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segunda-feira, 20 de abril de 2020

Cadernos do chanceler Rio Branco: ainda sendo decifrados - Paulo Roberto de Almeida

Cadernos do chanceler Rio Branco: ainda sendo decifrados


Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 19 de abril de 2020


O Barão do Rio Branco, como se sabe, deixou muitos cadernos manuscritos, em sua letra difícil de ser decifrada, com anotações disparatados, ao sabor das negociações em que estava envolvido, desde os primeiros casos de arbitragem até o duro exercício da chefia do Itamaraty, sob um presidente autoritário, como foi Hermes da Fonseca. Muitos desses cadernos serviram para introduzir algumas das obras publicadas posteriormente, em 1945, ou desde essa época. Seus biógrafos têm dificuldades de organizar seus escritos, com vistas a publicar, não memórias póstumas – o que só cabe a Machado de Assis –, mas memórias do momento, apenas que decifradas e divulgadas postumamente. 
Em 2012, quando do centenário de sua morte, eu divulguei alguns desses escritos, muito desiguais, como se poderá constatar pela compilação de algumas dessas notas do Barão em um caderno que ficou durante muito tempo praticamente desconhecido, mas que transcrevo abaixo, antes de me lançar na decifração de outras páginas desse caderno.


Memórias do Barão do Rio Branco 
Nota Liminar do organizador

Paulo Roberto de Almeida

Dentre os muitos papéis deixados pelo Barão no momento de sua morte, na mais completa desordem, encontrava-se um curioso caderno, que permaneceu obscuro durante muito tempo – et pour cause –, cujas características passo aqui a relatar, antes de pronunciar-me rapidamente sobre seu interessante conteúdo. 
De aparência anódina, como um caderno qualquer de obrigações escolares – desses que instituições veneráveis, como o Colégio D. Pedro, adotavam como suporte de trabalhos de seus alunos, quase um caderno de rascunhos –, o que foi encontrado entre a barafunda de papéis que o Barão tinha deixado espalhados por pelo menos três mesas de seu gabinete (e em alguma gavetas da única cômoda que ali existia) era um [este que passei a ler a partir de cópias fotostáticas feitas por alguém certo tempo depois] de capa oleada marrom, lombada preta, circundado por um barbante (um tanto sujo devido a um uso provavelmente constante), que por sua vez retinha um simples pedaço de papel com esta inscrição a lápis, na letra inconfundível de Paranhos: “Reservado; não tocar”. 
Ao abrir o caderno – como constatei, na única manipulação que me foi dada fazer pelos zelosos guardiões do Arquivo Histórico Diplomático do Itamaraty, no Rio de Janeiro – o consulente se depara com outro pedaço de papel, de igual feitura (provavelmente destacado às pressas do mesmo pedaço de papel que serviu para compor a nota na capa), também rabiscado a lápis, na mesma letra, com estas simples indicações: “Proibida a reprodução ou divulgação antes de cem anos de minha morte; ver com Moniz de Aragão e Araújo Jorge as condições de sua preservação e manutenção sob sigilo pelo tempo indicado.” [Nota do compilador: o Barão se refere a seus dois principais auxiliares de chancelaria: José Joaquim Moniz de Aragão e Artur Guimarães de Araújo Jorge, mais tarde biógrafo e introdutor de suas obras completas, pelo menos aquelas publicáveis.]
Apenas isto, e nada mais. Nas páginas seguintes, numeradas à mão, já começavam as anotações manuscritas do Barão, algumas datadas, outras simplesmente localizadas no espaço (a maior parte do Rio, outras entradas feitas em Petrópolis), sem maiores indicações quanto ao dia exato de sua redação, a não ser alguma referência à agenda diplomática corrente – o que permite definir, em princípio, um momento provável de redação – ou a algum despacho por ele mesmo preparado – na sua indefectível letra cursiva – o que também permite reconstituir a cronologia da inscrição original.
As inserções são obviamente lineares, ou seja, feitas sequencialmente pelo Barão nos três anos seguintes ao seu aniversário de 1909, quando ele começou a redigir as notas do caderno escolar, em momentos diversos e com humores diferentes, mas sem o cuidado de manter a estrita cronologia de um diário “normal”. Por “diário normal” entenda-se o registro sistemático dos eventos correntes pelo seu redator, uma peça íntima que preserve o retrato exato do que o autor está pensando no ato de sua redação, a partir dos fatos do dia. Não é o caso deste “caderno de memórias” do Barão, que não concebeu os registros com esta intenção, mas provavelmente com o propósito de anotar pensamentos que lhe vinham ocasionalmente ao espírito quando confrontado a uma questão qualquer da agenda diplomática do Brasil ou de suas relações pessoais.
