Recomendo ler, com atenção. O que eu fiz e não hesitei em encontrar ou inventar um novo título ou qualificação para este diagnóstico cruel de uma realidade com a qual os brasileiros nos defrontamos:
Brasil: uma cleptocracia pouco republicana, aberta aos oportunistas espertos e às oligarquias predatórias
Paulo Roberto de Almeida
Congresso Nacional: da constituição cidadã à degradação republicana
* Paulo Baía
Era uma vez um país que ousou sonhar com uma república viva. Ouvia-se, nos corredores de seu Parlamento, os ecos de um tempo fundante, tempo de reescrita, tempo de refundação. O ano era 1987. O povo ainda fermentava nas ruas, ainda sangrava de uma ditadura que não havia sido completamente sepultada, ainda desejava dizer: agora somos nós. Dali emergiu a Constituição de 1988, chamada com reverência de Constituição Cidadã, como se nela pulsassem os corações silenciados por duas décadas de chumbo. O Congresso Nacional era então um lugar de possibilidades, de fricções criativas, de esperanças germinando entre artigos e incisos. Havia contradições, havia limites, havia vícios. Mas havia também coragem. Havia decência institucional. Havia desejo de país.
O que se vê hoje, no entanto, é um outro cenário. É a lenta, ruidosa e devastadora degradação republicana. A casa que um dia aspirou representar a pluralidade do Brasil se converteu numa cidadela fechada. A arquitetura monumental que abriga os plenários virou teatro de um drama infame, onde cada cena é encenada não para o bem comum, mas para a manutenção de privilégios. O Congresso abandonou seu papel de representação popular e federativa, entregou-se ao patrimonialismo sem disfarces, ao clientelismo blindado por mecanismos técnicos de difícil decifração, ao poder quase litúrgico das emendas parlamentares, que são hoje a moeda com que se compram silêncios e se vendem consciências.
O país que ergueu sua Constituição com a promessa de um federalismo cooperativo assiste agora à sua própria fragmentação. A república foi desfigurada pelo avanço de quatro forças que ocupam o centro da cena legislativa: a bancada da bala, a do boi, a dos bancos e a bancada teocrática. Essas forças não apenas impõem sua agenda. Elas dominam o cotidiano do Parlamento. Ditam as pautas. Vetam o dissenso. Subjugam as demais bancadas como senhores de um latifúndio simbólico. A política brasileira, sob seu domínio, deixou de ser campo de disputa democrática para se tornar trincheira de exclusão, zona franca de interesses elitistas, lugar onde o povo só entra como espectro, como ausência, como retórica vazia.
Os teocratas atuais que se alastram pelo Parlamento, com suas indumentárias cívicas e dogmas disfarçados de moral pública, desempenham papéis com tal desenvoltura que fariam inveja aos aiatolás. Suas performances são meticulosamente teatrais, envoltas em uma retórica de salvação nacional, mas orientadas pela ânsia de poder absoluto. Não mais bastam-lhes púlpitos, templos e crenças: exigem microfones, comissões, gabinetes, verbas. Exigem influência sobre a educação, a cultura, os costumes, a vida íntima dos cidadãos. A cruz e a Constituição tornaram-se para eles armas de um mesmo arsenal. Legisladores de dogmas, gestores da fé como política de Estado, seus discursos se impõem não como opinião, mas como ordem. Como fé inquestionável transformada em norma jurídica. E assim as fronteiras da república laica vão se estreitando, sufocadas sob a imposição de valores que deveriam pertencer à esfera privada.
Esse domínio não é apenas conservador. É anti-republicano. É uma recusa ativa ao projeto de um Brasil plural, socialmente justo, economicamente solidário, eticamente público. O que se vê é a substituição do pacto coletivo por um condomínio de corporações. As leis brotam do asfalto quente do privilégio. As votações obedecem a mapas secretos de interesses. As comissões parlamentares são convertidas em quartéis administrativos de guerra contra qualquer tentativa de redistribuição. E quem ousa tocar nas estruturas de desigualdade é reduzido a inimigo.
O presidencialismo brasileiro, duas vezes ratificado pelas urnas em plebiscitos contundentes, tornou-se uma ficção governável apenas à custa de chantagens. O presidente, seja qual for sua coloração ideológica, é hoje um refém. Governar exige genuflexão. Exige concessões orçamentárias, nomeações milimetricamente negociadas, silêncio cúmplice diante de aberrações legislativas. A soberania do Executivo foi dissolvida por um parlamentarismo de fato, não previsto na Constituição, rejeitado pela sociedade, mas operado com vigor por um Legislativo que ocupa os espaços vazios da política com métodos de domínio. Métodos que fazem do orçamento público um campo de caça permanente. Métodos que substituem a democracia pelo conchavo, o pacto pela chantagem, a política pela clientela.
No meio desse desequilíbrio, o Judiciário se vê compelido a agir. Tenta proteger a Constituição, tenta manter alguma ordem, mas o faz do alto de um protagonismo que se descola da realidade social. Um protagonismo aristocrático, que transforma o juiz em oráculo, o tribunal em torre, a sentença em escudo. Em vez de mediar, confronta. Em vez de equilibrar, projeta-se como ator político. A tensão entre os poderes, que deveria ser sinal de vitalidade democrática, tornou-se dissonância crônica. Um campo minado onde a desarmonia não gera controle, mas ameaça.
