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domingo, 1 de setembro de 2013

Reconstruir o Itamaraty - Dawisson Lopes (FSP)

ANÁLISE POLÍTICA EXTERNA
Luiz Alberto Figueiredo assume no momento em que o ministério é pressionado pela sociedade como nunca
DAWISSON BELÉM LOPES
ESPECIAL PARA A FOLHA, 01/09/2013

Caberá ao diplomata Luiz Alberto Figueiredo reabilitar o Itamaraty de uma de suas mais ruidosas crises.
Novo chefe da Casa de Rio Branco, ele recebeu de Dilma um mandato implícito: distanciar-se da gestão do ex-ministro Patriota.
O Itamaraty abriga em seu seio diversas contradições.
Ministério dos mais antigos, fundado no Império, constituiu-se em celeiro de estrategistas, intelectuais, artistas e burocratas da melhor estirpe e goza de boa reputação no exterior.
Não obstante, a pasta encontra-se pressionada como nunca pela sociedade, ciosa de que a diplomacia possa, enfim, coadunar-se com a gramática política do século 21.
O chanceler deve atentar para a natureza do cargo. Faz algum tempo que a política externa deixou de estar confinada ao Itamaraty.
Os desafios de Figueiredo são também programáticos. Há que retomar a tradição brasileira de ativismo e contestação às desigualdades nos fóruns multilaterais.
O arrefecimento da campanha por um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU e os insucessos na tentativa de uma ampla reforma das instituições de Bretton Woods (FMI e Banco Mundial) foram aspectos lamentados pela cúpula governamental na administração anterior do Itamaraty.
Da perspectiva regional, cumprirá ao ministro a tarefa de recompor as relações com La Paz e Assunção, bem como dar novo impulso ao projeto de integração pós-liberal da América do Sul.
A controvérsia sobre o ingresso da Venezuela no Mercosul serviu de cortina de fumaça para a estagnação de dinâmicas (políticas e econômicas) que são de vital importância para o êxito de nossa diplomacia.
Por fim, Figueiredo deverá levar em conta a necessidade de incluir minorias (mitigando o problema histórico da sub-representação de mulheres e negros no corpo diplomático), combater focos de corrupção e ineficiência, pugnar por maior qualidade na assistência aos brasileiros no exterior e consequentemente aproximar a população do Itamaraty.

DAWISSON BELÉM LOPES é professor de política internacional e comparada da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e autor de "Política externa e democracia no Brasil" (Ed. Unesp, 2013)

terça-feira, 27 de agosto de 2013

Antonio, o Breve - Dawisson Lopes

Antonio, o Breve

Se a importância de uma era é medida pela densidade de seus eventos, é assim que historiadores poderão ver o chanceler Patriota, avalia professor

