IGOR KIPMAN, VERDADEIRO AMIGO DO HAITI
Ricardo Seitenfus
No início de maio, faleceu, aos 71 anos, em sua cidade natal, Curitiba, Igor Kipman, embaixador do Brasil no Haiti de 2008 a 2012. Poucos no Haiti o conhecem bem. A razão é simples: ao contrário dos colegas representantes do Tridente Imperial, Igor Kipman era avesso a sermões e pressões, não usava a imprensa para sua propaganda pessoal ou de seu país, trabalhava discretamente e acima de tudo tinha um respeito sem limites pelo Haiti e seu povo. Conselheiro do Ministério das Relações Exteriores do Brasil e então responsável pelo Departamento de América Central e Caribe, em 2007, Igor passou em revista, com o chanceler, os nomes passíveis de serem designados Embaixadores no Haiti. Depois de estudar a lista, o Ministro lhe perguntou: “E por que não o seu nome não está na lista?”. Próximo ao fim de sua trajetória profissional, caso não se tornasse embaixador, Igor deveria deixar a carreira. Apesar disso, não se candidatou ao posto. Só o conseguiu por decisão do ministro Amorim. Isso diz muito sobre a personalidade de Igor. É com essa mesma contenção pessoal que ele comandará uma verdadeira revolução nas relações haitiano-brasileiras.
Durante seus quatro anos em Porto Príncipe, Igor organizou três visitas presidenciais ao Haiti, algo inédito na história da diplomacia brasileira! Além do ofício delicado e constante entre a diplomacia tradicional e a relação com a importante participação militar brasileira na MINUSTAH, incluindo o alto comando, Igor também atuou em outros três níveis. O primeiro diz respeito às suas obras de caridade. Incentivado pela determinação de sua esposa, Roseana Aben-Athar Kipman, esse casal extraordinário é o oposto da imagem que costumamos ter dos diplomatas. Roseana, pequena, parecendo muito mais jovem do que a avó que era na realidade, simpática, sorridente, transbordava de energia. Ela simbolizou para mim a verdadeira ajuda humanitária. Mergulhou resolutamente nesse Haiti que me assustava, tinha responsabilidades que a princípio me escapavam; seus longos dias foram dedicados a ajudar orfanatos, creches, escolas e famílias inteiras. Ela trabalhou com aquelas que chamava de “minhas irmãs”: freiras brasileiras encarregadas de orfanatos em Cité Soleil, Jérémie, Léon. Aonde quer que ela fosse, estava cercada por soldados que deveriam mantê-la segura, mas que, na verdade, ajudavam-na a carregar sacos de mantimentos, medicamentos, roupas e materiais escolares.
Uma vez por ano, o casal alugava um Tap-Tap às suas expensas, lotava-o de órfãos e os levava para a residência oficial. Cada criança era objeto de especial atenção e acolhida com um beijo da embaixadora. Jogos, petiscos, bebidas, música, dança e mergulhos na piscina ditavam o ritmo de uma festa infantil que seria normal em outras circunstâncias, mas que representava para aquelas crianças um evento inesquecível e único. O segundo foi a coordenação da assistência humanitária e de desenvolvimento. Para evitar duplicidade de esforços, mais de trinta projetos de cooperação técnica (nas áreas de saúde, agricultura, justiça, entre outras) ficavam sob o olhar atento de Igor e de sua equipe. Além disso, ganhou corpo a cooperação triangular com o Canadá (saúde) e a Espanha (reflorestamento) e a cooperação Sul/Sul com Cuba e Venezuela.
Com o terremoto de janeiro de 2010, a cooperação para o desenvolvimento integral se transformou em ajuda de emergência. Também mudou o papel político de atores internacionais, incluindo o do Brasil e de seu embaixador. Essa diplomacia estritamente política era a terceira atividade importante de Igor Kipman, sobre a qual seguem algumas observações. Até a crise política do final de 2010, Igor desempenhou um papel fundamental no Core Group1 . Quando o resultado das 1 Grupo composto por representantes da Argentina, Brasil, Canadá, Chile, Espanha, Estados Unidos, França, Nações Unidas, Organização dos Estados Americanos e União Europeia, encarregado da coordenação internacional no Haiti.
