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segunda-feira, 18 de dezembro de 2023

A segunda morte do Barão - Ricardo Seitenfus

A segunda morte do Barão

Ricardo Seitenfus

Ao não conceder a devida importância à principal lição prodigada pelo Barão do Rio Branco – o estrito e intransigente respeito às decisões jurídicas que definiram as fronteiras na América do Sul – o atual governo brasileiro, além de cometer grave erro de apreciação sobre a suposta celeuma de Essequibo, abre uma fresta para possíveis futuras contestações, colocando em risco nossa soberania territorial.

Apoiado no equilíbrio do binômio Diplomacia e Direito – o primeiro como meio e o segundo como fim – o Barão moldou e esculpiu, ao final do século XIX e início do século passado, as fronteiras nacionais. Seu extraordinário labor resultou em ganhos de 900.000 km2, equivalente a mais de 10% do atual território brasileiro.

Governar é, antes de mais nada, prever. Brasília age de maneira imprevidente concedendo demasiada importância aos meios diplomáticos em detrimento dos fundamentos jurídicos. No caso de Essequibo, quais seriam estes últimos? Antes de mais nada, o respeito à arbitragem de 1899 que concedeu o território ao Reino Unido. Inclusive porque em 1904 o Brasil acatou, embora desfavorável, o Laudo Arbitral no litígio de Pirara, parte integrante da mesma disputa territorial.

Chegamos ao ponto de considerar a consulta aos eleitores patrocinada por Nicolás Maduro Moros como sendo uma questão interna, do domínio reservado do Estado venezuelano! Ora, este suposto “referendo”, além de um exemplo grotesco das singularidades dos ditadores sul-americanos, bem descritos por Gabriel Garcia Márquez, é uma afronta ao Direito dos Tratados. A propósito, essa consulta abriga um aspecto ubuesco na medida em que quem deveria ser consultado são os habitantes de Essequibo ou os guianeses e não os venezuelanos.

O segundo documento jurídico a ser respeitado em sua integralidade é o Acordo de Genebra de 1966 firmado entre Londres e Caracas cuja validade foi reconhecida por Georgetown por ocasião de sua independência. No afã de se libertar de sua colônia, o Reino Unido aceitou firmar o documento escancarando a porta para uma decisão judicial distinta aquela estabelecida em 1899. Contudo, ficou também definido que será única e exclusivamente sob os auspícios do Secretário Geral da ONU que o futuro de Essequibo será decidido.

Ao contrário da resposta dos eleitores consultados – e manipulados – por Nicolás Maduro Moros, António Guterres indicou que a Corte Internacional de Justiça deva pronunciar-se sobre o caso. Esta deveria ser a inarredável posição brasileira.

Falecido em 10 de fevereiro de 1912, uma semana antes dos festejos carnavalescos, o carioca José Maria da Silva Paranhos Júnior, foi pranteado pela nação inteira. A sociedade brasileira o eleva à ícone e à mito. Raramente em outras paragens um diplomata alcança esta simbologia.

Ciente do alcance do funesto acontecimento, o Marechal (Marechá) Hermes da Fonseca decreta luto oficial no Rio de Janeiro e adia o Carnaval para o dia 6 de abril. Carnavalesco, o Barão deve ter dado boas gargalhadas quando viu que os cariocas não respeitaram o luto e saíram às ruas para divertirem-se sob a batuta do Rei Momo. Em abril, graças ao Barão, haverá de maneira inédita, um segundo Carnaval. Uma marchinha assim cantava:

 “Com a morte do Barão 

Tivemos dois Carnavá

Ai, que bom! Ai, que gostoso! 

Se morresse o Marechá!”

 São vívidos o anedotário, as lendas e o folclore em torno do Barão. Contudo, sua maior obra é ter legado ao país um território continental definido através do Direito. Devemos saudar a segunda micareta de abril de 1912 e ao mesmo tempo repudiar sua possível segunda morte.

Ricardo Seitenfus, Doutor em Relações Internacionais pela Universidade de Genebra, autor de vários livros, foi representante da OEA no Haiti (2009-2011) e na Nicarágua (2011-2013).

       

sábado, 9 de dezembro de 2023

O baile do motorista (quem é Maduro, o ditador de um país falido) - Ricardo Seitenfus (O Globo)

 O baile do motorista

Maduro infringirá todas as regras diplomáticas de maneira recorrente, baseado na premissa do ‘anti-imperialismo’

Por Ricardo Seitenfus

0O Globo, 9/12/2023 00h05  

 

Embora Nicolás Maduro Moros já tenha demonstrado suas habilidades nestes últimos dez anos durante os quais se mantém, contra ventos e marés, à frente da Venezuela, foi nos últimos dias que se transformou em vedete de salão do baile internacional. Ele escolhe a música, e todos devem dançar segundo seu tempo e ritmo. Não se trata do sofisticado pas de deux. Mas de marchas patrióticas em que a ausência de qualidade musical é compensada pelo excesso de ruído militar. Calejados diplomatas, príncipes, presidentes e assemelhados são meros assistentes de suas travessuras e malabarismos.