15 de junho de 2013 | 16h 00
Dawisson Belém Lopes
Jovem brilhante, talvez o melhor da sua geração. Oriundo de família de diplomatas, com formação sólida e consistência acadêmica, estava habituado às sutilezas da Casa de Rio Branco. Antonio Patriota trazia a vocação para o ofício no próprio nome. Foi embaixador aos 50. Chefiou a missão do Brasil em Washington e, na sequência, tornou-se secretário-geral do Itamaraty - a mais alta posição da carreira.
Chanceler Antonio Patriota - Hélvio Romero/Estadão
Hélvio Romero/Estadão
Chanceler Antonio Patriota
Bem-visto pela corporação diplomática e por seu antecessor no cargo, Celso Amorim, logo obteve a indicação da mandatária da nação para ser o chanceler. Fazia-se justiça a uma trajetória impecável do ponto de vista do mérito técnico.
Seria o líder de um ministério em ascensão, prestigiado pelo ex-presidente Lula e absolutamente instrumental para a inserção do Brasil no mundo globalizado. Até a sociedade civil, tradicionalmente desatenta aos aspectos internacionais, começava a mobilizar-se e a politizar agendas pertinentes à pasta do exterior.
Parecia o cenário ideal para a consagração de Patriota. Tinha tudo para dar certo. Mas foi aí que os seus problemas começaram...
De saída, o ministro foi anunciado como a boa nova. Movido por um plano de "suave correção de rumos", ele acolhia em parte as reivindicações de determinados segmentos sociais por uma diplomacia mais convencional. Acenou com a reaproximação com os Estados Unidos e condenou as violações de direitos humanos no Irã, relegando para segundo plano as bandeiras da reforma do Conselho de Segurança da ONU e do regionalismo pós-liberal na América do Sul. O elemento de contestação à ordem mundial, presente na gestão "ativa e altiva" de Amorim, diluiu-se.
Pouco a pouco, foi se tornando evidente que Dilma não era Lula. A diplomacia presidencial da nova incumbente, por desinteresse ou inaptidão, recuou. Além disso, o recomendável entrosamento entre chefe de Estado e chanceler nunca houve. Nos temas econômicos da política externa, Guido Mantega e Fernando Pimentel fizeram-se porta-vozes da Presidência; nas questões de cunho político e social, Marco Aurélio Garcia e Gilberto Carvalho foram conselheiros preferenciais.
Vários enroscos diplomáticos do primeiro biênio de governo foram debitados à conta do ministro das Relações Exteriores, com destaque para a derrubada do aliado paraguaio Fernando Lugo. O entusiasmo da militância social e dos meios de imprensa com Patriota rapidamente arrefeceu.
Nos últimos meses, a situação piorou. O chanceler foi posto na alça de mira de diversos grupos de interesse e pressão. Todo mundo tirou uma casquinha: ambientalistas insatisfeitos com a condução da Rio+20, organizações de direitos humanos queixosas da leniência brasileira com ditadores sanguinários, editorialistas de cadernos de política com denúncias de malversação do recurso público. Justas ou não, as reclamações agora beiram o inusitado: até a torcida do Corinthians, depois da tragédia de Oruro e da detenção de alguns de seus membros, passou a apupar a chefia do Itamaraty.
As vitórias, quando aconteceram, foram pírricas. Patriota despendeu energia pelo reconhecimento da Palestina como membro observador na Assembleia-Geral da ONU - no que foi bem-sucedido -, mas não colheu benefícios palpáveis da empreitada. Em outra ocasião, o Brasil tentou fazer avançar, também no púlpito da ONU, o conceito de "responsabilidade ao proteger" para regulamentar as intervenções humanitárias. Inicialmente recepcionada com interesse pela comunidade das nações, a ideia foi desautorizada na prática, e tratada como um sintoma de que nosso país era relutante em assumir o fardo da condição de potência global.
Sintomática mas não surpreendentemente, a expressiva eleição do diplomata brasileiro Roberto Azevêdo à direção da Organização Mundial do Comércio foi tratada, pelo governo, mais como resultado do envolvimento pessoal da presidente da República - e menos como o fruto de uma longa e intrincada articulação diplomática, liderada pelo Ministério das Relações Exteriores.
O eclipse do Itamaraty é a consequência inevitável desse processo. Até o tradicionalíssimo concurso anual para recrutamento de diplomatas foi colocado em suspenso pela administração federal. Também dão conta desse achatamento político o contingenciamento das verbas para o ministério e a baixa frequência com que o ministro do Exterior despacha com a presidente da República.
Há quem diga que diplomata faz política de Estado e, portanto, estaria imune às contingências do governo. Penso que, numa democracia contemporânea, não poderia existir maior equívoco de interpretação - e Antonio Patriota dá vivo testemunho disso. Sua natural aversão aos jogos políticos lhe dá um indefectível ar de chefe interino: sem força, sem perspectiva e, miseravelmente, sem legado.
Se a importância de uma era é medida pela densidade dos seus eventos, a impressão é de que os historiadores poderão tratar o ministro, num futuro não muito distante, pelo epíteto "O Breve" - mesmo que, cronologicamente, sua permanência no cargo ainda se arraste até o fim deste governo.
*DAWISSON BELÉM LOPES É PROFESSOR DE POLÍTICA INTERNACIONAL E COMPARADA DA UFMG E AUTOR DE POLÍTICA EXTERNA E DEMOCRACIA NO BRASIL: ENSAIO DE INTERPRETAÇÃO HISTÓRICA (UNESP, 2013
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Itamaraty: esvaziamento na gestao Dilma - Dawisson Lopes

DAWISSON BELÉM LOPES
ESPECIAL PARA A FOLHA, 27/08/2013 - 03h45

Sem adentrar o mérito humanitário ou jurídico do resgate do senador boliviano, fato é que a operação (aparentemente, não autorizada pela cúpula do Itamaraty ou pelo Planalto) causou mal estar entre os homens da corporação diplomática nacional.
O cerne do problema está no que a ação desvelou: o deficit de liderança na Casa de Rio Branco.
Diplomatas são também conhecidos como "os militares de terno e gravata", tal é o apreço que demonstram por hierarquias e cadeias de comando.
Quando a orientação da chefia não é seguida à risca, fabrica-se a fórceps a obediência. Basta lembrar a circular postal emitida, em 2001, pelo então ministro Celso Lafer, que proibia posicionamentos públicos de membros do serviço exterior sem o prévio assentimento do ministério.
Já no governo de Lula, foram publicadas pelo Itamaraty cartilhas que descreviam a posição do Brasil em relação a um rosário de temas, a fim de uniformizar as falas e as ações.
Essa carência de liderança institucional repercutia em diversos níveis. Havia arestas no relacionamento entre a presidente da República e o seu ministro do Exterior, do que foi consequência do achatamento político do Itamaraty. Daí decorreu, por exemplo, o contingenciamento das verbas ministeriais e a dificuldade para realizar, em 2013, o concurso anual para admissão de novos diplomatas.
E o dilema não se restringiu à articulação da chancelaria com a chefia do Executivo. Reportaram-se também sérios equívocos de gestão e cálculo político no Ministério das Relações Exteriores.
O acatamento relutante da Lei de Acesso à Informação, a revelação dos supersalários de servidores lotados no estrangeiro, os recentes escândalos de assédio sexual e moral e a denúncia sobre "funcionários fantasmas" no interior da corporação compuseram quadro que, decididamente, não era abonador para Patriota.
Não por acaso, propostas oficiais para o esvaziamento de competências do Itamaraty têm tramitado. Fala-se em Brasília, por exemplo, da possível criação de uma agência governamental com habilitação exclusiva para coordenar o comércio internacional do Brasil e da provável desvinculação entre a Agência Brasileira de Cooperação (ABC) e o Itamaraty.
Como no conto de Andersen, o caso do senador boliviano refugiado no Brasil trouxe à baila uma verdade inconveniente -mas que, a rigor, todos já conheciam. Não será exagero dizer que a ocasião fez a insubordinação.