Ou seja – aqui já entrando na interpretação do que entendo seja a substância mesma do caderno de notas do qual empreendo agora a transcrição –, o conteúdo do volume em questão não conforma exatamente o que poderíamos chamar de “memórias”, no sentido corrente do termo. O Barão provavelmente pretendia – ao sentir o peso dos anos e o acúmulo de responsabilidades, depois de tantos presidentes a que serviu – deixar um testemunho sobre seu pensamento profundo – e verdadeiro – sobre os temas com os quais se entretinha, independentemente e além dos papéis oficiais que ocupavam 99% do seu tempo útil de diplomacia oficial a serviço da nação. E por que ele não queria que estas notas fossem divulgadas antes de pelo menos cem anos decorridos de sua morte? Presumivelmente porque tinha consciência do delicado de suas opiniões sinceras sobre pessoas, países, sobre fatos e percepções pessoais que mantinha nas mais diversas situações que enfrentava na labuta diária à frente da chancelaria, que já tinha sido a de seu pai e mentor respeitado. 
Rio Branco sentia necessidade de expressar-se de alguma outra forma que os telegramas e ofícios que mandava preparar sobre temas diversos, que as notas que redigia à intenção dos presidentes a que serviu – e eles foram muitos, mesmo que ele não pretendesse continuidade nas suas funções – ou que os muitos artigos de imprensa que redigiu ao longo dos anos, alguns até assinados com algum nom de plume, que ele escolhia ao sabor do momento, para defender-se de, ou atacar, algum inimigo concreto ou imaginário que ele detectava em certos editoriais e artigos de opinião não assinados sobre algum aspecto qualquer de sua diplomacia ou das relações internacionais do Brasil que ele tão bem conduzia. Ele não podia fazê-lo de modo público, pois muitas de suas impressões pessoais certamente causariam impacto – algumas até escândalo – se viessem a público pouco depois de sua morte, ou mesmo alguns anos depois. Ao iniciar a redação destas “memórias” não memorialísticas, Paranhos sabia que suas notas não poderiam, não deveriam, ser postas ao conhecimento público, dada a sensibilidade de certos temas, e também por uma razão muito simples: ele próprio estaria infringindo uma das normas básicas da diplomacia, que é a necessária discrição sobre as reais intenções dos atores da política internacional de um país em temas delicados da vida nacional, assuntos que têm a ver, necessariamente, com a autoestima nacional e o orgulho próprio que um Estado responsável mantém a respeito de seus interesses imediatos, sempre envelopados numa teia de boas relações e de desejos de positiva colaboração com algum outro ator da vida internacional, no plano bilateral, ou no quadro mais amplo de sua inserção mundial. 
As notas e inscrições rápidas do “caderno escolar” do Barão são, assim, mais uma espécie de “exercícios filosóficos” sobre as relações internacionais do Brasil, do que propriamente um registro fiel de sua labuta cotidiana à frente da chancelaria. Ele talvez quisesse utilizar os rascunhos do caderno como a hipotética base futura de um verdadeiro volume de “memórias póstumas”, se o tempo e uma aposentadoria tranquila lhe tivessem permitido retomá-los em condições de lazer e de dedicação integral a tal tipo de empreendimento. Disso não temos certeza, pois nenhuma indicação concreta nessa direção foi deixada no caderno ou em qualquer um dos muitos papéis – numerosos, desordenados, alguns até incompreensíveis, fora do contexto em que foram criados e deixados ao léu – amontoados em seu gabinete de trabalho (e de residência, quase podemos dizer) ao longo dos muitos anos que passou naquele casarão da rua Larga que veio a tomar outro nome, com as inconstâncias da vida republicana e a instabilidade que sempre tiveram os aspectos institucionais num Brasil quase tão desordenado quanto os papeis deixados por Paranhos. 
Mas os elementos especificamente formais desse “caderno íntimo” do Barão interessam ao público de hoje em dimensão menor do que seu conteúdo propriamente político, e diplomático. Este constitui o verdadeiro cerne de um pensamento rico que agora podemos desvelar em sua integralidade, sem as amarras que o século decorrido desde sua redação original impôs a um homem que, além de amar profundamente o país do qual ficou afastado durante tanto tempo – mais de vinte anos, a partir de sua designação para o consulado em Liverpool –, também soube consignar de modo mais claro um conjunto de opiniões momentâneas, mas reveladoras de sua preocupação com o futuro da nação grandiosa que ele antevia com sua visão de estadista responsável e ponderado. O Barão tinha, sim, ademais dos cuidados triviais com a diplomacia corrente, uma visão de futuro para o Brasil, uma grande estratégia que ele não conseguiu formalizar em algum livro de história diplomática ou de síntese das relações internacionais do país, mas que ele provavelmente pretendia redigir a partir destas notas que, graças a um conjunto fortuito de circunstâncias, passamos agora a revelar...