Em razão de sua impressionante envergadura física, foi guarda-costas do político chavista e jornalista José Vicente Rangel. Essa corpulência, quando confrontada com seus colegas estrangeiros, é visualmente chocante. Ao contrário de outros políticos, nenhuma preocupação em enganar sobre sua estatura física. Esta deve provocar um efeito amedrontador e dissuasivo nos interlocutores.

A outra experiência formadora provém de uma atividade trivial que obriga seus profissionais à constante atenção: motorista de ônibus urbano de uma empresa de transporte coletivo de Caracas. Foi no caótico trânsito da capital venezuelana que o jovem Nicolás aprendeu a driblar os obstáculos e a fazer bailar seus adversários.

Não procurem estudos, escritos, reflexões. Eles não existem. Logo o motorista Nicolás segue escrupulosamente a cartilha sindical que o conduz ao mundo da política.

Fiel entre os fiéis de Hugo Chávez, embora monoglota, ele foi guindado em 2006 ao Ministério das Relações Exteriores. Escancara-se o que lhe faltava: a tarimba do mundo. Neste, o agora maduro Nicolás infringirá todas as regras diplomáticas de maneira recorrente baseado na premissa dicotômica, simplista portanto eficaz, do “anti-imperialismo”.

Escolhido por um Chávez agonizante e apoiado por seus parceiros estrangeiros mais relevantes, como Brasil e Cuba, ele conquistou o poder supremo e nele se mantém.

O risco de perdê-lo no ano vindouro o obriga a uma extraordinária jogada, digna dos maiores mestres do xadrez internacional. Sem estampidos, ausente o ruído de botas e munido unicamente da ousadia de seu gogó, Maduro apropria- se de dois terços do território de seu vizinho. A quem, um dos países mais pobres do hemisfério, acusa de “imperialista”.

Transformado o salão de baile em picadeiro circense, o mundo olha embasbacado, entre surpresa e dúbios protestos. Alguns, incrédulos e pouco à vontade, tentam esconder sua admiração por essa obra de arte da política internacional.

Para os demais, considerados os palhaços desse circo, diante das diabruras maduristas restam unicamente os olhos para chorar.

 

*Ricardo Seitenfus, professor universitário e autor de livros sobre relações e organizações internacionais, foi representante da OEA no Haiti (2009-2011) e na Nicarágua (2011-2013)

 

domingo, 3 de dezembro de 2023

O conflito Venezuela-Guiana, o Direito Internacional e a diplomacia do Brasil - Ricardo Seitenfus

O conflito Venezuela-Guiana, o Direito Internacional e a diplomacia do Brasil

Ricardo Seitenfus

PRA: Ricardo Seitenfus, historiador aposentado da Universidade Federal de Santa Maria (RS), me envia suas observações sobre o conflito nas fronteiras do Brasil, prestadas à BBC Brasil e ao O Globo, mas transcritas apenas parcialmente: 