DAWISSON BELÉM LOPES é professor de política internacional e comparada da UFMG e autor de "Política externa e democracia no Brasil" (Ed. Unesp, 2013)

sexta-feira, 19 de julho de 2013

Politica Externa e Democracia no Brasil: livro de Dawisson Lopes (Unesp)

Política externa e democracia no Brasil
Dawisson Lopes (Unesp)

Neste livro, o autor examina as relações entre democracia e política externa, tema para ele de indiscutível atualidade e importância, que, no entanto, tem escassa presença na literatura em língua portuguesa. A obra foca o Brasil após a redemocratização, em 1985, para avaliar se a política externa brasileira tornou-se mais democrática no novo contexto ou se, apesar de ter ganhado mais espaço na mídia nesse período, continuou sendo decidida exclusivamente pelo Estado.
A análise baseia-se em um resgate de perspectiva historiográfica do discurso e da prática de democratização da política exterior a partir de 1985, problematizando, no âmbito da teoria e dos conceitos, a relação entre democracia e política externa. E evoca o "republicanismo aristocrático" para tentar explicar a relutância à abertura do processo decisório sobre as questões internacionais do país - relutância que se contrapõe ao potencial da política externa para "alterar a consistência do relacionamento entre o Estado e seus cidadãos".
Para o autor, o debate faz sentido especialmente neste momento histórico em que as sociedades democráticas "internalizaram" a política internacional, em consequência da globalização. Agora, diz, essas sociedades precisam "externalizar o doméstico", e sem titubear, sob pena de perderem o passo na "acelerada marcha rumo à integração dos povos".
O livro ainda amealha diferentes pontos de vista sobre a política exterior do país desde o governo José Sarney (1985-1989),  reunindo entrevistas com os diplomatas Celso Amorim, Gelson Fonseca, Luiz Felipe Lampreia, Rubens Ricupero e Alexandre Guido Lopes Parola. Sem ser conclusivo, ele mostra que, na democracia, a política externa brasileira tornou-se menos hermética e ganhou mais interlocutores, mas permaneceu conservadora.





Ficha Técnica
Preço: R$ 52
ISBN: 978-85-393-0411-0
Assunto: Política
Idioma: Português
Páginas: 336
Edição:
Ano: 2013
Formato: 14 x 21 cm
Acabamento: Brochura com orelhas

Sobre o autor

Dawisson Belém Lopes é professor adjunto do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

SUMÁRIO

Prefácio: Embaixador Celso L. N. Amorim_XI
Agradecimentos_XVII
Relação de figuras, siglas e abreviações_XIX
Introdução_1
1 A análise da política externa brasileira em evolução_11
2 Os avanços e retrocessos nas propostas de democratização da política externa brasileira entre 1985 e 2010_31
3 Política externa e democracia: conexões in abstracto_83
4 Política externa brasileira e democracia: relacionamento difícil_141
5 Rearranjando fatores: uma hipótese (residual) para entender o Brasil_209
Conclusão – Uma nova estratégia de legitimação para a política externa brasileira?_269
Anexos_293
Referências bibliográficas_313

TEXTO DE APRESENTAÇÃO (ORELHAS)

Já se disse que, nas sociedades pós-industriais, o conflito social teria como eixo a tensão crescente provocada pela coexistência de duas tendências contraditórias: a de busca por igualdade e a de crescente burocratização – esta última caracterizada pela importância cada vez mais central assumida pelo componente técnico do conhecimento.

            No Brasil atual, ameaçado de desindustrialização, mais do que passível de ser classificado como uma sociedade pós-industrial, talvez em nenhum outro campo das políticas públicas a cargo do governo federal tal tensão tenha tanta visibilidade, pelo menos nos meios acadêmicos, como na política externa. Nessa seara, os dois principais partidos políticos advogam projetos distintos de inserção internacional para o país. A corporação diplomática, diante da crescente politização da política exterior, por vezes trai a sua aparência monolítica, revelando profundas clivagens intracorporativas. As decisões tomadas no plano internacional produzem impactos redistributivos domésticos de intensidade inaudita e o tema ganha as manchetes da grande mídia.

            Inúmeros e diversificados fatores convergiram, no último quarto de século, para reforçar a necessidade de tratamento da política externa brasileira como uma política pública, e não mais como seara exclusiva e monopólio de nossos diplomatas. No plano analítico, tal processo de desencapsulamento da nossa política exterior ganha, neste livro de Dawisson Lopes, o seu tratamento mais sistemático. Esta obra é dedicada ao questionamento da possibilidade de compatibilização entre política externa e democracia e à interpretação deste encontro conflitivo no Brasil da Nova República. Tais objetivos inevitavelmente implicam colocar em discussão a trajetória e as tendências ao insulamento por parte do Itamaraty. Nessa empreitada, o leitor é brindado com uma mescla de erudição e ousadia analítica, em uma tessitura argumentativa original e provocativa, que alia o método histórico ao comparativo, questionando o cânone e ao mesmo tempo retirando dele novas e promissoras chaves interpretativas, como a hipótese do “republicanismo aristocrático mitigado”.

