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sábado, 6 de julho de 2019

Historia da Inglaterra, de David Hume - Vinicius Muller (OESP)


Esqueçam os franceses e leiam “História da Inglaterra”, de David Hume
Em "História da Inglaterra", o filósofo escocês David Hume apresenta uma ampla interpretação da gênese britânica, do Império Romano até a Revolução Gloriosa de 1688.
Estado da Arte
O Estado de S. Paulo, 05 de julho de 2019
por Vinícius Müller  
Há séculos que os variados modos de se reconstruir a História são alvo de debates, reviravoltas e disputas que, muitas vezes, se revelam mais ideológicas do que científicas. A História já foi contada a partir de mitos, de príncipes e heróis, das instituições, das grandes rupturas, das grandes continuidades, da ‘luta de classes’, das mentalidades, da transformação econômica, entre tantas outras. Já foi a História dos costumes, dos sentidos e das nações. Enfim, já foi relacionada com a literatura, com o cinema, com as artes em geral, com a cidade e com a arquitetura. É tão amplo este cardápio que, não só é improvável que consigamos encerrar tamanha listagem de possibilidades, como também é ainda mais impensável que alguém consiga reunir em uma mesma obra um conjunto de abordagens que abarque senão todas – o que beira o impossível – mas um grande número destas variadas maneiras de se reconstruir a História. 
Até que um dia, tardiamente, uma breve coletânea de partes que compõem os seis volumes da História da Inglaterra, de David Hume, foi publicada pela Editora da UNESP, sob a magistral seleção, organização e tradução do professor Pedro Paulo Pimenta. Tardiamente, pois a obra, escrita entre 1754 e 1762 nunca havia sido traduzida no Brasil até 2014. E, mesmo que o que temos seja apenas uma coletânea muito bem selecionada, é suficiente para termos uma ideia da genialidade de Hume como historiador. Curiosamente seu lado menos aclamado, mesmo que o tenha deixado rico. 
Na obra, Hume desfila sua erudição abarcando um sem número de possibilidades para se compreender a História da Inglaterra, desde os tempos do Império Romano à Revolução Gloriosa de 1688. Cabem em sua maiúscula narrativa elementos econômicos, políticos, culturais e de costumes (as quais ele chama de Maneiras), militares e das relações internacionais. Assim como cabem detalhes de imperadores e reis, de suas características pessoais, de elementos que para o autor fizeram parte da ‘natureza’ daqueles que estiveram na posição de liderança, assim como dos mais ordinários indivíduos que fizeram parte desta História. Ou seja, se é impossível esgotar as possibilidades de se contar uma História, Hume busca contemplar a maior parcela possível entre as possibilidades, fiel à sua época e posição de filósofo iluminista.
Contudo, se o risco de uma História tão abrangente como a escrita por Hume é a perda de foco, a dificuldade de manter a coesão e, ao fim, a criação de uma narrativa sem fio condutor, ele é facilmente superável pela genialidade do escocês. E aqui reside a outra, talvez mais importante, característica da obra: a bem sucedida tentativa de criar uma espécie de História geral da Inglaterra que descortine os grandes e fundamentais elementos que compõem algo como o DNA daquela nação e de seu povo. Um tipo de História que entrou em decadência com a profissionalização do ofício de se pesquisar e escrever História. Mas, que nos faz uma considerável falta.
