástase, e retomou a quimioterapia.
Morreu na quarta-feira (15), no Rio, após uma hemorragia. Tinha 69 anos. Deixa mulher, dois filhos e uma neta.