            Se a tensão entre expertise e democracia (ou entre eficiência e representatividade) talvez possa ser pensada como constitutiva da produção da política externa em regimes poliárquicos como o brasileiro, esta importante contribuição de Dawisson Lopes está fadada a se tornar referência inescapável no debate acerca das gramáticas políticas das relações exteriores do país.

 Carlos Aurélio Pimenta de Faria

Professor do Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da PUC Minas.

RECOMENDAÇÕES

“Com lastro empírico e solidez analítica, este livro traça um amplo panorama histórico e teórico do sistema de formulação da política externa brasileira. O autor procura construir uma solução dialética entre os conceitos de democracia e de república em nossa história diplomática. Trata-se de uma contribuição valiosa para um debate ainda incipiente no país.”

Celso Amorim 

“Quais os limites e as possibilidades da democratização da política externa brasileira? Para respondê-lo, o autor percorre narrativas próprias da história, da teoria social, da análise institucional, da cultura política e do desenvolvimento da política externa. O viés aristocrático é apontado como um dos principais empecilhos à maior porosidade da diplomacia brasileira aos insumos da sociedade civil.”

Maria Regina Soares de Lima

quinta-feira, 18 de julho de 2013

Octavio Amorim Neto: De Dutra a Lula: a... politica externa brasileira (resenha de livro: Dawisson Lopes)

Uma excelente resenha de um mais que excelente livro, que também vou resenhar assim que me libertar dos trabalhos mais urgentes no meu pipeline.
Paulo Roberto de Almeida


Octavio Amorim Neto
(Rio de Janeiro: Campus, Konrad-Adenauer-Stiftung, 2011) 

Dawisson Belém Lopes
Professor do Programa de Pós-graduação em Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais (Belo Horizonte, MG). E-mail:dawisson@ufmg.br