Desta forma, ao estabelecer um recorte tão amplo em sua cronologia (da Invasão de Júlio César, em 55 a.C.,  à Revolução de 1688) Hume buscava construir ou reconstruir a trajetória inglesa a partir da identificação de uma constante que só é mantida sob tênue equilíbrio durante toda a História daquela nação. No início do livro ainda é difícil identificar quais os elementos desta estrutura que o autor tenta construir. Mas, algumas pistas são dadas, como, por exemplo, a identificação de um certo caráter do povo bretão e como este povo foi dominado tanto pelos romanos como, principalmente, pelos saxões. Estes, mais violentos e rudes, deram origem àquilo que, por mais paradoxal que pareça, está no fundamento da ideia de liberdade entre os britânicos: o conceito de que o Rei, mesmo em sua posição de liderança, não é mais do que um indivíduo como todos os outros. Este senso de ‘igualdade’ entre as várias lideranças menores e o Rei, comum entre os povos germânicos (os Saxões eram um deles) foi fundamental para a montagem daquilo que pode ser chamado de feudalismo britânico, instituído após a invasão normanda em 1066. 
O feudalismo que por lá vigorou, segundo Hume, estava alicerçado em um equilíbrio tênue entre o Rei, os barões (senhores feudais) e os comuns ou a população em geral. Neste equilíbrio, os barões eram, em suas regiões, proporcionalmente mais fortes e dominantes em relação à população do que o Rei o era sobre os próprios barões. Desta forma, cabia ao Rei, em uma aliança possível com a população, frear mesmo que parcialmente o domínio que os barões exerciam em suas regiões e sobre seus servos. Contudo tal poder real não deveria suplantar a antiga ideia de que ele era um ‘comum’ entre os barões, sob o risco de uma institucionalização ainda mais ampla do controle real não só sobre os senhores, mas, também sobre a população. 
Esta delicada geometria, mesmo que fina e aparentemente frágil, se fortaleceu ao longo do tempo, em um movimento de ajustes obtidos a partir da própria dinâmica da sociedade britânica. Por exemplo, quando das tentativas por parte da Igreja Católica romana de se impor sobre os barões durante o período dominado pelos normandos e quando os Reis usaram o poder católico para se proteger dos barões. Esta composição, como sabemos, será invertida ao longo do século XVI quando Henrique VIII rompe com os católicos para criar a Igreja Anglicana sob seu comando. Para tanto, precisou do apoio do Parlamento, dominado pelos barões. Refazendo, portanto, o pacto sob outro formato.
Contudo, o mais surpreendente é o modo como Hume revela as mudanças no direito feudal e nos costumes ou maneiras de se comportar entre os barões e os Reis. Em ambos os casos, o crescimento da agricultura tornou a posse sobre a terra mais interessante aos barões do que a guerra. Desta forma, estavam dispostos a deixar a guerra sob a responsabilidade do Rei – concentrando, portanto, a fidelidade militar característica dos povos germânicos – em troca da posse sobre a terra. Isso porque, em tese, a terra era propriedade do Rei. Mas, de fato, a posse da terra exercida pelos barões era o mesmo que a propriedade. Em contrapartida, o Rei, responsável maior pela guerra, limitava-se às prerrogativas que os barões tinham, como sobre a autorização de arrecadação de recursos para a Guerra, ou seja, a cobrança de impostos. Em suma, aumentou a interdependência entre barões e o Rei, de modo que a