"A consulta aos eleitores venezuelanos tem dois objetivos internos. Por um lado demonstrar uma união nacional por um Essequibo venezuelano e por outro, que esta união seja personalizada pela figura de Maduro.
Do ponto de vista externo se trata de demonstrar que Caracas não aceita o histórico statu quo e indica que outras ações virão.
Maduro pretende se perpetuar no poder e como está correndo riscos com uma possível derrota em 2024, tenta reverter a situação em seu favor identificando um inimigo externo. Estratégia conhecida que foi utilizada, por exemplo, pelos generais argentinos quando decidiram invadir as Malvinas/Falkland.
O que Maduro fará com uma vitória que se apresenta como acachapante ? A propósito, essa consulta abriga um aspecto ubuesco na medida em que quem deveria ser consultado são os habitantes de Essequibo ou os guianeses e não os venezuelanos. Uma demonstração da singularidade das ditaduras latino-americanas e de seus potentados tão bem descritos por Gabriel Garcia Márquez.
Caso Maduro decida colocar em marcha a vontade venezuelana que sairá da consulta ele tem 2 caminhos. Por um lado prosseguir o diálogo político sob os auspícios das Nações Unidas como previsto no Acordo de Genebra de 1966. Penso que Maduro terá dificuldades de desconhecer o resultado da consulta e portanto ele deverá inovar. Como? Esse e o segundo caminho: uma operação militar de invasão do Essequibo.
Por evidente será um passeio militar. Contudo serão inúmeras as reações negativas internacionais. Os Estados Unidos - por razões estratégicas, econômicas e jurídicas - não permanecerão inertes. Assim como o Reino Unido que possui laços, afinidades e responsabilidades históricas com a Guyana.
Enfim, a posição brasileira deve ser de rechaço a qualquer operação violenta. Aqui devemos lembrar ao Governo atual que embora ele possa ter simpatias ou antipatias ideológicas, estamos frente a possibilidade de ruptura de princípios jurídicos, diplomáticos e históricos - o respeito aos tratados fronteiriços - e que nada e ninguém pode colocar em questão. 
Seria abrir a Caixa de Pandora para aventuras que a região e muito especialmente o Brasil sempre souberam evitar.
Quanto melhor for o resultado para Maduro pior será para ele no plano internacional pois ele será obrigado a agir. Ora a ação se for além de uma provável pressão sobre a Guiana, provocará reações contrárias de muitos governos. A começar pelos USA, GB, Colômbia e Brasil.
Está previsto no Acordo de Genebra de 1966 (Reino Unido, Venezuela e Guiana) que serão as Nações Unidas através da CIJ a resolver o suposto litígio.
Portanto a Venezuela NÃO pode não reconhecer a jurisdição da Corte.
Ela acatou a jurisdição em 1966 e agora em razão de uma possível derrota jurídica não respeitar a Corte.
A decisão da CIJ não é simbólica! Ela será o sustentáculo do Direito para a ação política e talvez caso necessário militar dos países aliados da Guiana, leia-se USA e Reino Unido (2 membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU).

Duas observações finais:
A. O Brasil não deveria somente propugnar uma solução pacífica mas também denunciar a ilegalidade da « consulta » deste domingo.
B. Caso insista em uma solução de força a margem do Direito, Nicolas Maduro poderá vir a ser o futuro Leopoldo Galtieri o ditador militar argentino que não somente perdeu os anéis - as Malvinas/Falkland - mas também perdeu os dedos - o poder."

domingo, 29 de outubro de 2023

Poderes do Conselho de Segurança da ONU refletem precariedade do sistema internacional - Ricardo Seitenfus (FSP)

Poderes do Conselho de Segurança da ONU refletem precariedade do sistema internacional

Hipocrisia e ignorância fazem do órgão o mais importante e o menos eficiente das Nações Unidas
FOLHA DE S.PAULO
25.out.2023
Ricardo Seitenfus
Ex-representante especial da OEA no Haiti (2009-2011) e na Nicarágua (2011-2013), professor aposentado da Universidade Federal de Santa Maria (RS) e doutor em relações internacionais pela Universidade de Genebra e autor do livro, entre outros, "Organizações Internacionais".