Paulo Roberto de Almeida
18 de janeiro de 2012


Memórias do Barão do Rio Branco (1)

José Maria da Silva Paranhos Jr.
Petrópolis, 20 de abril de 1909
[Transcrição e modernização da ortografia destas “memórias” por Paulo Roberto de Almeida, a partir de manuscritos encontrados nos papéis deixados pelo próprio.’

Por que decidi escrever estas memórias?
Escritores são, em geral, fantasistas notórios; alguns deles, inclusive, chegam a ser mentirosos, o que, aliás, é próprio do seu ofício. Por isso, decidi rabiscar eu mesmo estas linhas, resumindo, embora a largos traços, a minha vida. Mirando-a retrospectivamente, não posso deixar de julgá-la bem-vivida, até agraciada pela Sorte, essa madrasta que nos persegue os passos, pensando causar-nos troças a cada etapa de nosso itinerário terrestre. Mas não pretendo lhe deixar esse prazer: ubique, eu mesmo cuido de minhas memórias, sobretudo se elas tratam da pátria!
Por que o faço agora? Porque, justamente, quero registrar de meu próprio punho uma longa trajetória de vida, antes que algum desses áulicos que me seguem fielmente no meu reduto diplomático, ou que alguns, dentre os muitos jornalistas que me têm apreço nos pasquins e mesmo nos jornalões cariocas, decidam empreender, eles mesmos, alguma biografia não autorizada. Qualquer que seja seu caráter, simpática ou não ao que venho fazendo para engrandecer a pátria, acredito que ela não será muito fiel ao que penso deva ser um relato seletivo da minha vida e das minhas atividades à frente do único ministério capaz de fazer orgulho a um Brasil nem sempre admirado no cenário internacional. Mas, confessemos, cá entre nós: esta nossa Casa, que nos velhos tempos do Império se chamava Repartição dos Negócios Estrangeiros, de tão nobre memória, sempre foi a maior admiradora de si mesma...
Também o faço porque alguns dos meus colaboradores, e até os senadores da República, vêm se mostrando incomodados com a falta de relatórios da minha gestão à frente do Itamaraty, uma decisão que tomei desde o dia da posse, naquele, agora longínquo, dia de dezembro de 1902, numa das mais importantes inversões da minha já longa trajetória de vida. Sete anos atrás, não sabia se era justa a minha decisão de trocar a absorvente vida diplomática na capital da Alemanha imperial por esta cidade ainda cheia de mosquitos, de doenças endêmicas, com sua quota excessiva de miasmas, o que me obriga a subir regularmente a serra em direção ao meu chalé de montanha. 
Não pretendo desculpar-me com meus colegas diplomatas pela falta dos relatórios anuais: pelo menos não corro o risco de lhes amarrotar a autoestima. Por isso, deixo o julgamento definitivo de meus atos aos historiadores do futuro, que por certo saberão encontrar o que buscam nos muitos documentos já acumulados em minha gestão; talvez até encontrem estas memórias – que não sei bem quando terminarei – entre as pilhas de papéis que locupletam, na mais perfeita desordem, as várias mesas de meu gabinete. On n’est jamais si bien servi que par soi-même. Mais, passons...
Também quero deixar agora consignadas, neste mês de abril de 1909, as razões que me levaram a recusar, de maneira peremptória, firme e irrevogável, o generoso oferecimento de uma candidatura, praticamente vitoriosa, à presidência da República, certamente o cargo mais honroso que um homem público pode desejar, em qualquer país, em qualquer época. Confesso, tanto intimamente, quanto aos que lerem estas linhas em algum tempo do futuro, que não tenho a menor vontade – não digo de disputar eleições, já que estas, no Brasil, são feitas a bico de pena, e o candidato saído da convenção dos congressistas já é uma aceitação nacional – de assumir um cargo que me obrigará a tratar com os mesmos políticos que, no íntimo, eu desprezo, que considero particularmente medíocres ou que julgo incapazes e incompetentes para conduzir um Brasil atrasado à posição que ele mereceria ocupar na cena internacional. 
O próximo presidente da República será, provavelmente, esse marechal teimoso como uma mula, mas timorato nas decisões, e que hesitou diversas vezes em lançar-se ao cargo, quando todos sabem que minhas preferências – a despeito das diferenças que acumulamos desde a conferência da Haia – estariam naquele brilhante advogado baiano, arrogante e vaidoso em suas pretensões de jurista internacionalista, ainda assim melhor preparado do que a mula fardada que se prepara para dirigir um país difícil como o Brasil. E talvez eu já não tenha mais forças para fazê-lo...
Minha aspiração – sem pretender chocar os que lerem estas minhas memórias desabusadas, algumas décadas mais à frente – é a de que o Brasil possa dispor, no futuro, de homens políticos mais bem preparados para o cargo, tribunos competentes e educados, estadistas comprometidos com a dignidade das causas nacionais, sem essas nódoas de corrupção que nos maculam internacionalmente, sem o peso da ignorância abissal que infelizmente ainda marca muitos dos aventureiros e oportunistas que procuram cargos públicos, alguns inclusive por razões inconfessáveis. No momento, quero apenas estar em paz com minha consciência, mesmo sabendo que minha recusa em aceitar a candidatura à presidência praticamente colocará nesse mais alto cargo da República, em lugar de um jurista pretensioso, um militar que pode aprofundar o desmantelamento de nossas instituições de Estado, propenso como ele parece ser a continuar com essas viciosas políticas de intervenções nos estados. Não quero ser parte dessas vergonhas nacionais e pretendo encerrar minha gestão tão pronto o presidente Affonso Penna apenas termine a sua. Tenho ainda a resolver negociações já em curso de tratados de limites com o Peru e com o Paraguai, e antecipo uma concessão adicional ao Uruguai, para dar por encerrada minha obra de fixação definitiva de todas as nossas fronteiras. Depois disso abandono fraques e polainas, tão incômodos no calor carioca, e coloco definitivamente as chinelas...