negociação entre eles se tornou fundamental. Mais do que isso, o avanço da agricultura tornou mais interessante aos barões que arrendassem parte de suas terras aos servos e não mais mantivessem os impostos feudais, como a obrigação dos servos em trabalhar nas terras dos senhores. Ao contrário tornou-se mais interessante aos servos produzirem em terras arrendadas e pagarem suas obrigações em moeda ou em espécie, e não em trabalho. Ou seja, os barões se sentiam mais seguros pela liberdade que tinham em manter na prática suas propriedades sem que o Rei as tomasse; enquanto os servos se afastavam gradativamente das obrigações que envolviam o pagamento em trabalho e se aproximavam de obrigações negociadas em moeda e/ou espécie. Certamente, um modelo que envolvia tanto para os barões em relação ao Rei, como para os servos em relação aos barões, uma maior liberdade. Para Hume, foi esta maior liberdade pessoal (freedom) que pavimentou o caminho para a liberdade civil e política do liberalismo inglês (liberty). 
Este afrouxamento das regras feudais em benefícios dos fundamentos da liberdade não só se tornaram o caminho para a liberdade civil entre os ingleses, como também se relacionam, no passado, à própria noção de liberdade que existia na relação entre os líderes saxões e o Rei. Desta forma, se lá na origem do feudalismo britânico, a noção de igualdade (o Rei é um indivíduo igual aos outros líderes saxões) esteve ligada à noção de liberdade, esta liberdade será tanto aquela dos indivíduos frente aos barões como também dos barões frente ao Rei. Indivíduos que ocuparão, em prazos mais demorados, a Câmara dos Comuns, assim como os barões que já ocupavam o Parlamento.
O que Hume revela é que a Carta Magna de 1215 nada mais foi do que a confirmação de um arranjo que já vinha sendo feito há mais de dois séculos. Assim como, mesmo após alguns embates, a mesma combinação entre liberdade, igualdade e propriedade esteve na base da Revolução Gloriosa de 1688. Tal combinação, destaca-se, que deveria ser em sua escala moral representada pelo Rei ou Rainha, mesmo que esta escala não pudesse e ainda não possa se sobrepor aos limites estabelecidos pelas duas casas parlamentares, a dos Comuns e a dos Barões. Ou seja, é como se este DNA da nação inglesa estivesse nas origens do feudalismo britânico, mesmo antes da Carta Magna e da Revolução Gloriosa. 
É também como se Hume, olhando ao passado, complementasse a obra de John Locke, apontando para seus limites. Principalmente, porque Hume usa a História a favor de seu empirismo, identificando como a sociedade e governo civil do filósofo do século XVII estiveram, além de na natureza dos homens, na História dos britânicos desde seus primórdios. E se Hume pudesse dialogar com o futuro, é como se ele tivesse nos falando que, se quisermos realmente entender os valores daquilo que entendemos como sendo os fundamentos da democracia contemporânea (liberdade, igualdade, propriedade, limites do Poder do Estado, representatividade) – e, em contrapartida, aquilo que parece ser contrário ou ameaçador a ela – deveríamos olhar para os britânicos e sua História. Esqueçam os franceses: a democracia só estará salva quando todos nós entendermos a História da Inglaterra contada por David Hume. 
Vinícius Müller  é doutor em História Econômica pela USP e professor do Insper
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sexta-feira, 29 de março de 2019

