A cláusula de nação-mais-favorecida está na origem do multilateralismo
Mas os primeiros arranjos comerciais entre os países eram feitos em meio a guerras – civis, de religião, de conquista – tanto no continente europeu, quanto nas possessões coloniais, ainda sendo conquistadas nas Américas e na Ásia, impérios em formação, com fronteiras externas e continentais sempre sujeitas a alterações, o que repercutia em tratados intensamente debatidos nos parlamentos ou gabinetes dos governos. Os tratados comerciais eram necessariamente bilaterais (e assim permanecerão até o século XX) e nem sempre continham a cláusula MFN, que estava mais presente na Lex Mercatoria do que nos tratados entre os países. O tratado de Methuen, por exemplo, concluído pelo ministro inglês em Portugal em 1703 (e que demorou a ser ratificado em ambos os países) não continha essa cláusula MFN, que foi muito discutida nas negociações de Utrecht (1711-1713), que também abrigava discussões paralelas sobre tratados de fronteiras, reconhecimento e comerciais (como entre a França e a Inglaterra).
O tratado de Methuen se tornou emblemático na história do comércio internacional, sendo usado e citado por Adam Smith, em sua famosa obra sobre a Riqueza das Nações, e também por David Ricardo, em seu discurso sobre o comércio internacional, e permanece até hoje como uma espécie de “página negra” que explicaria o não desenvolvimento industrial de Portugal, e até do Brasil, supostamente dependentes do imperialismo inglês, aceitando, assim, uma relação assimétrica, desigual, abrindo o acesso aos mercados da parte dependente, talvez condenando-a a não desenvolver todo o seu potencial industrializador. O tratado regulava a aceitação, pela Inglaterra, dos vinhos portugueses a uma tarifa preferencial, mas não livre, e o ingresso nos mercados portugueses dos panos ingleses, geralmente de lã (o algodão não estava ainda amplamente disseminado, o que veio algumas décadas mais tarde). Sua grande distinção não esteve tanto na sua assinatura, mas na sua não recusa, dez anos depois, quando se discutiu um tratado de comércio e navegação entre os reinos da Inglaterra (já unificada à Escócia, portanto Grã-Bretanha) e da França, que deveria a rigor reconhecer a cláusula MFN, mas que não foi aceito pelo Parlamento inglês, salvando, assim, o tratado de Methuen.
A cláusula foi sendo usada, ao longo dos dois séculos seguintes, mas ao sabor dos interesses nacionais de cada parte, geralmente de forma condicionada ou condicional, não ilimitada, irrestrita e incondicional, como veio a ser inserida, sendo mesmo o primeiro grande princípio do sistema multilateral de comércio, no GATT-1947, negociado em Genebra nesse ano, e que deveria ter sido integrado à Carta de Havana (1948), que criou uma primeira Organização Internacional de Comércio (mas que nunca foi ratificada pela maioria dos países que participaram dessa conferência que deveria fechar o tripé aberto na conferência de Bretton Woods (1944).
Pois bem, a cláusula MFN, junto com o tratamento nacional, não discriminação, reciprocidade, constituiu, ao longo de mais de 80 anos o eixo central do sistema multilateral de comércio, tendo estado na base do crescimento mundial, da prosperidade e das medidas de confiança que tornaram o mundo mais seguro para a paz e não para a guerra. Até que veio Mister Trump, que simplesmente dinamitou, literalmente, completamente, a cláusula MFN e todos os demais princípios do Gatt-1994, denunciando acordos de livre comércio (Nafta, bilaterais etc.) e introduzindo unilateralmente tarifas retaliatórias contra TODOS os países do mundo. Foi a mais completa destruição do sistema internacional desde a IIGM e as bombas de Hiroshima e Nagasaki. Ou seja, os países não mais estão sendo tratados de forma igual, ou igualitária, mas são obrigados a responder à vontade demencial do presidente americano, que não possui NENHUM critério racional para o estabelecimento de tarifas. O mais curioso, ou estranho, é que ele manipula tarifas como se os exportadores estrangeiros as tivessem de pagar, e não os importadores e consumidores americanos, o que revela, uma vez mais, o quão desequilibrado, ignorante e autoritário é esse mandatário, que se imagina o dono do mundo.
O mundo está à deriva e à mercê da vontade errática do desequilibrado presidente.