O que tenho a dizer sobre a minha maior obra diplomática?
Não me cabe, em causa própria, relatar tudo o que fiz, desde a primeira questão de arbitragem contra nossos vizinhos platinos, passando por todos os outros casos de limites, arbitrados ou negociados, ao longo dos primeiros anos da República, ou como ministro da mesma nos últimos sete anos. A vida me deu muito mais do que eu poderia querer, já que minha intenção, enquanto ainda estava em Liverpool – por obra e graça da princesa regente, diga-se de passagem, pois seu pai imperador nunca me designou para nada –, era juntar dinheiro suficiente para comprar um fazendola de café no interior de São Paulo, juntar os meus livros de história e passar o resto dos meus dias especulando com o nosso “ouro negro” e, finalmente, terminar a minha prometida história militar e diplomática do saudoso Império.
Quis a História, essa outra madrasta sempre misteriosa e tão cheia de surpresas, que não fosse assim: a morte infeliz do primeiro negociador do território das missões me tirou de um plácido esquecimento em Liverpool – na verdade, trocada frequentemente pela mais vibrante capital francesa –para me jogar no centro da mais importante questão de limites a dividir castelhanos e portugueses desde os tempos coloniais, problemas nunca resolvidos satisfatoriamente pelos tratados de Madri, de El Pardo e Santo Ildefonso. Além da justeza das nossas posições, bem fundamentadas na documentação colonial – parte da qual coletada décadas antes por Ponte Ribeiro em suas andanças sul-americanas – creio que o Brasil foi beneficiado pela simpatia natural que o presidente da grande república do Norte tinha pela sua contraparte no hemisfério meridional. Depois, apoiado no meu primeiro sucesso diplomático, fui novamente convocado a servir ao país, desta vez enfrentando os franceses, na chamada questão do Oiapoque: confesso ter me utilizado de todos os meios disponíveis, inclusive os menos confessáveis, facilitados pelo amigo Emilio Goeldi, em Berna, para colocar o presidente da neutra Confederação do nosso lado, a despeito dos laços tradicionais de amizade que uniam a Suíça à França vizinha, em especial desde os tempos de Napoleão. 
O cansaço físico e o desejo de, por uma vez, gozar de uma vida diplomática normal – já que eu tinha sido apenas cônsul por longos anos – me impeliram a recusar uma nova arbitragem nas fronteiras do norte, desta vez contra a pérfida Albion, que pretendia abocanhar boa parte do nosso território amazônico para incorporar à sua Guiana. Indiquei para a tarefa o meu amigo dos tempos monárquicos, Quincas Nabuco, e procurei ajudá-lo em tudo o que estivesse em meu alcance. Mal sabia eu que a aceitação do rei da Itália como árbitro iria trazer-nos tantos dissabores, já que Vitório Emanuel agiu franca e desonestamente em favor da Grã-Bretanha, subtraindo-nos milhares de quilômetros quadrados a que tínhamos direito, pela força dos braços e pernas dos nossos exploradores lusitanos e pelos traçados detalhados dos cartógrafos que lhes seguiram.
Foi por isso que no próximo caso que se me apresentou – já nos preparativos para assumir o ministério, a que relutantemente acedi depois de muita insistência de Rodrigues Alves – decidi não mais recorrer a essas arriscada arbitragens, preferindo entabular negociações diretas com os volúveis bolivianos, que nesses tempos andavam cedendo sua soberania nacional a sindicatos de aventureiros imperialistas. Para tanto, reuni, na tarefa de ajudar-me a construir o caso do Brasil, uma penca de jovens diplomatas ambiciosos, tendo, no entanto, de dispensar os serviços do mais experiente Oliveira Lima, um espírito por demais cheio de si para consentir auxiliar-me junto aos peruanos, inquietos com o que se lhes podia vir em prejuízo, dada minha intenção de separar as duas questões. Mas, dessa e de outras negociações de limites eu tratarei mais adiante, bastando-me mencionar agora que encontrei o ministério bem cuidado, sob o olhar vigilante, mesmo se cansado, do velho Cabo Frio, ainda que excessivamente vetusto nas maneiras e conservador nas suas práticas, necessitando ademais de alguns empurrões aqui e ali para mostrar do que o Brasil era capaz, nas Américas e no mundo.
Felizmente Campos Salles e Murtinho realizaram oportuna obra saneadora de nossas finanças, o que me habilitou a requisitar novos meios e fundos públicos para investir num mais do que bem-vindo processo de modernização deste velho ministério de tradições ainda muito lusitanas. Como sempre, a velha Albion fornece o modelo ideal segundo o qual deveria funcionar nossa diplomacia, já que o seu Foreign Office é, por outras vias, uma verdadeira “esquadra inglesa”. 
Sobre isso falarei um outro dia...

JMSPJr.
Petrópolis, 20 de abril de 1909


Los hermanos, siempre tan hermosos...

José Maria da Silva Paranhos Jr. 
Rio de Janeiro, 2 de maio de 1910
[Transcrição e modernização da ortografia destas “memórias” por Paulo Roberto de Almeida, a partir de manuscritos encontrados nos papéis deixados pelo próprio.]