O risco de uma política externa patética - Vinicius Muller

Entre os mitos e o pragmatismo: o risco de uma política externa patética

Ao representar o interesse nacional, a Política Externa carrega em si um elemento que torna sua configuração ainda mais complexa.

por Vinícius Müller
Estado da Arte, O Estado de S. Paulo, 29/03/2019

A formulação de qualquer política, no sentido de manifestação de certa intenção amparada em planejamento, em uma ideologia ou em uma simples reconfiguração eleitoral, é fundada em um modo como se escolhe, hierarquiza e reconta a História. Os elementos que orientam esta reorganização da História variam ao gosto de quem a conta e conforme suas limitações do presente. Ou seja, é no presente, com todas as suas determinações, que escolhemos qual história vamos contar de modo a justificar aquilo que imaginamos estar preparando para o futuro. 
A confusão pode ser exemplificada. Há uma quase unânime opinião, ao menos entre aqueles que têm o mínimo de responsabilidade, acerca da necessidade de um ajuste das contas públicas brasileiras. Um dos elementos que compõem esse quadro é a dificuldade de estados e municípios em equilibrar seus orçamentos e cumprir com suas responsabilidades. Entre elas, o pagamento de seus funcionários. Como resolver esse problema? Para alguns, diminuindo o número de funcionários, criando, inclusive, mecanismos formais que permitam a demissão de alguns deles. Para outros, reformando as regras da aposentadoria dos futuros inativos. Para outros tantos, aumentando os impostos para ampliar a receita dos estados e municípios. Ou ainda reorganizando as relações de direitos e deveres entre municípios, estados e união, de modo a redefinir o que chamamos, grosso modo, de pacto federativo.
É no presente que escolhemos qual história vamos contar de modo a justificar aquilo que imaginamos estar preparando para o futuro
Em geral, essa última proposta é defendida por aqueles que entendem ser a centralização excessiva. Também, em geral, são aqueles que se identificam com abordagens mais liberais sobre a economia, a política e a sociedade. São os mesmos que, muitas vezes, reconhecem na trajetória dos EUA elementos de sucesso, riqueza e desenvolvimento, justificando-os pela inovação e precocidade do modelo federativo que o país adotou desde sua independência no final do século XVIII. E, também, aqueles que, por isso, buscam na trajetória brasileira os elementos constitutivos da centralização, apontando para os males que nos legou. Assim, são críticos ao legado da centralização imperial, assim como do governo Vargas, e insistem em identificar na Constituição de 1988 um desequilíbrio relacionado ao pacto federativo que, em tese, teria ampliado a descentralização sem, em contrapartida, viabilizar financeiramente os estados e municípios. Em outras palavras, ao identificarem um problema presente (a falência de estados e municípios), propõem uma política esperando que no futuro o problema acabe. Mas, tal proposta é justificada pelo modo como enxergam e reconstroem a História, ou ao menos, aquela que destaca os itens que confirmam o modo como definem os problemas. 
Outros tantos exemplos podem ser dados. Política externa é um deles. Isso porque ela carrega um elemento que torna sua configuração ainda mais complexa, dado que deve, entre suas funções, representar interesses baseados em uma possível unidade. Ou seja, representa os interesses do país como se fosse possível defini-los em meio à diversidade que o configura. Por isso, busca sempre algum tipo de embasamento mais subjetivo: interesse nacional, patriotismo, defesa de valores universais, valores culturais, tradições morais, etc. Não que esta subjetividade unificadora seja simplória por definição. Ao contrário, pode ser bastante complexa em sua construção. E isso envolve o modo como recuperamos nossa História. 