O Congresso já não reflete o país. Suas entranhas são ocupadas por dinastias familiares, por homens brancos, empresários, grandes proprietários, teocratas com sede de poder. Não há ali ecos das fábricas que se reduzem, fábricas robotizadas em que a presença do trabalhador é dispensada, nem das salas de aula pública, nem do ambulatório do SUS, nem do campo desassistido, nem da favela cercada de tiro e esgoto. O poder ali não circula. Reproduz-se. De pai para filho, de padrinho para afilhado, de teocratas para discípulos igualmente teocratas. É uma lógica de hereditariedade travestida de democracia representativa. Os invisíveis da política são os mesmos invisíveis das estatísticas, das filas do INSS, das UTIs que colapsam, dos trens lotados. Não há espaço para eles. Não há voz para eles. Não há tempo para eles.
O povo é ruído. É despesa. É obstáculo. E é assim que legislam: contra a vida que dói, contra a juventude periférica que morre cedo ou enlouquece tentando sobreviver. Contra os motoboys que arriscam a existência por poucos trocados. Contra os idosos que veem sua aposentadoria corroída pela inflação e pela crueldade institucional. Contra as mulheres que sustentam seus filhos sozinhas. Contra os pretos, os indígenas, os LGBTQIA+, os corpos indesejados. Contra a própria ideia de justiça.
A representação federativa, que deveria equilibrar as vozes dos estados e territórios, virou instrumento de distorção. Os votos têm pesos desiguais. Os estados mais populosos têm menos representação proporcional. Os menos populosos, mais poder de veto. Essa assimetria é mantida não por inércia, mas por escolha. Uma escolha cínica que favorece o poder acumulado de elites locais, de feudos eternizados, de castas que se alimentam do desequilíbrio. E, em vez de discutir e deliberar pela representatividade efetiva e real da população com base em suas dinâmicas demográficas, o que se tem feito é simplesmente aumentar aritmeticamente o número de deputados federais para atender demandas localizadas. Uma manobra que, longe de corrigir os desequilíbrios estruturais, amplia e aprofunda as distorções da representação política da população brasileira, que em tese se faz presente na Câmara dos Deputados, mas na prática é diluída, ignorada e neutralizada por esse inchaço artificial da estrutura legislativa.
A reforma política, necessária e urgente, permanece trancada a sete chaves. Porque corrigir distorções significaria redistribuir o poder. E isso, no Brasil, ainda é considerado crime de lesa-majestade.
A república sangra. Não de uma ferida aberta, mas de mil cortes silenciosos. Cada emenda secreta. Cada CPI abortada. Cada veto derrubado. Cada projeto aprovado em favor do capital. Cada silêncio diante da dor coletiva. Cada escárnio contra a solidariedade. A confiança da população desmorona. O desprezo é palpável. Mais de 80% dos brasileiros não confiam no Congresso Nacional. Isso não é uma opinião. É um diagnóstico. É um atestado da falência moral de uma instituição que deveria representar todos, mas que se especializou em representar poucos.
Como dizia Santo Agostinho: na ausência de justiça, o que é o poder senão uma forma de saque institucionalizado. O Congresso brasileiro, hoje, é a síntese desse saque. Seus rituais são legais. Seus procedimentos são formais. Suas decisões, amparadas pelo regimento. Mas o que ali se opera é a manutenção de um Brasil excludente. Um Brasil que agride quem trabalha e protege quem explora. Um Brasil que reveste a desigualdade com o manto da técnica. Um Brasil onde a legalidade virou o álibi da injustiça.
Romper esse ciclo exige mais do que bons discursos. Exige ruptura. Exige reforma política. Exige mobilização cidadã. Exige coragem institucional para confrontar os interesses estabelecidos. Exige rever o financiamento de campanhas, rediscutir o sistema eleitoral, colocar a paridade de gênero e raça como princípio e não como concessão. Exige reumanizar a política. Fazer dela um lugar de projeto coletivo, e não de sobrevivência individual. Fazer dela ponte, e não trincheira. Fazer dela ato de cuidado, e não ritual de poder.
O Brasil precisa reaprender a sonhar. E sonhar exige recusar. Recusar a naturalização do privilégio. Recusar a obscenidade do orçamento capturado. Recusar o cinismo como método. Recusar o poder como herança. Recusar a política como farsa. Recusar o Congresso como fortaleza de poucos. Recusar o medo como regra. Recusar a república como escombro.
Só assim, quem sabe, um dia, o Congresso Nacional volte a ser o que prometeu ser. A casa de todos. A voz dos que não têm vez. O lugar onde a justiça não seja exceção, mas fundamento. Onde o povo não seja massa de manobra, mas sujeito da história. Onde a política não seja técnica de dominação, mas prática de emancipação. Onde o país possa, enfim, se reconhecer. E respirar. E florescer.
Paulo Baia
* Sociólogo, cientista político e professor da UFRJ
Congresso Nacional: da constituição cidadã à degradação republicana https://agendadopoder.com.br/congresso-nacional-da-constituicao-cidada-a-degradacao-republicana/