Paralelamente aos horrores reportados do atual conflito Israel-Hamas, um enfrentamento político-diplomático dilacera o Conselho de Segurança das Nações Unidas. Sob a presidência brasileira, o enfrentamento entre Moscou e Washington faz reviver os momentos mais sombrios da Guerra Fria com a utilização do veto que impede uma posição comum frente aos ataques do Hamas de 7 de outubro e à resposta israelense na Faixa de Gaza.
Apesar de soarem vozes indignadas denunciando sua suposta insensibilidade e sua inconteste paralisia, o Conselho de Segurança cumpriu rigorosamente sua principal função: não ser instrumentalizado para contrariar interesses que seus membros permanentes considerem essenciais.
A ingenuidade de alguns, a hipocrisia de outros e a ignorância da maioria fazem com que o Conselho de Segurança —encarregado da manutenção paz segundo a Carta de São Francisco— seja ao mesmo tempo percebido como sendo o mais importante e o menos eficiente dos órgãos do sistema das Nações Unidas.
Tal situação não é obra do acaso. Ao contrário. Ela foi longamente amadurecida pelos que viriam a ser os vencedores da Segunda Guerra Mundial.
Em 1º de janeiro de 1942, após a entrada efetiva na guerra dos Estados Unidos e da União Soviética, a Conferência de Washington, reunindo 26 países, anuncia, pela primeira vez, a necessidade de uma solidariedade dessas "Nações", a partir daquele momento "unidas", para fazer frente ao Eixo.
Na Conferência de Dumbarton Oaks (agosto-outubro de 1944), China, Estados Unidos, Reino Unido e União Soviética definem os contornos da organização política das relações internacionais do pós-guerra. Tornava-se evidente que o novo organismo somente seria eficaz caso contasse com a aprovação das grandes potências. No entanto, ele não poderia restringir-se tão somente aos grandes Estados
Superada a questão de sua universalidade, as potências vencedoras definiram o modelo de tomada de decisões no Conselho de Segurança. Havia o risco de serem compelidas a acatar iniciativas coletivas para a manutenção da paz, mesmo contra a sua vontade expressa, caso as decisões fossem tomadas baseando-se em qualquer cálculo majoritário ou proporcional. Não bastava, então, fazer parte de um órgão decisório restrito. Era necessário que individualmente as potências pudessem controlar o rumo de suas decisões.
A solução é encontrada na Conferência de Ialta (fevereiro de 1945). Trata-se de diferenciar os países-membros do Conselho em permanentes e transitórios. Qualquer decisão emanada deste órgão não deveria sofrer oposição de um membro permanente. A adoção da regra da unanimidade equivale ao poder de veto. Trata-se de um seguro mútuo que evite confrontações diretas entre eles. Escancara-se o risco de ineficácia e paralisia como demonstra a crise atual.
Reina a confusão igualmente no que diz respeito ao campo da aplicabilidade do poder de veto. Este deveria restringir-se às questões de segurança em seu senso estrito. Contudo, o Conselho decide manter total autonomia para decidir caso a caso. Finalmente, não foi possível fazer com que as grandes potências aceitassem, de forma clara e indiscutível, que nos conflitos em que eram partes interessadas, elas devessem abster-se de utilizar o direito de veto.
Após uma primeira fase de importante produção, os trabalhos do Conselho ingressam num longo período no qual demonstram marcante incapacidade operacional (1948-1989). A média anual de resoluções adotadas durante este período não alcança duas dezenas. No período subsequente essa média é multiplicada por três, alcançando picos de quase uma centena de resoluções anuais. A esperança de um sistema mais eficaz ruiu com a invasão da Ucrânia pela Rússia e pelo conflito Israel-Hamas.
Estados Unidos, França e Reino Unido ajustam sua posição em reuniões prévias, chamadas de instância P3, que sintetizam a posição ocidental. Posteriormente os membros permanentes reúnem-se no que se convencionou chamar de instância P5. Há, portanto, duas rodadas, que podem resultar em bloqueio da atuação coletiva antes mesmo que se chegue à reunião do organismo. Este procedimento indica que há temas e questões que não alcançam o CS por absoluta falta de consenso nas instâncias P3 ou P5.
Facilitado pela prática de inexistir justificativa, o veto foi utilizado 295 vezes durante o período 1946-2022, sendo que Moscou o utilizou 143 vezes, Estados Unidos, 86, Reino Unido, 30, China e França 18 cada uma.
A composição, atributos e poderes do Conselho de Segurança refletem o primitivismo e a precariedade do sistema internacional. Todavia, não esqueçamos que sua inação dificultou o caminho que leva às portas do inferno nuclear.

sexta-feira, 6 de outubro de 2023

O Haiti, uma vez mais: crises recorrentes devem servir de alerta - Ricardo Seitenfus (Brasil de Fato)

O Haiti é um Estado falido, em todos os planos. Acontece...

O Haiti, uma vez mais: crises recorrentes devem servir de alerta

O espoucar de foguetes à notícia da adoção da Resolução deve ser temperado pois o mais difícil está por vir

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
  

Após meses de tergiversações o Conselho de Segurança das Nações Unidas aprovou, por treze votos favoráveis e duas abstenções (China e Rússia), no início desta semana, uma Resolução autorizando o envio de uma missão multinacional de apoio à segurança no Haiti.

Apesar do ruído da grande imprensa internacional, dos políticos e dos diplomatas, a decisão não constitui novidade alguma pois o Haiti se tornou, para sua infelicidade, desde o início dos anos 1990, um dos principais clientes do Conselho de Segurança. Desde então nada menos de dez « Missões » da ONU foram enviadas ao país. Com distintos propósitos e instrumentos de ação.

A existência de um « rosário missioneiro » como no caso haitiano, indica e tende a comprovar que o aporte destas missões foi nulo. Mal pensadas e conduzidas, seus reiterados fracassos levam à necessidade de retornar periodicamente ao Caribe. Exatamente o que estáo correndo atualmente.

O teor da Resolução indica que a missão reunirá componentes policial e militar de países voluntários. Seu financiamento idem. Se trata de uma original e pouco comum missão « não-onusiana ». Embora autorizada pelo Conselho de Segurança, a responsabilidade será de um grupo de países, ainda indefinidos, capitaneados pelo Quênia.

Paralelamente há indicação sobre a necessidade de um acerto político entre os haitianos. Para tanto o Conselho de Segurança confia nos esforços diplomáticos e de mediação da Comunidade do Caribe  (Caricom), da qual o Haiti é membro.