Pronto! Acabo de confirmar ao Senhor Presidente, que me havia interrogado a esse respeito, que o Brasil participará das comemorações do assim chamado “centenário da independência argentina” (com aspas, comme il faut), neste próximo 10 de maio, com uma delegação normal, isto é, por meio do nosso próprio ministro em Buenos Aires, e não com alguma embaixada especial ou enviado extraordinário. A decisão, é bom que se diga, foi só minha, e a considero plenamente justificada, como expliquei ao Senhor Presidente. Meus auxiliares, todavia, me dizem, desde já algum tempo atrás, quando, refletidamente, tomei tal decisão, que se trata de um erro monumental. Alguns deles, inclusive, parecem ter ficado abalados com o que chamam de descortesia gratuita de minha parte, enfim, mais uma demonstração de birra pouco diplomática vis-à-vis nuestros hermanos...
Curiosa essa menção a erro, porque isto me lembra de uma frase à propos, que já ouvi há muito tempo, de um desses nuestros hermanos justamente, mas já não sei dizer de quem, de onde ou quando: He cometido un error fatal! Y el peor es que no sé cual...
Talvez eu também tenha cometido algum erro fatal, mas não sei dizer exatamente qual, embora minha impressão sincera é a de que o equívoco está com eles, não comigo. O erro, terrível, no dizer de meus auxiliares – que se desesperam com esta minha decisão – teria sido representado pelo fato de não termos enviado nenhuma delegação especial, representando a nação brasileira, às comemorações oficiais do centésimo aniversário do 10 de maio argentino, quando tantos países o fizeram. Muitos outros países, justamente, designaram plenipotenciários especiais, alguns a nível de ministros de relações exteriores, uns poucos até com o deslocamento de seus chefes de governo, o que me parece um pouco exagerado, mais laissons cela à leur critèreChacun est maître de ses décisions...
Descarto qualquer erro de minha parte, mas como não posso externar minha opinião au grand large, o faço aqui para a posteridade (e a devida fidelidade a esta musa sempre tão conspurcada que atende pelo nome de História). A sinceridade é uma dessas virtudes que, infelizmente, poucos homens públicos podem externar em todas as circunstâncias.
Qual erro cometi, afinal, já que não vejo nenhum em minha decisão de não ver nesse dia nada de realmente extraordinário? Seria o 10 de maio uma efeméride suscetível de mudar dramaticamente o curso da História, na mesma categoria dessas de que me ocupei largamente no passado? (É bem verdade que me ocupei também, nas efemérides, de fatos corriqueiros, mas isso foi mais por distração do que por verdadeiro culto a essa musa, que no entanto respeito e venero, como uma das minhas preferidas, ao lado daquela que comanda aos prazeres da mesa, se por acaso existir uma tão gourmande quanto eu...) 
Os argentinos estão festejando, com orgulho indevido em minha opinião, o 10 de maio de 1810, que é quando nossos vizinhos acreditam que “conquistaram” a sua independência da Espanha (ou de Napoleão, sejamos mais claros). O fato, absolutamente verdadeiro, é que no 10 de maio de 1810, não foi proclamada nenhuma independência argentina. Nada aconteceu nesse dia, a não ser o reconhecimento, pelo cabildo de Buenos Aires, de algo absolutamente fáctico, tão evidente que sequer havia necessidade de qualquer proclamação em torno disso: o trono de Espanha, o legítimo, tornou-se obviamente vacante – mas não foi nesse dia – em função da “destituição”, de seu real cargo, de um desses Bourbons que os próprios franceses tinham se esforçado para colocar no trono de Espanha um século antes. Mais uma querela dos Pirineus...
 Eles, os argentinos, que nisso são equivocadamente seguidos por meus auxiliares, acreditam que sua independência começou nesse dia – eles comemoram, na verdade, duas ou três datas, dependendo da utilidade – quando ela só se firmou, de verdade, muito tempo depois, mais até do que seu orgulho nacional o permitiria. Ela de fato só ocorreu, e mesmo assim de maneira passavelmente confusa, depois que San Martin andou fazendo valer o que de fato vale na vida das nações: a crítica das armas, não as armas da crítica. Estas, como grande parte do palavrório dos diplomatas, se traduzem muitas vezes em declarações chorosas, que falam da “opressão dos invasores”, ou da “usurpação do trono”, enfim, essas frases ocas, em que comprazem nossos colegas de carreira. 
Todas essas construções intencionais, de uma pré-ciência de “momentos históricos”, de fato delineados a posteriori, servem apenas para alimentar os mitos nacionais, quando a realidade é que a soberania e a independência de uma nação só se garantem na ponta dos sabres, como afirmava o velho Bismarck, ou numa eventual carga de cavalaria, como parecia preferir seu colega de conquistas, o general Moltke. Seja como for, esses nuestros hermanos, siempre tan hermosos, inventaram o mito do 10 de maio apenas para ter precedência sobre nossa própria independência, e querem que acreditemos nisso. Sinto muito, mas não caio nessa peta!
Se me permito aqui parafrasear o general Roca, nosso amigo sincero – dos poucos que temos naquele país de arrogantes gaúchos que se creem ingleses dos pampas – eu diria que muitas coisas nos unem, mas algumas nos separam (mas isso eu não posso afirmar de público). Já não me refiro ao esporte bretão, que parece começar a empolgar multidões dos dois lados do Prata, mas sim a interesses concretos, com destaque para o equilíbrio de nossas forças navais, cruciais na nova conformação dos fatores de guerra que teve início pela construção dos primeiros dreadnoughts pela Royal Navy. Não acredito que possamos levar muito longe essa insana competição por encouraçados cada vez maiores e poderosos, inclusive porque o nosso pobre orçamento não o suportaria (e esta é uma das poucas razões pelas quais apoio esse difícil pacto ABC, quando preferia ter apenas o Chile como aliado constante e fiel, junto a nosso grande irmão do norte, um pouco inconstante, este). 
Os argentinos são, sem sombra de dúvida, muito mais ricos do que nós; aliás, mais até do que vários europeus (e, ouvi dizer, até mais do que os franceses, que cunharam a frase, muito frequente em suas operetas, de riche comme un argentin...). Nossos vizinhos podem, portanto, se permitir essas loucuras com seus orçamentos militares, ainda que a quebra do Barings – quando eu começava a me ocupar, justamente, do nosso conflito em torno de Palmas – comprove que, mesmo assim, nem tudo é possível de se fazer com o dinheiro alheio. Os pobres venezuelanos, aliás, sabem muito bem disso, ao terem tido de suportar o peso de canhoneiras estrangeiras, porque um desses coronéis malucos que frequentemente se apossam do poder naquele confuso país andino e caribenho se recusou a cumprir com suas obrigações financeiras, algo que nosso Império, sempre tão endividado, jamais chegou a cogitar. Se tivemos de negociar nosso último funding loan em termos que não foram certamente os mais flâteurs para nossa dignidade nacional, foi porque um bando de bárbaros do sertão nos obrigou a levar uma guerra frustrante, em quatro sucessivas expedições, que consumiu nossos parcos recursos do café, como antes já tinha ocorrido com a maldita guerra contra o ditador Solano Lopez.