Revista Brasileira de Ciência Política

versão impressa ISSN 0103-3352

Rev. Bras. Ciênc. Polít.  no.11 Brasília maio/ago. 2013

http://dx.doi.org/10.1590/S0103-33522013000200009 


Em polêmico artigo recentemente publicado nos Estados Unidos, os professores John Mearsheimer (University of Chicago) e Stephen Walt (Harvard Kennedy School) foram taxativos no diagnóstico de que, no afã de testar as hipóteses da literatura por meio de ferramentas metodológicas e técnicas cada vez mais sofisticadas, os trabalhos acadêmicos sobre temas internacionais estão relegando para o segundo plano a preocupação com a teoria e os conceitos. Decorre daí que, se, por um lado, temos sido contemplados nas publicações especializadas com um grande número de "evidências" e "achados", lastreados em observação empírica e experiências, por outro, diminuiu ostensivamente a produção de grandes teses e narrativas com capacidade de redirecionar a discussão acadêmica. Ainda mais grave é o desdobramento qualitativo: segundo os autores, a atomização da produção resulta em crescente incapacidade de compreensão dos macroprocessos internacionais contemporâneos, já que estamos perdendo a habilidade de identificar boas variáveis explicativas, de fazer as perguntas de pesquisa relevantes e, ainda, de traçar as conexões entre a parte e o todo (Mearsheimer e Walt, 2013). Longe de ser consensual, a opinião reflete um foco de tensão no cânone da disciplina acadêmica de relações internacionais, o qual tem potencial para alastrar-se e influenciar as suas diversas subáreas.
Enquanto isso, no Brasil, a situação é distinta. A obra De Dutra a Lula: a condução e os determinantes da política externa brasileira, de autoria do cientista político Octavio Amorim Neto, foi saudada pela comunidade acadêmica como a primeira grande tentativa de aproximar, em termos metodológicos, a ciência política das relações internacionais. Amorim Neto tomou para si a empreitada de apontar quais teriam sido, entre 1945 e 2008, as variáveis determinantes para a condução da política externa brasileira, valendo-se intensivamente de estatística descritiva e inferencial. Uma das vozes a pronunciar-se sobre o livro foi a professora Maria Regina Soares de Lima (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), que assim descreveu o intento, no prefácio à obra:
Octavio [Amorim Neto] nos brinda com uma análise sistemática do alcance empírico de argumentos produzidos na literatura qualitativa - que tem sido o modo predominante dos estudos sobre a política externa brasileira. E o faz combinando o viés quantitativo com grande sensibilidade histórica (p. ii).
Também dão conta da boa acolhida que a obra recebeu as resenhas e notas publicadas em periódicos e na grande imprensa. Segundo o jornal Folha de S.Paulo, "Octavio se ampara em dados estatísticos para criar um método de pesquisa quantitativa. Como resultado, o volume interessa a cientistas políticos, internacionalistas e historiadores" (Folha de S.Paulo, 2012). A revista Pesquisa, da Fundação de Amparo à Pesquisa de São Paulo, celebrou:
Se havia uma exceção gritante na crescente quantificação dos saberes, essa era a política externa, sempre analisada de forma qualitativa e, na maior parte dos casos, em um diapasão subjetivo. O estudo de Octavio Amorim Neto traz essa nova variável, objetiva, revertendo certezas e confirmando hipóteses (Carlos Haag, 2012, p. 91).
A culminância do processo foi a concessão do prêmio Victor Nunes da Leal, pela Associação Brasileira de Ciência Política, àquele que foi considerado por júri de especialistas o melhor livro científico em ciência política e relações internacionais do biênio 2010-2012.
Uma vez tendo sido feitos todos os reconhecimentos aos méritos de De Dutra a Lula - assim como às qualidades de pesquisador e escritor do seu autor - , talvez seja chegada a hora de avaliar mais criticamente o seu conteúdo e as prováveis consequências para o campo de estudos da Política Externa Brasileira (PEB). Não se pretende aqui repisar as apreciações prévias do livro (em sua maioria, francamente positivas). Antes, esta resenha pretende colocar em debate alguns pontos que, até onde conseguimos monitorar, ainda não passaram pelo devido escrutínio da comunidade acadêmica.
Recapitulando: De Dutra a Lula consiste, fundamentalmente, na tentativa de apreensão das principais linhas de força que modelaram a política externa ao longo de três grandes ciclos da política brasileira - o Interregno Democrático (1946-1964), o Regime Militar (1964-1985) e a Nova República (1985-2008) - por intermédio do método quantitativo.
No esquema explicativo de inspiração neorrealista, a convergência política entre Brasil e Estados Unidos significaria a capacidade deste país (considerado hegemônico na ordem global) de influenciar as ações daquele. Entretanto, a grande tese deixada por Amorim Neto ao fim do esforço argumentativo é que, a partir dos dados relativos ao período de 1946 a 2008, se teria tornado evidente o distanciamento do Brasil em relação às posições assumidas pelos EUA na política internacional. No contínuo que vai de 1946 a 2008 (vide o gráfico à página 69), a tendência que se depreende é de uma convergência cada vez menor entre os votos do Brasil e dos Estados Unidos, em diversas matérias, no âmbito da Assembleia Geral das Nações Unidas. Donde a ilação, apresentada já na conclusão do texto, de que:
A partir da segunda metade do século XX, à medida que crescia e se industrializava a economia brasileira, se expandia a população, se urbanizava a sociedade, e aumentavam os gastos militares e o tamanho das Forças Armadas, o país foi se sentindo em condições de, passo a passo, se distanciar daquele que havia sido seu grande aliado na primeira metade do século passado (p. 171).
A passagem acima serve, deliberadamente ou não, de combustível para todos os que acreditam na existência de "antiamericanismo" na condução da política externa na última década. Impressão que fica reforçada com o trecho seguinte:
O aumento da participação ministerial da esquerda - isto é, justamente no centro de gravidade do sistema político brasileiro, o Poder Executivo - cria condições políticas excelentes para que partidos bem organizados e com intensas preferências a respeito da ação internacional do Brasil alterem a política externa, no sentido de distanciá-la dos Estados Unidos (p. 175).
Amorim Neto, contudo, confessa a sua perplexidade ao perceber que, mesmo no período em que a esquerda esteve completamente ausente do poder no país (1964-1985), ainda assim se alargou a distância de posicionamentos entre Brasil e EUA. O autor sai-se então com uma hipótese auxiliar ad hoc: a proximidade substantiva das agendas diplomáticas da esquerda e da direita durante a ditadura dos militares era, possivelmente, o que levava à suspensão temporária da lógica esboçada no parágrafo anterior.
Outra importante lição de De Dutra a Lula diz respeito ao papel inexpressivo (estatisticamente não significativo) desempenhado pelo Poder Legislativo na definição da política exterior a ser implementada pelo Estado brasileiro. O autor, não obstante, vai além das evidências encontradas, enunciando ao cabo uma nova hipótese que, claramente, não encontra arrimo nos números apresentados: "[U]ma razão para ossupostos excessos da diplomacia praticada entre 2003 e 2010 pode encontrar-se na falta de freios domésticos à ação do Executivo. A ausência de freios ao Poder Executivo remete imediatamente ao papel do Congresso na política externa" (p. 176). A proposição é feita na forma condicional - ex hypothesi - porque, afinal, como adverte Amorim Neto, não é propósito do livro "posicionar-se a respeito de a política externa de Lula ter sido ou não excessivamente ideológica" (p. 176).