Sobre isso, Demétrio Magnoli, na obra O Corpo da Pátria (Editora Unesp/Moderna, 1997) retoma  uma parte desta História ao analisar como a geografia, especialmente o que chama de “imaginação geográfica”, moldou parte considerável da política externa brasileira no século XIX. A imaginação, no caso, relaciona-se ao modo como construímos certa identidade a partir da definição do território. E essa identidade esteve tanto na maneira que entendemos o gigantismo territorial como parte essencial de nossa “brasilidade”, como também na formulação das posições externas, principalmente nas definições das fronteiras do norte (Amazônia e a compra do Acre em 1903) e na relação com a África Atlântica sob a pressão britânica ao longo do debate sobre o tráfico de escravos. Além, certamente, das definições das fronteiras do sul, envolvidas pelas disputas e interesses argentinos e paraguaios. 
O interessante nesse caso é que a justificativa de uma política externa amparada na identidade territorial foi amplamente vista como uma simples definição de algo que o Brasil teria uma espécie de direito histórico. Este direito, na narrativa construída, derivava das definições territoriais da época colonial. Tanto, em caso específico, das fronteiras organizadas pelo Tratado de Madri de 1750, como também – e especialmente – de um certo mito criado como um elo entre um Brasil colonial e um Brasil definido como um Estado Nacional soberano. Um mito romântico, portanto, como foi o do indianismo. Ou como foi e, para muitos ainda é, aquele que identifica a abertura econômica como sendo inimiga dos reais interesses nacionais. 
Neste sentido, a projeção relativa ao papel do país em seu posicionamento externo deve-se não só aos problemas identificados no presente, mas também a como o passado é reconstruído de modo a justificar tal projeção. Já foi assim em outros episódios, quando uma certa narrativa que nos incluía na tradição ocidental foi parcialmente responsável pelo posicionamento do país na Segunda Grande Guerra. Ou quando, logo depois, um antigo entusiasta da ‘germanização’ optou por recuperar uma inexistente trajetória democrática para justificar a aproximação entre o Brasil e os EUA. Ou ainda, quando a defesa dos interesses nacionais foi confundida com certo anticapitalismo juvenil. Assim como, logo depois, um perigoso anticomunismo lustrava a ideia de que ‘o que é bom para os EUA é bom para o Brasil’. Por fim, a heroica política que se sustentava pela perspectiva de que negócios internacionais que envolvem países com níveis diferentes de desenvolvimento resultam, invariavelmente, em prejuízo aos menos desenvolvidos. Uma espécie de imperialismo contemporâneo. Assim, toda a política externa deveria buscar certo isolamento em relação aos países ricos e, ao contrário, aproximação com países em desenvolvimento. 
Vale destacar que nenhuma delas era mentirosa. Todas tinham alguma referência histórica pertinente. Mas, mesmo diferentes em suas propostas e justificativas, superestimavam os itens que as constituíam. E se justificavam por uma visão mitológica sobre o passado. Mitos não são mentirosos. Só exageram e romantizam o tempo pretérito em nome de uma ligação entre o passado e o presente. E ajudam a criar narrativas que, em tese, nos unem em um passado e um futuro comum. Por isso, os exageros românticos que amparam as políticas externas tendem a criação de mitos como o da grandiosidade geográfica, o da essência ocidental, o da exploração pelo imperialismo, o da superioridade racial, entre outros. 
Se tais mitologias nos ajudam a resgatar um passado que nos une, até pela própria necessidade da política externa em representar de modo coerente um país que, internamente, apresenta tantas variações, também ajudam a captura por questões ideológicas de parte importante de nossa representação internacional. Manter o que seria o equilíbrio entre tais formulações românticas e ideológicas, de um lado, e o pragmatismo, de outro, parece ser o ideal. Muitos já conseguiram, conforme a leitura do grande José Honório Rodrigues nos revela (Uma História Diplomática do Brasil, 1531 – 1945. Com Ricardo Seitenfus. Civilização Brasileira, 1995). Mas, a dificuldade está exatamente em manter esse equilíbrio. Nesse caso, o pendor, que muitos apresentam, favorável à idealização de um passado que nos une,  que explica o presente e justifica o que projetamos em matéria de política externa pode nos tornar mais do que irrelevantes no plano internacional: coloca-nos em risco de sermos verdadeiramente patéticos. A Venezuela comprova. O Brexit idem. O Brasil desta quadra da História parece correr esse risco também.