Pois bem, voltando às “comemorações do 10 de maio”, imagino que um dos meus críticos argentinos – me refiro ao inacreditável Estanislao Zeballos – possa estar agora falando de mim: “Maldito barón” – com b minúsculo, para me diminuir um pouco mais – “siempre depreciando a nuestra patria, como si Brasil no fuera una porqueria, un cambalache, yá lo sé...”. Foi ele mesmo que nos levou a esta situação absurda de competição naval, com sua agressividade militarista tão desproporcional quanto às supostas ameaças do Brasil e do Chile, que o próprio presidente José Figueroa Alcorta teve de demiti-lo em meio ao seu mandato. Zeballos nunca engoliu o que continua a chamar de “desmembración” do território argentino, mas que foi apenas um laudo impecável do presidente americano, em face de meus argumentos absolutamente fundamentados na história – e na nossa boa cartografia lusitana – em defesa do nosso pedaço das Missões. O mesmo belicoso Zeballos, quando ministro, queria controlar nossas aquisições de fragatas na Europa, e até “dividi-las” com eles (o absurdo!), mas nunca hesitou em exigir de seu próprio presidente aumentos fabulosos das compras militares argentinas, como tampouco se eximiu de propor a preparação de suas forças navais para eventualmente ocupar o Rio de Janeiro pela força.
Como querem, agora, que eu conceda em enviar uma delegação de alto nível a um país que falseia sua história, que mantém sonhos ridículos de grande potência e que, além do mais, reincide num protecionismo renitente, que prejudica nossas legítimas exportações de açúcar e de algodão? Como querem meus auxiliares que eu me disponha a assinar um acordo de comércio preferencial com nossos vizinhos – concedendo-lhes as mesmas vantagens que eu concedi às farinhas americanas – se eles continuam a comprar quantidades ínfimas do nosso precioso café? Não! No que depender de mim, não haverá acordo comercial de nenhum tipo com os argentinos, até que eles nos reconheçam como uma nação tão merecedora de consideração como aquela que eles estão sempre tão dispostos a conceder à velha Albion, que eles, também ridiculamente, estimam ser o seu modelo a imitar, ainda que não exibam toda a pompa e circunstância da Corte de St. James.
Sei que o dileto amigo Julio Roca sempre propugnou por uma estreita união dos dois países, afirmando, ao nosso Campos Salles que, ao desenvolver “laços da mais íntima amizade”, Brasil e Argentina, juntos, seriam “ricos, fortes, poderosos e livres”. Pode ser que, um dia, de fato cheguemos a essa situação, de sólidos vínculos entre nossas duas economias, mas não antes que nuestros hermanos abandonem sua ideia de preeminência militar, mesmo que continuem mais ricos do que nós por certo tempo ainda. Atualmente, eles quase se igualam à riqueza americana, mas essa situação pode não perdurar, e o Brasil chegará a ser também, um dia, rico e poderoso, se para tal lhe ajudarem o descortino e a capacidade intelectual de nossos líderes, hoje, infelizmente, tão carentes de educação econômica e tão pouco propensos a educar o povo, como preconizou para a Argentina, tão justamente, o genial Sarmiento. Quando teremos um intelectual como ele, entre nós?
Esse dia chegará, estou seguro, mas certamente não será do meu tempo; talvez dos meus netos, mas sobre isso falarei um outro dia...
JMSPJr.
Rio de Janeiro, 2 de maio de 1910


Memórias do Barão do Rio Branco (3): 
Militares e intelectuais: tão diferentes, tão semelhantes...

José Maria da Silva Paranhos Jr.
Rio de Janeiro, 15 de novembro de 1910
[Transcrição e modernização da ortografia, por Paulo Roberto de Almeida,
a partir de manuscritos encontrados nos papéis deixados pelo Barão;
títulos e intertítulos dos capítulos sob responsabilidade do organizador.]