REVISTA DA ADB | 31 MEMÓRIA 32 |
eleições para o Senado em fins de 2009 modificou sua composição, adotou-se uma moção de censura contra a primeira-ministra Michèle Pierre-Louis. Embora fosse bastante natural, em regime parlamentarista, uma mudança de governo quando surge uma nova maioria, a Comunidade Internacional protestou e se opôs a que tal regra fosse aplicada ao Haiti: madame Pierre-Louis era apreciada pela Comunidade Internacional e deveria permanecer em seu posto. O Core Group preparou uma nota de apoio, escrita pelo Representante da União Europeia (o italiano Francesco Gosetti Di Sturmeck) e aprovada pelos Estados Unidos, com o objetivo de protestar contra a moção de censura. Antes que a nota se tornasse pública, tentei mostrar a meus colegas (a maioria deles oriundos de países com regimes parlamentaristas) que não poderia haver dois pesos e duas medidas.
Em outras palavras, que uma situação considerada normal em seus países fosse tratada como um sacrilégio no Haiti. Finalmente, o governo haitiano teria um novo primeiro-ministro porque Kipman se dissociaria da nota e impediria assim uma nova ingerência da Comunidade Internacional. Francesco, após ouvi-lo, disse simplesmente encerrando a assunto: “Touché! Coulé!”2 . Quando, em 28 de novembro de 2010, a Comunidade Internacional, em reunião ampliada do Core Group, cujo porta-voz era Edmond Mulet, “convidou” o presidente René Préval a deixar o Palácio Nacional e partir para o exílio, fiz objeções nestes termos: “Foi assinado nas Américas, em 2001, um documento sob o título de Carta Democrática Interamericana. Esta Carta estipula que qualquer modificação, fora dos preceitos constitucionais, do mandato de um Presidente eleito democraticamente, deve ser considerada como um putsch”.
No entanto, falando apenas em meu nome pessoal porque neste conclave golpista a OEA estava representada por seu secretário adjunto de triste memória, vindo especialmente de Washington, tive que encontrar aliados. Então, olhando na direção onde estava o embaixador Kipman, perguntei a ele: “Não conheço a posição do Brasil”. Ao que ele respondeu imediatamente: “O Brasil tem a mesma interpretação”.
Para meu grande alívio, eu não estava só e o golpe fracassou. Fizemos isso porque, aos nossos olhos, estávamos prestes a cometer uma ignomínia moral e um erro político grosseiro. Com a participação ativa da Comunidade Internacional, iríamos mais uma vez empurrar o Haiti para o precipício evocado por Luigi Einaudi durante a crise de fevereiro de 2004. Após a publicação, pela Comissão Eleitoral Permanente (CEP), dos resultados do primeiro turno das eleições em sete de dezembro de 2010, Porto Príncipe totalmente bloqueada, recebi um convite para participar da reunião do Core Group; Essa reunião foi solicitada por Préval no local que servia de escritório de Mulet, dentro da Base Logística da MINUSTAH, próxima ao aeroporto. Luís Guilherme Nascentes, Igor Kipman e eu chegamos ao Boulevard Delmas e fomos barrados por uma barricada que bloqueava completamente o caminho. Nesse instante soa o celular de Igor. Era Mulet informando que nenhum membro do Core Group podia se mover e que Préval tampouco. A reunião foi suspensa. Demos meia-volta. No caminho de retorno, Kipman me disse: “Já que Préval não pode sair de casa, por que não vamos vê-lo? Se o Presidente da República quer nos ver, devemos fazer tudo o que pudermos para satisfazê-lo.” Aplaudi a decisão e imediatamente telefonei para o Primeiroministro Jean-Max Bellerive. Ele garantiu que Préval nos receberia e que ele próprio participaria da reunião. Então tomamos a direção de Kenscoff.