Vinícius Müller  é doutor em História Econômica pela USP e professor do Insper.

quinta-feira, 26 de abril de 2018

A Moeda e a Lei, de Gustavo Franco - resenha de Vinícius Muller

 Gustavo Franco para crianças 
Em 'A Moeda e a Lei', o economista Gustavo Franco revela como a tragédia da inflação foi sendo construída no Brasil por diversos interesses. Confira a análise de Vinícius Müller, do Insper.
Estado da Arte
O Estado de S. Paulo, 23 Abril 2018 
por Vinícius Müller


O economista Gustavo Franco. Foto: Fabio Motta/Estadão.

Há uma cena no filme Real: o Plano por trás da História, do diretor Rodrigo Bittencourt, na qual o personagem de Gustavo Franco, interpretado pelo ator Emílio Orciollo Neto, desabafa sobre sua insatisfação em ter de corrigir provas de alunos ‘comunistas’. Gustavo Franco, sabe-se, é professor do departamento de Economia da PUC do Rio de Janeiro, faculdade reconhecida pela sua excelência no ensino e pesquisa e, de modo algum, caracterizada por ser defensora de teses ‘comunistas’. Pelo contrário, o departamento notabilizou-se no Brasil pela presença de professores vinculados ao mainstreamda Ciência Econômica, fortemente influenciada pelas propostas ortodoxas que, do marxismo, nada carregam. Imagina-se que o aluno que opta por cursar Economia na PUC do Rio de Janeiro conheça essa característica e, portanto, não seja propriamente alguém com tendência à economia heterodoxa ou marxista. Curioso, então, que aquele que viria a ser um dos artífices do Plano Real e presidente do Banco Central durante o primeiro mandato de Fernando Henrique Cardoso, entre 1995 e 1998, se mostre tão frustrado com seus alunos ‘marxistas’.
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Para além da ironia contida na cena, independentemente de ser fiel à realidade ou não, seria interessante saber o que Gustavo Franco pensaria – ou qual seria o tamanho da sua frustação – se lecionasse em escolas e cursos cujo viés é, de fato, marxista. Um curso de História de qualquer universidade brasileira, por exemplo. O economista, culto como demonstram seus estudos sobre a relação entre literatura e economia, seria desafiado a defender seu brilhante estudo recentemente publicado, A Moeda e a Lei(Ed. Zahar, 2017), para uma plateia de céticos e, quiçá, agressivos ouvintes dispostos a ofensas pessoais do mais baixo calão.
Contudo, talvez, entre eles, ao menos um estudante estivesse disposto a ouvir e a entender a complexa trama estabelecida pelo autor em seu novo livro. Trama que dialoga com três áreas fundamentais do conhecimento, a Economia, a História e o Direito, e que as apresenta de modo a não só estabelecer o diálogo, mas também a complexa relação entre elas. É assim quando, por exemplo, ao contar a trajetória da moeda e da inflação no Brasil desde 1933 (ano da criação da moeda fiduciária no país), oferece sua versão sobre como a inflação foi um subproduto de uma perversa combinação entre o mau entendimento sobre o poder simbólico da moeda, uma mentalidade tacanha que apostava no isolamento do país em relação às experiências bem sucedidas no controle inflacionário e na condução da política monetária de outros países, e do modo como esta mentalidade se transformou, em instituições formais, em leis.
Além disso, expõe a indisfarçada preguiça mental e canalhice intelectual daqueles que creditaram à inflação algo positivo ao desenvolvimento e, por tabela, negligenciaram em suas opiniões a tragédia que foi para outros países a convivência com índices de hiperinflação; ou seja, removeram de suas análises a memória sobre a hiperinflação alemã e o caos que ela promoveu. Gustavo Franco, especialista no tema, nos relembra disso.
Em nove capítulos, a obra revela como a tragédia da inflação no Brasil foi sendo cuidadosamente construída ao longo do século XX, seja pelo uso discricionário de políticas monetárias e cambiais em nome de uma modernização que, no final, privilegiava seletivamente alguns em detrimento de quase todos; seja por que tal seletividade se transformou em regra de funcionamento tanto da SUMOC (Superintendência da Moeda e do Crédito, órgão responsável pela política monetária entre 1945 e 1964) quanto do Banco Central, criado logo após o golpe de 1964 – em síntese: como a desculpa de que a moeda e o câmbio se ditados pelas regras do mercado seriam obstáculos ao desenvolvimento do país se transformou no controle monetário e cambial exercido por órgãos subordinados aos interesses políticos e de grupos organizados. O incrível é que, em nome de sua aversão ao mercado, muitos apoiaram tal controle e, de quebra, os benefícios que gerou a determinados grupos, como se fosse uma defesa da soberania nacional ante o avanço do ‘imperialismo’ estrangeiro.