Temo discordar da linha interpretativa explorada no livro em tela. Em primeiro lugar, por embutir uma falácia de dispersão na sua tese principal. A dificuldade deriva do recorte temporal do trabalho (1945-2008), que induz a uma distorção logo na origem da análise. Explica-se: Eurico Gaspar Dutra foi, provavelmente, ao longo de toda a história republicana da política externa, o presidente que mais resolutamente alinhou o Brasil às posições estadunidenses. Mais até que Castelo Branco ou Collor de Mello. O seu mandato corresponde ao que o historiador Gerson Moura (1990) tratou como "o alinhamento sem recompensa", uma vez que, embora o Brasil tivesse apoiado os Estados Unidos na Segunda Guerra Mundial (a partir de 1943) e seguisse incondicionalmente associado àquele país (nos primeiros anos sob Dutra), pouco recebeu de concreto em contrapartida: não veio o assento permanente no Conselho de Segurança da ONU, tampouco um Plano Marshall para a América Latina. Dessa maneira, é natural que todos os sucessores de Dutra tenham se afastado de seu americanismo extremo e objetivamente malsucedido. Corresponde, por assim dizer, à normalização da curva da política externa.
Além disso, o recorte temporal de De Dutra a Lula peca por desprezar os antecedentes históricos do fenômeno do americanismo (e também do antiamericanismo) na PEB. Desconsidera, por exemplo, que o momento imediatamente anterior ao da adesão do Brasil ao bloco dos Aliados, na Segunda Guerra, com Vargas na presidência, acomodou lances explícitos de aproximação com a Alemanha nazista - e, por conseguinte, de afastamento em relação às posições diplomáticas dos EUA. Se retrocedermos até a geração que fundou a linhagem americanista da PEB, ainda assim notaremos que nem mesmo o Barão do Rio Branco, Joaquim Nabuco e Rui Barbosa deixaram de divergir dos americanos em repetidas e cruciais oportunidades (como, por exemplo, na II Conferência da Haia, de 1907). Em suma: na história da República, o governo Dutra é um outlier da política externa - e isso torna enviesada a narrativa construída por Amorim Neto.
Na exposição dos motivos para o aumento das divergências entre Brasil e EUA, a partir da segunda metade do século XX, postula-se que o crescimento econômico e demográfico brasileiro, associado à urbanização e aos investimentos militares, fez o país "se sentir em condições de, passo a passo, se distanciar daquele que havia sido seu grande aliado na primeira metade do século passado [XX]" (p. 171). Alternativamente, ofereço a seguinte narrativa: não foi o simples acúmulo de atributos de poder ("capacidades", segundo o jargão da escola realista das relações internacionais) que levou ao afastamento brasileiro das posições estadunidenses, mas a progressiva autonomização do país em relação ao resto do mundo - entendida, na tradição da PEB, como a capacidade de gerar a própria norma de conduta na política internacional - que trouxe, como epifenômeno, a diminuição da taxa de convergência de votos Brasil/EUA na Assembleia Geral da ONU. É sintomático que, ao tempo do Brasil Império, não se falasse em americanismo na política externa. A tradição associativa (ou "reboquista", na estranha tradução de Amorim Neto) no século XIX era o europeísmo. Porém, desde sempre, associativistas foram desafiados por autonomistas - independentemente dos rótulos que as duas correntes receberiam dos historiadores e cientistas políticos ao longo dos anos: agraristas vs. industrialistas, entreguistas vs. nacionalistas, liberais vs. desenvolvimentistas, interdependentistas vs. soberanistas, americanistas vs. globalistas etc..
O alinhamento diplomático aos EUA há que ser compreendido não como essência ou ideologia perene da PEB, mas como opção pragmática dos formuladores da inserção internacional do país, passível de reavaliação contínua, conforme o cálculo estratégico dos homens de Estado de um determinado momento histórico. Essa marcha pela autonomização do Brasil ajuda a entender, por exemplo, por que os governos de dois presidentes comprometidos com ideais de esquerda na política externa - Jânio Quadros e João Goulart, artífices da "Política Externa Independente" - puderam apresentar índices de convergência de voto com os Estados Unidos consistentemente mais altos do que dois reconhecidos americanistas da Nova República - Fernando Collor de Mello e Fernando Henrique Cardoso. Aparentemente, portanto, o processo de ascensão e autoafirmação do Brasil no cenário internacional, transformado em orientação de política externa, guarda pouca relação direta com o (anti)americanismo.
Ao sobrestimar o peso da variável independente "composição ministerial" na formulação da política externa brasileira, além de sugerir nexo causal entre a tibieza da atuação do Legislativo na PEB e a execução de uma política externa (supostamente) "ideológica", Amorim Neto parece desconsiderar outros dois aspectos importantes do processo: a) o histórico insulamento burocrático do Ministério das Relações Exteriores, agência governamental que, por várias décadas, exerceu um virtual monopólio sobre as etapas de formulação e implementação da política externa brasileira, sob a delegação, tácita ou expressa, do chefe do Poder Executivo (Cheibub, 1985)1; e b) a tendência mundial - e não apenas brasileira - de concentração de competências sobre os atos internacionais do Estado soberano nas mãos do chefe do Poder Executivo, seja no presidencialismo, seja no parlamentarismo (Milner, 1997), contrastando com o papel secundário do Poder Legislativo na produção da política externa, inclusive nos Estados Unidos da América (Jacobs e Page, 2005). A insistência do autor em enxergar "ideologia excessiva" e "preferências partidárias fortes" na atual condução da política externa, sem oferecer ao leitor o devido suporte factual, poderá, antes, constituir um caso de raciocínio normativamente guiado (wishful thinking).
Adicionalmente, cumpre apontar a fragilidade do organograma elaborado pelo autor sobre a produção da política externa brasileira entre 1946 e 2008 (vide figura 3.1, à página 81). Amorim Neto confunde-se ao conceder enorme centralidade às Forças Armadas no processo decisório da PEB, numa presumível emulação do sistema estadunidense de formulação da política exterior. Em um país constitucional e historicamente vinculado ao pacifismo como o Brasil, em que a gestão política das questões de defesa doméstica e internacional está a cargo de um Ministério da Defesa comandado por servidores civis desde a sua criação, em 1999, há nítida superestimação do componente militar. Ademais, parece artificial a busca por uma síntese do processo decisório brasileiro em política externa ao longo de período tão dilatado de tempo, que comporta tantas e tão profundas mudanças nas estruturas institucionais do Estado. O autor também demonstra desconhecimento da "horizontalização da PEB", isto é, do cada vez maior compartilhamento das competências internacionais do Estado brasileiro entre os ministérios da Esplanada. Como apontam estudos recentes, mais de 90% dos ministérios (ou órgãos com estatuto de ministério) em Brasília já contam com departamentos, diretorias ou coordenações de assuntos internacionais. Alguns ministérios, como o da Cultura ou o dos Esportes, mobilizam intensamente as suas estruturas de atuação internacional, até mesmo à revelia do Itamaraty (Badin e França, 2010; Faria, 2012). Confinar a produção contemporânea da PEB aos ministérios das Relações Exteriores e da Fazenda é anacronismo, para dizer o mínimo.