Pouco antes de chegarmos a um cruzamento, novamente uma barricada impedia a passagem. Além dos civis, havia também policiais. Os fuzileiros navais brasileiros desembarcaram com suas armas e, com a ajuda da polícia, removeram os obstáculos.
De repente, ouvi o sibilar de balas ricocheteando no metal. Nosso veículo fora atingido. Kipman manteve a calma e disse: “Não precisa se preocupar”. Um policial haitiano armado se afastou do grupo e ultrapassou nosso veículo. Ele subiu no barranco ao lado da estrada e disparou várias vezes. O tiroteio cessou. Retomamos nossa viagem até a residência de Préval. Concordamos em formar um Grupo de Amigos para mediar a crise. Sem que eu soubesse (tampouco Kipman), no dia anterior, em Washington, o Core Group local também havia sugerido a criação de um Grupo de Amigos similar ao modelo proposto por Préval.
No entanto, o encontro de que acabara de participar – praticamente simultâneo – com o embaixador brasileiro, o presidente e o primeiro-ministro haitiano rendera uma proposta semelhante. Foi o suficiente para os Estados Unidos e Mulet: interpretaram como uma manobra brasileira para garantir a permanência de Préval na presidência e, portanto, decidiram sabotá-la. Durante a décima reunião na sede da OEA em Washington, os Estados Unidos recuaram e rejeitaram o Grupo de Amigos. Com essa reviravolta, não foi mais possível falar em mediação. Na França, Lionel Jospin, sondado a fazer parte daquela proposta, fez consulta ao Quai d’Orsay. Não só a França se opôs a ela, como também proibiu a possibilidade de financiamento da União Europeia ao Clube de Madri para tal tarefa. Mais uma vez, o Clube de Madri mostrou sua verdadeira face: uma simples ferramenta para instrumentalizar a política externa de alguns países da Europa Ocidental. Ricardo Seitenfus foi representante especial da OEA no Haiti entre 2009-2011. É autor, entre outros livros, de “Les Nations Unies et le choléra en Haïti: coupables mais non responsables?” e de “L’échec de l’aide internationale à Haïti: dilemmes et égarements”, ambos publicados pela C3 Éditions, disponíveis em inglês, espanhol e português. Artigo originalmente publicado em bit.ly/igorkipman em 04 de maio de 2022. Tradução pela secretária Clarissa Alves Machado. Michelle Bachelet não queria se envolver na crise. Apenas o ex-Secretário-Geral da OEA, embaixador Baena Soares, respondeu ao chamado.
O fato de ser brasileiro reforçou a suposta teoria da conspiração. Ao invés de utilizar a fórmula de Grupo de Amigos proposto pelo Core Group de Washington, com a vantagem de também ter sido proposta por Préval e não imposta pela Comunidade Internacional, o Core Group de Porto Príncipe preferiu torpedeá- -la porque frustrou sua estratégia de derrubada do Presidente. Depois que a proposta do Grupo de Amigos foi rejeitada, a posição de Igor Kipman também mudou. Ele retornou a reserva que sempre se impôs. Dei-me conta de que Brasília não tinha intenção de fazer algo que pudesse perturbar seus interesses estratégicos. O recente mal- -entendido serviu de lição. Para o Brasil, a crise em curso no Haiti não era mais que um episódio na longa via crucis a que aquele país nos havia acostumado. Igor nunca faltou com o senso de honra e de coragem, física e política. Ele acreditava no futuro do povo haitiano e trabalhou incansavelmente até os limites da diplomacia e da solidariedade para apoiá-lo em sua busca por um futuro melhor. Que ele descanse em paz!]
Ricardo Seitenfus foi representante especial da OEA no Haiti entre 2009-2011. É autor, entre outros livros, de “Les Nations Unies et le choléra en Haïti: coupables mais non responsables?” e de “L’échec de l’aide internationale à Haïti: dilemmes et égarements”, ambos publicados pela C3 Éditions, disponíveis em inglês, espanhol e português.
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Da dúvida razoável depende a evolução humana.