Essa não só é a face mais terrível dessa história, como é também uma das causas dos fracassados planos de estabilização dos anos 80. A espúria associação entre o uso de certa ortodoxia, de um lado, e os interesses estrangeiros, de outro — o que leva muitos a relacionar a heterodoxia aos defensores do interesse nacional –, deu a sustentação ideológica e simbólica aos planos de combate à (hiper) inflação que destruíram boa parte da geração que entrou no mercado de trabalho nos anos 80. Foi preciso a superação deste grave equívoco intelectual e histórico, ao menos por alguns, para chegarmos ao Plano Real em 1994. Quantos não se voltaram contra o Plano Real, acusando-o de ser o representante do neoliberalismo que entregaria o país aos norte-americanos, entre outras insanidades semelhantes? Se, por um lado, devemos receber com uma salutar desconfiança o elogio feito por Gustavo Franco ao mais bem sucedido plano econômico de combate à inflação que já tivemos em nossa história (afinal, ele foi um dos formuladores), por outro, alguém precisava sair em defesa do evento mais importante que ocorreu na economia brasileira nos últimos trinta anos sem medo de ser perseguido pela patrulha dos que não entenderam nada. Curioso é que tal defesa seja feita por um economista, e não por um político.
O livro de Gustavo Franco é, assim, inovador em sua forma e conteúdo. Só por isso, já deveria ser adotado pelos cursos de História, de Direito e de Economia. Mas o que talvez Gustavo Franco não saiba é que ainda que seu trabalho tivesse apenas um leitor atento em nossos já mencionados cursos dominados por inclinações marxistas, esta única exceção revela mais do que a princípio parece. Entre outras coisas, revela que os espaços ocupados ao longo do tempo por grupos que foram progressivamente vencidos em tantos embates de nossa trajetória foram, em geral, justamente os espaços negligenciados pelos vencedores. Ou seja, que há uma hierarquia que se revela não só entre os projetos vencedores e perdedores, mas também nos espaços que foram ocupados a fim de promover a reprodução e/ou sobrevivência destes últimos; que o federalismo, por exemplo, quando derrotado no embate contra o projeto de centralização imperial, ajustou-se nas franjas do poder de modo que, décadas depois, renasceu com força irresistível em São Paulo; que o centralismo, mesmo derrotado em 1891, se refugiou entre militares e positivistas de modo a, na melhor oportunidade, tomar a frente do país com a ascensão de Vargas em 1930; e, por analogia, que os ‘comunistas’, que tanto irritavam Gustavo Franco, se esconderam e sorrateiramente se reproduziram nas escolas e na academia para, décadas depois, se lançarem ao poder. Cada um coloniza o espaço que lhe sobra ou lhe interessa. No caso, os ‘não comunistas’ pouco se importaram com a Educação, e assim a escola e a academia se transformaram no melhor abrigo aos tantos que, na hipotética visita aos futuros historiadores descrita acima, vaiavam o ex-presidente do Banco Central.
Por isso, o inicial estranhamento sobre a reclamação do professor da PUC do Rio de Janeiro que não queria corrigir provas de ‘comunistas’ transforma-se em revelação: os ‘comunistas’ não mais escolhem ou se incomodam em cursar Economia ou História, na PUC carioca ou nas universidades públicas. Na verdade, eles nem sabem o que é ‘comunismo’ ou que eles são ‘comunistas’, afinal toda sua vida escolar pregressa foi assim. A educação, e seu lugar de formalização – a escola – e de aprofundamento – a Universidade –, abandonadas como foram pela elite, se transformaram no refúgio e, concomitantemente, no local de sobrevivência dos ‘comunistas’ que, ao longo da nossa trajetória, perderam embates cruciais à sua perpetuação. Eles colonizaram o universo educacional e lá apresentaram a sua formação e viés como os únicos possíveis. Portanto, transformaram-na em um espaço vinculado não à educação, mas ao jogo de poder.
Por isso, a indignação do professor Gustavo Franco deve se transformar em ação: se há um livro infantil chamado O Capital para as Crianças (Liliana Fortuny, editora Boitempo, 2018), que com todo o direito inicia os pequenos à obra de Karl Marx, devemos criar uma campanha para termos “Gustavo Franco para Crianças”. Seria uma justa maneira de mostrar a relevância de seu último livro para a ascensão de um novo debate que envolva, desde o início, a formação de futuros Economistas, Historiadores e Advogados.
Vinícius Müller é doutor em História Econômica pela USP e professor do Insper.