As dificuldades de De Dutra a Lula não se circunscrevem ao campo de estudos da Política Externa Brasileira. Há evidentes problemas no método escolhido (monitoramento dos votos de Brasil e EUA na Assembleia Geral das Nações Unidas) e na principal variável proxy do trabalho. Inicio por chamar a atenção para a estrutura organizacional das Nações Unidas (ONU). Esta compõe-se de cinco órgãos principais - Assembleia Geral, Conselho de Segurança, Conselho Econômico e Social, Conselho de Tutela e Secretariado - e de uma Corte Internacional de Justiça. Como corolário da diferenciação funcional das burocracias, cada órgão desempenha um papel específico e conta com uma composição diferente. O único desses órgãos com orientação universalista (tanto em termos geográficos quanto temáticos) é a Assembleia Geral (AG), a qual acolhe em suas plenárias todos os 193 países membros da ONU, em estrita igualdade de condições. Contudo, a Assembleia é incapaz de impor-se coercitivamente a seus membros. A prerrogativa de produzir normas imperativas é exclusiva do Conselho de Segurança (CS), órgão de acesso restrito, com participação limitada a 15 Estados membros da ONU - dos quais 5 são cativos2 e outros 10 são temporários.
E qual a consequência disso para a dinâmica da ONU? Apesar de a AG revestir-se de considerável legitimidade política, as suas decisões têm valor meramente simbólico. (Na mais otimista das hipóteses, juristas dirão tratar-se de soft law, isto é, de um conteúdo normativo com capacidade de influenciar os Estados, mas não de desencadear efeitos jurídicos propriamente ditos.) As decisões mais dramáticas a respeito da ordem internacional são, invariavelmente, tomadas no âmbito do Conselho de Segurança das Nações Unidas. Assim, embora a consulta à base de dados com os votos registrados desde 1945 por todos os países da ONU, acerca de uma ampla gama de temas, seja uma ação possível apenas no nível da Assembleia Geral, é lícito questionar: qual é o verdadeiro sentido atribuído pelos países a essas votações? Com que nível de seriedade e motivação esses debates são conduzidos? Efetivamente, o que está em jogo para os representantes dos Estados? Qual a mobilização de recursos de cada Estado para tais discussões?
Em certo sentido, é argumentável ser este o próprio espírito dos que conceberam a Carta da ONU: contrabalançar o idealismo da representação política universal (Assembleia) com o realismo militarizado das potências (Conselho). Uma linha de ação diplomática plausível - e já praticada anteriormente pelo Brasil - é fazer avançar determinadas posições na Assembleia Geral, mas não no Conselho de Segurança. O "pragmatismo responsável" - modo como ficou conhecida a política externa sob Médici e Geisel - conseguiu equilibrar-se entre as concessões ao terceiro-mundismo na AG e a não confrontação com as potências do CS (entre 1968 e 1988, o Brasil ausentou-se do fórum de segurança). Os Estados Unidos, na sua história diplomática recente, também expressaram diferentes atitudes e níveis de engajamento em relação às Nações Unidas. Depois de desfrutarem, entre 1945 e 1960, de hegemonia no interior da instituição, viram-se ameaçados pela independência política dos "satélites" soviéticos - ex-colônias europeias situadas na África, na Ásia e no Oriente Próximo. Michael Dunne notou que, a partir de então, "os americanos ficaram desiludidos com a ONU, onde o bloco 'afro-asiático' parecia representar um Terceiro Mundo pouco confiável politicamente e muito demandante economicamente, e os latino-americanos não mais eram dependentes [dos EUA]" (Dunne apud Lopes, 2012, p. 198). Japão e Europa Ocidental, elementos-chave da esfera de influência americana, passaram a discordar dos Estados Unidos em questões pontuais, no âmbito da ONU. Em 1971, a República Popular de China ingressou na organização, assumindo o lugar da representação de Formosa (Taiwan) no Conselho de Segurança. Crescentemente, como descreveu o embaixador Daniel Patrick Moynihan, a ONU se tornava "um lugar perigoso para os americanos". Assim sendo, por décadas a fio, os Estados Unidos viraram as costas para a instituição que eles não mais conseguiam controlar, até que, com o fim da Guerra Fria, ensaiassem um retorno triunfante (cf. Lopes, 2012).
Outro problema que distorce a análise empreendida por Amorim Neto é a reportada tendência de que temas comuns, debatidos originalmente na Assembleia, estejam migrando nos últimos tempos para o Conselho de Segurança. Hoje em dia, são recorrentes as deliberações no CS sobre tópicos de "segurança humana", "segurança alimentar", "segurança ambiental", "segurança energética" etc. - configurando o que se tem chamado de "securitização da agenda internacional". Evidentemente, isso também reflete a percepção dos atores de que o órgão da ONU que realmente importa é o Conselho de Segurança; o resto é "talk shop". Donde o referido deslocamento do eixo político da organização. Finalmente, é necessário ter em mente que, por toda a história da Organização das Nações Unidas, coexistiram dois registros - o formal e o informal. Isso é válido para praticamente toda organização política, não constituindo excepcionalidade da ONU, não fosse a constatação de, nos últimos 25 anos, ter-se dado a progressiva substituição da técnica de construção das maiorias (majoritarismo) pela de construção de consensos entre os Estados membros. Tal tendência é particularmente saliente no Conselho de Segurança, resultando na baixa utilização do expediente do veto a partir da década de 1990. Parte das divergências e convergências substantivas entre os países não chega sequer a se expressar formalmente, por meio do voto, dado que, de maneira informal, as diferenças são acomodadas e as contradições mais estridentes são dissipadas. Para além disso, as estruturas paralelas aos fóruns da ONU, tais como as coalizões intergovernamentais, interferem nos votos proferidos pelos Estados, pois induzem ao estabelecimento de posições de bloco e padrões de votação, aplainando (ou magnificando) diferenças entre países (Kahler, 1992; Prantl, 2005). Lamentavelmente, essa complexidade das votações não está problematizada em De Dutra a Lula.
Amorim Neto, enfim, encerra o seu texto com um eloquente parágrafo de disclaimer, no qual alega que o modelo de análise desenvolvido no livro é datado historicamente. No entendimento do autor, os seus supostos são desafiados pela "universalização das relações internacionais do Brasil", por sua "ascensão à condição de ator global", pela "emergência da China como principal parceiro comercial do país", pelo "declínio imperial estadunidense desde 2003" e ainda pela "multiplicação de atores envolvidos no processo decisório doméstico [da PEB]" (p. 177). É justo. E talvez fosse o caso de perguntar, mediante todas as ressalvas feitas, se De Dutra a Lula constituiria, ainda assim, uma leitura de referência para iniciantes e iniciados em política externa. Naturalmente, é cedo para responder convictamente à questão, ou para estimar o impacto do livro sobre a comunidade pensante das relações internacionais do Brasil. O tempo dimensionará a importância desse esforço inaugural.
Os reparos que lhe fazemos nesta resenha não devem, em absoluto, diminuir o tamanho da ousadia analítica do seu autor. Tampouco devem ser lidos como um manifesto antiempirismo e, muito menos, conduzir o leitor à conclusão de que a chegada dos quantitativistas ao campo de estudos da Política Externa Brasileira é evento indesejável e perigoso. Definitivamente, não se trata disso. O avanço do estado da arte pede mais e novas aproximações do objeto, preferencialmente com orientação empírica - sejam estudos de caso, sejam estudos comparativos. Todavia, resta patente, como saldo do empreendimento acadêmico de Amorim Neto, a necessidade de refinamentos conceituais e teóricos. Só um melhor equilíbrio entre as velhas e as novas abordagens da PEB poderá conduzir a um porto seguro.