O novo presidente da República, o Marechal Hermes da Fonseca, tomou posse hoje, numa cerimônia assez simple, feita de assinatura de livros de posse, dois discursos rápidos e poucas congratulações. Fui reconduzido nas mesmas funções em seu gabinete (que aliás ainda não está todo constituído), como tinham anunciado alguns meses antes os auxiliares do presidente eleito, mesmo sem ter me consultado, o que me pareceu demonstrar duas coisas: ou benemerência sincera, em relação a meus serviços à frente desta Secretaria de Estado, ou arrogância desmedida, de quem se julga mestre de tudo e de todos.
O Marechal o fez a despeito de meus protestos de desprendimento ao cargo, o que eu já tinha demonstrado de sobejo. Como todos sabem, a candidatura à esta presidência me foi oferecida, de bandeja, se ouso dizer, mais de um ano atrás, coincidindo a pressão política em favor do lançamento de meu nome com o meu natalício dos 64 anos; creio ter feito muito bem em recusar. A despeito de ter uma eleição praticamente assegurada, uma vez que o congresso do partido ratifica o nome do candidato, nunca gostei, de fato, da vida política, pois acho os homens dessa sorte muito enfatuados, e dispostos a prometer qualquer coisa aos políticos que os elegem, o que apenas confirma meu desgosto da vida política. Sim, porque no Brasil não são os eleitores que determinam a vida política do país, e sim é o atual sistema de partidos estaduais que decide quem serão os “representantes” do povo.
Não fosse isso, dois outros fatores contribuiriam para me afastar desse mundo de pequenas trapaças e grandes enganações, como é a política no Brasil: as intervenções nos estados, o que vem gerando tensões insuportáveis não apenas no meio político, mas também no Judiciário; e o fato de termos uma Constituição muito contraditória, que permite tudo aos estados – depois de décadas de centralização monárquica – e lhes deixa numa situação de virtual liberdade, para contrair dívidas e conduzir os seus negócios como se fossem verdadeiros países soberanos; isso vai acabar por tornar periclitante a própria federação que os republicanos quiseram criar, contra os sãos princípios do Império.
Acresce a isso o fato de que eu sempre vi com muita simpatia a candidatura do Doutor Ruy ao cargo supremo da Nação, destino que lhe parece estar reservado em algum momento do nosso futuro, a despeito mesmo dessas frustrações que hão de ser temporárias. Não obstante os pequenos desentendimentos que ambos tivemos ao longo de todos esses anos de turbulências republicanas, a começar pela negociação com os bolivianos e, depois, o affaire Drago-Porter na segunda conferência da Haia, eu considero o jurisconsulto baiano um dos homens mais preparados para governar um país quase ingovernável como o Brasil. E, apesar disso, de todas as suas qualidades e de suas propostas altamente necessárias num país de pouca inteligência política como o Brasil, o grande civilista Ruy foi derrotado pelo militarista Hermes, o que demonstra que, depois de tantas desventuras com seus caudilhos militares nas repúblicas irmãs do continente, nosso país também se deixa seduzir pelo charme pouco discreto dos homens da farda.
Explica talvez a vitória de Hermes – certamente conseguida à custa do famoso “bico de pena” – o fato de ser sobrinho do Marechal que inaugurou esse sistema anárquico em nosso país, quando estávamos tão bem na condição de única monarquia do Novo Mundo, uma verdadeira república neste continente de caudilhos, como aliás disse de nós um presidente venezuelano. Os militares de nossos turbulentos vizinhos sempre interferiram nos negócios internos desses países, talvez à falta de grandes ameaças à soberania nacional, como soe acontecer na velha Europa: por aqui eles cuidam mais dos soldos do que dos soldados inimigos, e como os políticos relutam em aumentar-lhes a paga...
No Brasil, eu os respeito, mas de forma nenhuma os venero, pois sei que muita gente no partido militar tem inclinações que beiram o despotismo, como já nos demonstrou sobejamente aquele marechal das Alagoas, que disse que iria responder à bala qualquer intromissão de estrangeiros nos assuntos do seu governo. Não é coisa que se faça, obviamente, sequer que se diga, pelo menos não de público, ainda mais quando os estrangeiros já estavam de fato envolvidos na infeliz guerra fraticida que sacudiu esta bela capital, pelo fato de alguns dos bravos da marinha, que lutavam contra a ditadura do dito marechal, se terem homiziado em barcos estrangeiros. A “diplomacia” do Marechal não foi diplomacia nem aqui nem no Império chinês e Deus nos livre de um dia cair numa ditadura de marechais como esse de olhar mortiço, de língua solta e de sabre ainda mais folgado (se não são os canhões, que ele não hesita em mandar disparar, contras seus próprios companheiros). Apenas espero que este Marechal que agora começa seu quadriênio, e que me tem amarrado ao seu governo, não tenha as mesmas ideias liberticidas...
Enfim, se o Ruy não vencer em alguma próxima eleição, em vista da sua idade, que bate com a minha (com 4 anos de vantagem), pode ser que o Brasil não tenha mais nenhum candidato dessa estatura intelectual nem nos próximos cem anos. Com efeito, olhando-se o panorama de miséria educacional brasileira, não se pode esperar por algum outro sábio do porte do Ruy antes de muito tempo; não quero tripudiar sobre o ensino do nosso Colégio Imperial, onde já fui professor e conheço a qualidade dos seus mestres, mas o quadro da cultura em geral, e o da cultura política em particular, é lamentável. O ambiente político no Brasil tende a recrutar as piores vocações, os seres mais oportunistas, as inteligências mais medíocres, se nisso não vai nenhuma contradição. 
Em contraste, os militares não são melhor dotados em inteligência, mas são mais bem organizados, dispõem, em todo caso, de uma máquina bem azeitada que, com exceção de algumas áreas da nossa magistratura, justamente (e nem todas, pois também frutas podres existem nesses meios), pode oferecer-lhes as condições ideais para que se ocupem das mais variadas funções no Brasil, pela razão, ou pela força, como dizem os chilenos. De fato, os únicos bons matemáticos e engenheiros que temos neste país são os que saem das escolas militares, pois no ambiente civil o que temos é uma pletora de bacharéis em direito. Como digo sempre, quem cria a riqueza de um país são os seus engenheiros e homens de ciência, pois a única coisa que, em geral, produzem os bacharéis e os intelectuais é o déficit público.

Pois, a primeira coisa que fez o Marechal eleito, quando “venceu” esse escrutínio de cartas marcadas, em março último, foi mandar-me sondar para saber se eu não queria continuar no cargo. Não lhe respondi de imediato, apesar de todos saberem que eu estava com o Ruy nessas eleições (tão previsíveis como as que temos por aqui), porque não pretendia ser indelicado, recusando por intermediários uma nova recondução ao cargo que já tenho para mim há quase oito anos, o que me tem fatigado a retina e amolecido os ossos. De resto, como sempre fazem todos os presidentes eleitos, o Marechal pronto embarcou para sua viagem à Europa, o que me oferecia um tempo conveniente para pensar e refletir sobre o que significa, para mim, servir a um militar dos mais coroados. 
Como eu dizia, intelectuais têm poucas chances de se sobressaírem neste país de poucas luzes e de muita escuridão mental. Eu mesmo ando cercado por alguns, mas não vejo sair de suas cabeças brilhantes nenhuma proposta sensata para diminuir a nossa falta de progresso material e o nosso atraso espiritual, capaz de vencer o abismo de prosperidade que nos separa da vizinha Argentina, que não só é rica, como extraordinariamente educada (e uma coisa vai com a outra, suponho). Intelectuais, aqui, estão sempre querendo alguma prebenda pública, algum favor do governo, algum cargo em comissão, uma sinecura em alguma de nossas legações, enfim, essas coisas que herdamos dos nossos patrícios d’além-mar e que continuam a infernizar nossas vidas e as burras do Estado, mesmo oitenta anos depois de o termos para nós, exclusivamente. 