Sempre é aconselhável observar e analisar o conteúdo, o contexto e a semântica das Resoluções do Conselho de Segurança. Todavia um texto é o que ele diz e também o que ele cala. Neste sentido há silêncios que falam por si. O mais importante deles é a subjacente crítica à ação da Missão das Nações Unidas para Estabilização no Haiti (Minustah) (2004-2017) cujo braço armado foi permanentemente comandado por generais brasileiros.os sucessivos governos brasileiros, o fato é que sob nosso comando, militares à serviço da Minustah e sob a bandeira das Nações Unidas, levaram ao Haiti, pela primeira vez em outubro de 2010, o vírus da cólera que infectou 800 mil pessoas e vitimou 30 mil, sobretudo camponeses da região rizícola de Artibonite, na região central do Haiti. Ainda hoje, a epidemia provoca mortes.

A máquina política, diplomática, burocrática, militar e jurídica das Nações Unidas tentou acobertar o escândalo. A presente Resolução do Conselho de Segurança ao aprovar uma missão « nao-onusiana » condena a todos, inclusive o poderoso Departamento de Operações de Paz.

Um segundo silêncio diz respeito à Organização dos Estados Americanos. Sequer mencionada, a OEA paga tributo à atuação pífia de seu Secretário Geral e aos equívocos decorrentes de seu alinhamento automático à posições equivocadas e frontalmente contrárias ao seu protagonismo em crises anteriores.

O espoucar de foguetes à notícia da adoção da Resolução deve ser temperado pois o mais difícil está por vir : fazer transitar seus propósitos para o terreno dos fatos. As recorrentes crises haitianas devem servir de alerta. Não é por acaso que o país recebeu a alcunha de « cemitério de projetos ». Considero que a antiga « Pérola das Antilhas » como o país das ilusões e inocências perdidas. Aconselho à todos cautela, prudência e caldo de galinha.

Ricardo Seitenfus foi Representante da OEA no Haiti (2009-2011) e autor de Haiti: dilemas e fracassos
internacionais
 e A ONU e epidemia de cólera no Haiti.

segunda-feira, 22 de agosto de 2022

Igor Kipman, verdadeiro amigo do Haiti - Ricardo Seitenfus

 IGOR KIPMAN, VERDADEIRO AMIGO DO HAITI

Ricardo Seitenfus

No início de maio, faleceu, aos 71 anos, em sua cidade natal, Curitiba, Igor Kipman, embaixador do Brasil no Haiti de 2008 a 2012. Poucos no Haiti o conhecem bem. A razão é simples: ao contrário dos colegas representantes do Tridente Imperial, Igor Kipman era avesso a sermões e pressões, não usava a imprensa para sua propaganda pessoal ou de seu país, trabalhava discretamente e acima de tudo tinha um respeito sem limites pelo Haiti e seu povo. Conselheiro do Ministério das Relações Exteriores do Brasil e então responsável pelo Departamento de América Central e Caribe, em 2007, Igor passou em revista, com o chanceler, os nomes passíveis de serem designados Embaixadores no Haiti. Depois de estudar a lista, o Ministro lhe perguntou: “E por que não o seu nome não está na lista?”. 
Próximo ao fim de sua trajetória profissional, caso não se tornasse embaixador, Igor deveria deixar a carreira. Apesar disso, não se candidatou ao posto. Só o conseguiu por decisão do ministro Amorim. Isso diz muito sobre a personalidade de Igor. É com essa mesma contenção pessoal que ele comandará uma verdadeira revolução nas relações haitiano-brasileiras. 
Durante seus quatro anos em Porto Príncipe, Igor organizou três visitas presidenciais ao Haiti, algo inédito na história da diplomacia brasileira! Além do ofício delicado e constante entre a diplomacia tradicional e a relação com a importante participação militar brasileira na MINUSTAH, incluindo o alto comando, Igor também atuou em outros três níveis. O primeiro diz respeito às suas obras de caridade. Incentivado pela determinação de sua esposa, Roseana Aben-Athar Kipman, esse casal extraordinário é o oposto da imagem que costumamos ter dos diplomatas. Roseana, pequena, parecendo muito mais jovem do que a avó que era na realidade, simpática, sorridente, transbordava de energia. Ela simbolizou para mim a verdadeira ajuda humanitária. Mergulhou resolutamente nesse Haiti que me assustava, tinha responsabilidades que a princípio me escapavam; seus longos dias foram dedicados a ajudar orfanatos, creches, escolas e famílias inteiras. Ela trabalhou com aquelas que chamava de “minhas irmãs”: freiras brasileiras encarregadas de orfanatos em Cité Soleil, Jérémie, Léon. Aonde quer que ela fosse, estava cercada por soldados que deveriam mantê-la segura, mas que, na verdade, ajudavam-na a carregar sacos de mantimentos, medicamentos, roupas e materiais escolares. 
Uma vez por ano, o casal alugava um Tap-Tap às suas expensas, lotava-o de órfãos e os levava para a residência oficial. Cada criança era objeto de especial atenção e acolhida com um beijo da embaixadora. Jogos, petiscos, bebidas, música, dança e mergulhos na piscina ditavam o ritmo de uma festa infantil que seria normal em outras circunstâncias, mas que representava para aquelas crianças um evento inesquecível e único. O segundo foi a coordenação da assistência humanitária e de desenvolvimento. Para evitar duplicidade de esforços, mais de trinta projetos de cooperação técnica (nas áreas de saúde, agricultura, justiça, entre outras) ficavam sob o olhar atento de Igor e de sua equipe. Além disso, ganhou corpo a cooperação triangular com o Canadá (saúde) e a Espanha (reflorestamento) e a cooperação Sul/Sul com Cuba e Venezuela. 
Com o terremoto de janeiro de 2010, a cooperação para o desenvolvimento integral se transformou em ajuda de emergência. Também mudou o papel político de atores internacionais, incluindo o do Brasil e de seu embaixador. Essa diplomacia estritamente política era a terceira atividade importante de Igor Kipman, sobre a qual seguem algumas observações. Até a crise política do final de 2010, Igor desempenhou um papel fundamental no Core Group1 . Quando o resultado das 1 Grupo composto por representantes da Argentina, Brasil, Canadá, Chile, Espanha, Estados Unidos, França, Nações Unidas, Organização dos Estados Americanos e União Europeia, encarregado da coordenação internacional no Haiti. 

