Poderes do Conselho de Segurança da ONU refletem precariedade do sistema internacional
Hipocrisia e ignorância fazem do órgão o mais importante e o menos eficiente das Nações UnidasFOLHA DE S.PAULO
25.out.2023
Ricardo Seitenfus
Ex-representante especial da OEA no Haiti (2009-2011) e na Nicarágua (2011-2013), professor aposentado da Universidade Federal de Santa Maria (RS) e doutor em relações internacionais pela Universidade de Genebra e autor do livro, entre outros, "Organizações Internacionais".
Paralelamente aos horrores reportados do atual conflito Israel-Hamas, um enfrentamento político-diplomático dilacera o Conselho de Segurança das Nações Unidas. Sob a presidência brasileira, o enfrentamento entre Moscou e Washington faz reviver os momentos mais sombrios da Guerra Fria com a utilização do veto que impede uma posição comum frente aos ataques do Hamas de 7 de outubro e à resposta israelense na Faixa de Gaza.
Apesar de soarem vozes indignadas denunciando sua suposta insensibilidade e sua inconteste paralisia, o Conselho de Segurança cumpriu rigorosamente sua principal função: não ser instrumentalizado para contrariar interesses que seus membros permanentes considerem essenciais.
A ingenuidade de alguns, a hipocrisia de outros e a ignorância da maioria fazem com que o Conselho de Segurança —encarregado da manutenção paz segundo a Carta de São Francisco— seja ao mesmo tempo percebido como sendo o mais importante e o menos eficiente dos órgãos do sistema das Nações Unidas.
Tal situação não é obra do acaso. Ao contrário. Ela foi longamente amadurecida pelos que viriam a ser os vencedores da Segunda Guerra Mundial.
Em 1º de janeiro de 1942, após a entrada efetiva na guerra dos Estados Unidos e da União Soviética, a Conferência de Washington, reunindo 26 países, anuncia, pela primeira vez, a necessidade de uma solidariedade dessas "Nações", a partir daquele momento "unidas", para fazer frente ao Eixo.
Na Conferência de Dumbarton Oaks (agosto-outubro de 1944), China, Estados Unidos, Reino Unido e União Soviética definem os contornos da organização política das relações internacionais do pós-guerra. Tornava-se evidente que o novo organismo somente seria eficaz caso contasse com a aprovação das grandes potências. No entanto, ele não poderia restringir-se tão somente aos grandes Estados
Superada a questão de sua universalidade, as potências vencedoras definiram o modelo de tomada de decisões no Conselho de Segurança. Havia o risco de serem compelidas a acatar iniciativas coletivas para a manutenção da paz, mesmo contra a sua vontade expressa, caso as decisões fossem tomadas baseando-se em qualquer cálculo majoritário ou proporcional. Não bastava, então, fazer parte de um órgão decisório restrito. Era necessário que individualmente as potências pudessem controlar o rumo de suas decisões.
A solução é encontrada na Conferência de Ialta (fevereiro de 1945). Trata-se de diferenciar os países-membros do Conselho em permanentes e transitórios. Qualquer decisão emanada deste órgão não deveria sofrer oposição de um membro permanente. A adoção da regra da unanimidade equivale ao poder de veto. Trata-se de um seguro mútuo que evite confrontações diretas entre eles. Escancara-se o risco de ineficácia e paralisia como demonstra a crise atual.
Reina a confusão igualmente no que diz respeito ao campo da aplicabilidade do poder de veto. Este deveria restringir-se às questões de segurança em seu senso estrito. Contudo, o Conselho decide manter total autonomia para decidir caso a caso. Finalmente, não foi possível fazer com que as grandes potências aceitassem, de forma clara e indiscutível, que nos conflitos em que eram partes interessadas, elas devessem abster-se de utilizar o direito de veto.
Após uma primeira fase de importante produção, os trabalhos do Conselho ingressam num longo período no qual demonstram marcante incapacidade operacional (1948-1989). A média anual de resoluções adotadas durante este período não alcança duas dezenas. No período subsequente essa média é multiplicada por três, alcançando picos de quase uma centena de resoluções anuais. A esperança de um sistema mais eficaz ruiu com a invasão da Ucrânia pela Rússia e pelo conflito Israel-Hamas.
Estados Unidos, França e Reino Unido ajustam sua posição em reuniões prévias, chamadas de instância P3, que sintetizam a posição ocidental. Posteriormente os membros permanentes reúnem-se no que se convencionou chamar de instância P5. Há, portanto, duas rodadas, que podem resultar em bloqueio da atuação coletiva antes mesmo que se chegue à reunião do organismo. Este procedimento indica que há temas e questões que não alcançam o CS por absoluta falta de consenso nas instâncias P3 ou P5.
Facilitado pela prática de inexistir justificativa, o veto foi utilizado 295 vezes durante o período 1946-2022, sendo que Moscou o utilizou 143 vezes, Estados Unidos, 86, Reino Unido, 30, China e França 18 cada uma.
A composição, atributos e poderes do Conselho de Segurança refletem o primitivismo e a precariedade do sistema internacional. Todavia, não esqueçamos que sua inação dificultou o caminho que leva às portas do inferno nuclear.