Os militares tampouco exibem propostas muito diferentes, mas o quê os intelectuais têm de desorganizados, eles querem se ver como os mais organizados do país, e de certo modo o são. Na verdade, eles fazem de tudo para parecer organizados e racionais, positivistas, como é de seu estilo, embora eu ache que esse Auguste Comte errou em quase tudo (e que essa tal de sociologia só me parece servir para alimentar revoluções). Enfim, não se pode pedir muito rigor matemático a quem se ocupa de assuntos humanos e sociais...
O Marechal, em todo caso, me parece de um rigor exemplar, meticuloso no planejamento de suas atividades e exigente na sua execução. Ele talvez coloque um pouco de ordem nessa confusão de vontades estaduais, cada qual voltada para pequenos assuntos de velhas oligarquias, sempre renitentes em abandonar o poder, e de novas ambições, sempre muito vastas, de fato desmesuradas. As antigas províncias imperiais eram mais bem administradas, já que o Imperador escolhia ele mesmo os seus governadores; agora, quando predominam os interesses mesquinhos e as propostas mais descentralizadoras, o governo da União tem estado a “corrigir” alguns desses desvios, por vezes com a mão de ferro das intervenções. O novo Marechal, ao menos, parece estar imbuído do sentido da ordem e da unidade nacional: esperemos apenas que não seja a ordem da espada. 
Do seu apreço à ordem, quem me relatou foi o Oliveira Lima, em ofício de Bruxelas, no qual confessou não ter ido buscar o Marechal à chegada do trem de Paris, por falta de um telegrama de instruções de nossa Secretaria de Estado. Ora essa! Ele que se informasse do itinerário do Marechal, que estava anunciado em todas as folhas e até mesmo nos pasquins da oposição. Por um momento temi que o Marechal considerasse que eu não tinha mandado telegrama a Bruxelas pelo fato de ambos, Lima e eu, termos apoiado seu opositor nas eleições, quando o que ocorreu foi apenas um atraso na entrega do cable da Western Union (por uma vez!). O Marechal parece ter antipatizado com o Lima, também um apoiador declarado da campanha civilista, como não se pejou de informar em seus artigos de imprensa: mal avisado andou, pois diplomata não devia ter partido político...

Dois meses depois recebi nova comunicação do mesmo Oliveira Lima solicitando-me autorização para se ausentar do seu posto em Bruxelas, por umas tantas semanas, para dar o que ele me apresentou como sendo um curso na Sorbonne, especificamente numa “chaire du Brésil” (que eu sequer sabia que existia). Tal como dito no telegrama, se trata de uma “chaire des études brésiliennes” criada na Universidade de Paris, sob pretenso patrocínio de uma mal conhecida “Union Scolaire franco-pauliste”, afiliada ao “Groupement des Universités et Grandes Écoles de France pour les Relations avec l’Amérique Latine”, o que me parece ter o ar de manigance. Oliveira Lima explica que ele deve dar o seu curso em “douze leçons à l’amphitéâtre de la Faculté de Lettres” e isso da 15 de março a 5 de maio de 1911, ou seja, dentro de aproximadamente três meses.
Tudo isso ele colocou num cable da Western Union, que pela sua extensão, deve ter custado metade de toda a verba alocada a comunicações em Bruxelas durante um ano; entendo que o gastador jogará mais essa despesa na conta da legação, como ele já fez algumas vezes, ao comprar livros raros auprès de libraires da Europa. Pela data de criação dessa chaire, em 2 de novembro último, deduzo que foi o próprio Oliveira Lima quem instigou sua criação, apenas para passar algumas semanas em Paris, o aproveitador. E isso por uma duração de quase três meses, por acaso, ou por coincidência, justo na primavera parisiense. Creio que nem vou responder a seu pedido, pois ele já decidiu ir, de seu próprio chef, e não se comoveria com alguma ponderação minha para que se atenha a suas funções de enviado do Brasil nas terras da Bélgica e nos reinos escandinavos.
Oliveira Lima é um exemplo de intelectual que se deixou meter pelo mundo da política e que pretende grandes cargos na República, ainda que faça tudo para diminuí-la em comparação com a velha monarquia que tivemos por tantos anos. Não quero depreciar seu trabalho de historiador, mas o seu tato para a política é o de um orangotango numa loja de porcelana. Seu trabalho sobre D. João VI no Brasil é certamente uma obra memorável – feita, aliás, com a minha ajuda indireta, pois deixei-o de “férias” no Rio, enquanto ele não aceitava outro posto – mas ele devia dedicar-se mais aos trabalhos do seu ofício do que a esses ofícios de escritor que lhe dão tanto trabalho...
Ele vai querer mais um conto de réis para ficar em Paris por uma primavera, dar algumas palestras das quais certamente resultará um novo livro, provavelmente vai colocar outros tantos livros na conta da legação, e ainda acha que a Secretaria de Estado deve pagar por todas essas mordomias. 
Alguém precisa dizer-lhe: Haja dinheiro, senhor Embaixador!

JMPSJr.
Rio de Janeiro, 15 de novembro de 1910



[Novas páginas dos cadernos de notas do Barão estão sendo decifrados a partir daquela sua letra difícil, miúda, quase criptografada. Assim que for possível continuar o trabalho, daremos divulgação a trechos suplementares. Paulo Roberto de Almeida]