REVISTA DA ADB | 31 MEMÓRIA 32 |
 eleições para o Senado em fins de 2009 modificou sua composição, adotou-se uma moção de censura contra a primeira-ministra Michèle Pierre-Louis. Embora fosse bastante natural, em regime parlamentarista, uma mudança de governo quando surge uma nova maioria, a Comunidade Internacional protestou e se opôs a que tal regra fosse aplicada ao Haiti: madame Pierre-Louis era apreciada pela Comunidade Internacional e deveria permanecer em seu posto. O Core Group preparou uma nota de apoio, escrita pelo Representante da União Europeia (o italiano Francesco Gosetti Di Sturmeck) e aprovada pelos Estados Unidos, com o objetivo de protestar contra a moção de censura. Antes que a nota se tornasse pública, tentei mostrar a meus colegas (a maioria deles oriundos de países com regimes parlamentaristas) que não poderia haver dois pesos e duas medidas. 
Em outras palavras, que uma situação considerada normal em seus países fosse tratada como um sacrilégio no Haiti. Finalmente, o governo haitiano teria um novo primeiro-ministro porque Kipman se dissociaria da nota e impediria assim uma nova ingerência da Comunidade Internacional. Francesco, após ouvi-lo, disse simplesmente encerrando a assunto: “Touché! Coulé!”2 . Quando, em 28 de novembro de 2010, a Comunidade Internacional, em reunião ampliada do Core Group, cujo porta-voz era Edmond Mulet, “convidou” o presidente René Préval a deixar o Palácio Nacional e partir para o exílio, fiz objeções nestes termos: “Foi assinado nas Américas, em 2001, um documento sob o título de Carta Democrática Interamericana. Esta Carta estipula que qualquer modificação, fora dos preceitos constitucionais, do mandato de um Presidente eleito democraticamente, deve ser considerada como um putsch”. 
No entanto, falando apenas em meu nome pessoal porque neste conclave golpista a OEA estava representada por seu secretário adjunto de triste memória, vindo especialmente de Washington, tive que encontrar aliados. Então, olhando na direção onde estava o embaixador Kipman, perguntei a ele: “Não conheço a posição do Brasil”. Ao que ele respondeu imediatamente: “O Brasil tem a mesma interpretação”. 