Referências
BADIN, Michelle Sanchez & FRANÇA, Cassio (2010). A inserção internacional do poder executivo federal brasileiro. São Paulo: Fundação Friedrich Ebert.         [ Links ]
CHEIBUB, Zairo (1985). "Diplomacia e construção institucional: o Itamaraty em uma perspectiva histórica",Dados, v. 28, n. 1, p. 113-131.         [ Links ]
FARIA, Carlos Aurélio Pimenta de (2012). "O Itamaraty e a política externa brasileira: do insulamento à busca de coordenação dos atores governamentais e de cooperação com os agentes societários", Contexto Internacional, v. 34, n.1, p. 311-355.         [ Links ]
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FOLHA DE S.PAULO (2012). "'De Dutra a Lula' investiga meio século de diplomacia brasileira" (texto inserido na internet em 02.02.2012). Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/livrariadafolha/1043085-de-dutra-a-lula-investiga-meio-seculo-de-diplomacia-brasileira.shtml>. Acessado em 25 de mar. de 2013.         [ Links ]
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MEARSHEIMER, John & WALT, Stephen (2013). "Leaving theory behind: why hypothesis testing has become bad for IR". Harvard Kennedy School (HKS) Faculty Research Working Paper Series, RW 13-001. Disponível em: <http://web.hks.harvard.edu/publications/getFile.aspx?Id=902>. Acessado em 16 jan. 2013.         [ Links ]
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Recebida em 19 de janeiro de 2013
Aprovada em 9 de março de 2013

1 Insulamento que apenas recentemente começou a ser revertido. Ver Faria (2012). 2 Os vencedores da II Guerra Mundial: Estados Unidos, Reino Unido, França, República Popular da China e Federação Russa.