Para meu grande alívio, eu não estava só e o golpe fracassou. Fizemos isso porque, aos nossos olhos, estávamos prestes a cometer uma ignomínia moral e um erro político grosseiro. Com a participação ativa da Comunidade Internacional, iríamos mais uma vez empurrar o Haiti para o precipício evocado por Luigi Einaudi durante a crise de fevereiro de 2004. Após a publicação, pela Comissão Eleitoral Permanente (CEP), dos resultados do primeiro turno das eleições em sete de dezembro de 2010, Porto Príncipe totalmente bloqueada, recebi um convite para participar da reunião do Core Group; Essa reunião foi solicitada por Préval no local que servia de escritório de Mulet, dentro da Base Logística da MINUSTAH, próxima ao aeroporto. Luís Guilherme Nascentes, Igor Kipman e eu chegamos ao Boulevard Delmas e fomos barrados por uma barricada que bloqueava completamente o caminho. Nesse instante soa o celular de Igor. Era Mulet informando que nenhum membro do Core Group podia se mover e que Préval tampouco. A reunião foi suspensa. Demos meia-volta. No caminho de retorno, Kipman me disse: “Já que Préval não pode sair de casa, por que não vamos vê-lo? Se o Presidente da República quer nos ver, devemos fazer tudo o que pudermos para satisfazê-lo.” Aplaudi a decisão e imediatamente telefonei para o Primeiroministro Jean-Max Bellerive. Ele garantiu que Préval nos receberia e que ele próprio participaria da reunião. Então tomamos a direção de Kenscoff. 

Pouco antes de chegarmos a um cruzamento, novamente uma barricada impedia a passagem. Além dos civis, havia também policiais. Os fuzileiros navais brasileiros desembarcaram com suas armas e, com a ajuda da polícia, removeram os obstáculos. 
De repente, ouvi o sibilar de balas ricocheteando no metal. Nosso veículo fora atingido. Kipman manteve a calma e disse: “Não precisa se preocupar”. Um policial haitiano armado se afastou do grupo e ultrapassou nosso veículo. Ele subiu no barranco ao lado da estrada e disparou várias vezes. O tiroteio cessou. Retomamos nossa viagem até a residência de Préval. Concordamos em formar um Grupo de Amigos para mediar a crise. Sem que eu soubesse (tampouco Kipman), no dia anterior, em Washington, o Core Group local também havia sugerido a criação de um Grupo de Amigos similar ao modelo proposto por Préval. 

No entanto, o encontro de que acabara de participar – praticamente simultâneo – com o embaixador brasileiro, o presidente e o primeiro-ministro haitiano rendera uma proposta semelhante. Foi o suficiente para os Estados Unidos e Mulet: interpretaram como uma manobra brasileira para garantir a permanência de Préval na presidência e, portanto, decidiram sabotá-la. Durante a décima reunião na sede da OEA em Washington, os Estados Unidos recuaram e rejeitaram o Grupo de Amigos. Com essa reviravolta, não foi mais possível falar em mediação. Na França, Lionel Jospin, sondado a fazer parte daquela proposta, fez consulta ao Quai d’Orsay. Não só a França se opôs a ela, como também proibiu a possibilidade de financiamento da União Europeia ao Clube de Madri para tal tarefa. Mais uma vez, o Clube de Madri mostrou sua verdadeira face: uma simples ferramenta para instrumentalizar a política externa de alguns países da Europa Ocidental. Ricardo Seitenfus foi representante especial da OEA no Haiti entre 2009-2011. É autor, entre outros livros, de “Les Nations Unies et le choléra en Haïti: coupables mais non responsables?” e de “L’échec de l’aide internationale à Haïti: dilemmes et égarements”, ambos publicados pela C3 Éditions, disponíveis em inglês, espanhol e português. Artigo originalmente publicado em bit.ly/igorkipman em 04 de maio de 2022. Tradução pela secretária Clarissa Alves Machado. Michelle Bachelet não queria se envolver na crise. Apenas o ex-Secretário-Geral da OEA, embaixador Baena Soares, respondeu ao chamado. 

O fato de ser brasileiro reforçou a suposta teoria da conspiração. Ao invés de utilizar a fórmula de Grupo de Amigos proposto pelo Core Group de Washington, com a vantagem de também ter sido proposta por Préval e não imposta pela Comunidade Internacional, o Core Group de Porto Príncipe preferiu torpedeá- -la porque frustrou sua estratégia de derrubada do Presidente. Depois que a proposta do Grupo de Amigos foi rejeitada, a posição de Igor Kipman também mudou. Ele retornou a reserva que sempre se impôs. Dei-me conta de que Brasília não tinha intenção de fazer algo que pudesse perturbar seus interesses estratégicos. O recente mal- -entendido serviu de lição. Para o Brasil, a crise em curso no Haiti não era mais que um episódio na longa via crucis a que aquele país nos havia acostumado. Igor nunca faltou com o senso de honra e de coragem, física e política. Ele acreditava no futuro do povo haitiano e trabalhou incansavelmente até os limites da diplomacia e da solidariedade para apoiá-lo em sua busca por um futuro melhor. Que ele descanse em paz!]

Ricardo Seitenfus foi representante especial da OEA no Haiti entre 2009-2011. É autor, entre outros livros, de “Les Nations Unies et le choléra en Haïti: coupables mais non responsables?” e de “L’échec de l’aide internationale à Haïti: dilemmes et égarements”, ambos publicados pela C3 Éditions, disponíveis em inglês, espanhol e português.

-- 
ricardo.silva.seitenfus@gmail.com
rseitenfus@icloud.com

Da dúvida razoável depende a evolução humana.

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2022

Las Organizaciones Internacionales - Ricardo Seitenfus (Amazon)

Agora em espanhol: 

Las Organizaciones Internacionales (Spanish Edition) Paperback – November 20, 2021 

Spanish Edition  by  Dr. Ricardo Silva Seitenfus  (Author)



 Aunque ciertos críticos consideren que el multilateralismo está sufriendo una crisis terminal —caótica, de acuerdo con algunos de ellos— profundizada por el surgimiento del nacionalismo vacunal por la pandemia de COVID-19, dado que los países desarrollados acapararon ocho veces más vacunas de las que necesitaban y dejaron a los demás países con sus vacunaciones comprometidas, no debemos perder de vista la construcción de la sociedad internacional. A lo largo de su trayectoria, tanto el multilateralismo como las organizaciones internacionales (OI) —su principal herramienta— sufrieron reveses que pronto se transformaron en victorias. Así ocurrió con la pandemia de la mal denominada gripe española en 1918. O cuando los nacionalismos nazi y fascista lanzaron a la humanidad a la más terrible de sus guerras. El multilateralismo contribuye para acabar con estas pesadillas y sale reforzado de ellas. Sin multilateralismo no hay horizonte para el sistema internacional ni para el futuro de la humanidad.
La organización de las sociedades humanas ha estado dominada desde mediados del siglo XVII por el modelo de Estado, que alcanzó su apogeo en el siglo XIX y, a pesar de los prematuros anuncios de su declive, constituye el modelo exclusivo de organización de las agrupaciones humanas. Sin embargo, al no poder enfrentar la creciente complejidad de las relaciones internacionales —un extraordinario entramado en el que intervienen múltiples aspectos e intereses— los Estados decidieron crear nuevas instituciones a partir de los ligámenes permanentes que surgen entre ellos, buscando que fueran capaces de llevar a cabo acciones de interés común. Por lo tanto, estas organizaciones constituyen un nuevo elemento externo a los Estados y poseen una existencia objetiva de naturaleza internacional. En otras palabras, el fenómeno que nos interesa deriva de la voluntad del Estado, pero está más allá de ella.
Hasta la aparición de las instituciones internacionales, existía simplemente la clásica comunidad de derecho internacional, que reunía a las instituciones nacionales. Entre ellas se establecían relaciones contractuales que respetaban los principios mínimos del derecho consuetudinario. La sociedad internacional vigente es muy diferente, ya que reúne una cantidad significativa y diversa de OI. Actualmente, el número de OI activas es mayor que el de Estados soberanos.
Las OI conservan la posibilidad de institucionalizar relaciones bilaterales. Sin embargo, la gran novedad consiste en la introducción de las negociaciones multilaterales a partir de lo que se ha convenido llamar diplomacia parlamentaria. Al ser colectiva y pública, esta práctica aleja la diplomacia secreta, que siempre ha sido uno de los elementos de desequilibrio, confrontación y conflictos en la escena internacional. En la actualidad existen aproximadamente mil OI, siendo la gran mayoría de ámbito regional y una centena de ámbito universal. El estudio de este grupo de colectividades —ya sean más o menos autónomas— es uno de los elementos fundamentales para comprender las complejas relaciones internacionales contemporáneas.
Esta edición ha sido especialmente preparada para los lectores de lengua española. Se trata de una obra con inspiración claramente interdisciplinaria y necesariamente descriptiva, que les concede un importante espacio a las informaciones institucionales. Sin embargo, busca constantemente indicar su grado de efectividad. Al hacerlo, excede la simple narrativa y ofrece interpretaciones y escala de valores. Ella ofrece informaciones fidedignas, datos actualizados y conceptos básicos. Ella prioriza lo concreto, con el objetivo de alcanzar sus objetivos pedagógicos pasando por transformaciones, perfeccionamientos progresivos y permenente actualización. Es un verdadero vedemécum vivo de informaciones y interpretaciones, agregando conocimientos incluso a los más experimentado de los diplomáticos y especialistas en relaciones internacionales.

quinta-feira, 24 de dezembro de 2020

Ricardo Seitenfus: Manual das Organizações Internacionais, 7a edição, aumentada (e-book, edição Kindle)

 O grande manual de Ricardo Seifenfus finalmente em e-book.

In fine, dois outros livros do mesmo autor no mesmo formato. 

Manual das Organizações Internacionais 

eBook Kindle