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quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

Sobre a rigidez das sociedades islamicas (2006) - Paulo Roberto de Almeida

Um texto de 2006, com base em notas ainda mais antigas, mas que me parece ainda válido, uma vez que pouca coisa mudou na legislação ou na sharia.
Felizmente, a nova Constituição da Tunísia reconhece a igualdade entre homens e mulheres, mas se trata de um caso raro em sociedades islâmicas, e tem a ver com a modernidade implementada na Tunísia desde a independência da França, pelo líder-ditador esclarecido Habib Bourguiba.
Paulo Roberto de Almeida

A insustentável rigidez das sociedades islâmicas
Vinte notas (o mais possível objetivas) sobre algumas das razões que podem explicar seu imobilismo atual (que não necessariamente perdurará...)

Paulo Roberto de Almeida

1. Nos países islâmicos, ninguém pode nascer sem religião, isto é, o recém-nascido tem automaticamente a religião do pai.

2. Igualmente, ninguém pode deixar de ter religião, isto é, decidir abandonar qualquer crença religiosa para tornar-se ateu ou mesmo simplesmente agnóstico.

3. É similarmente impossível abandonar a religião muçulmana. Isto significa tornar-se um “apóstata”: trata-se de um crime maior, da suprema blasfêmia contra a religião islâmica.

4. A mulher muçulmana deve casar-se obrigatoriamente com um muçulmano, enquanto este tem liberdade para eventualmente casar-se com uma (ou mais de uma) não-muçulmana.

5. A mulher não-muçulmana não é obrigada a adotar a religião do marido muçulmano, podendo livremente conservar e continuar praticando sua religião, mas seus filhos são automaticamente considerados como muçulmanos e educados como tal. A mulher não-muçulmana não pode dar a seus filhos outra educação religiosa que não ensinar-lhes a fé muçulmana. Ela não pode sequer orientá-los, contemporaneamente, nas virtudes de outra religião.

6. Caso haja separação do casal (divórcio ou repúdio, este reservado apenas ao homem), os filhos de uma não-muçulmana são automaticamente entregues ao pai muçulmano, que sobre eles possui todos os direitos, inclusive o de privá-los da companhia da ex-mulher. Esta não tem qualquer direito sobre seus filhos.

7. A mulher não-muçulmana não pode transmitir herança ou fazer testamento em favor de seu cônjuge muçulmano ou de seus filhos, como tampouco a viúva não-muçulmana poderá herdar de seu marido muçulmano, a menos é claro que ela se tenha previamente convertido ao Islã.

8. A jovem muçulmana, uma vez prometida por sua família a pretendente muçulmano, não pode mais olhar outros homens nos olhos, com exceção do pai e irmãos. Ela deve seguir a obrigação do recato pessoal e nas vestimentas, o que geralmente implica andar coberta da cabeça aos pés e abster de uma série de atividades que impliquem contato com outros homens, inclusive nas áreas educacional e profissional.

9. Geralmente, a menina muçulmana é dissuadida ou impedida de seguir determinados cursos na escola laica, entre outros, ginástica, piscina, biologia ou educação sexual. Chegada na adolescência e eventualmente prometida a noivo muçulmano, ela é geralmente levada a deixar a escola para viver a vida exclusiva do lar.

10. As restrições comportamentais e de vestimentas impostas às jovens e mulheres muçulmanas não têm, é verdade, uma origem essencialmente religiosa, derivando de traços culturais presentes já na sociedade patriarcal e tradicional que precedeu à implantação do Islã. Mas, tais traços foram reforçados pelo “ensinamento do Profeta”, tornando-se obrigações religiosas submetidas a forte controle social e familiar.

11. Da mesma forma, determinadas restrições alimentares e comportamentais não são exclusivas da religião muçulmana ou foram introduzidas por ela, tendo precedido a codificação das normas e preceitos religiosos ou coexistido em povos da mesma área cultural (como o povo judeu, por exemplo, para referir-se à questão da carne de porco ou aos métodos de abate de animais). No entanto, tais normas culturais ganharam um peso religioso que bloqueia qualquer tentativa de transgressão individual.

12. A ausência de uma burocracia centralizada de caráter religioso impediu, como no cristianismo, a introdução ulterior de preceitos adicionais de natureza obrigatória (como o celibato dos padres na igreja romana, por exemplo). Mas isso também atuou no sentido de impedir qualquer evolução do pensamento islâmico para formas mais modernas de racionalidade, através da eventual elaboração de conceitos adaptados a cada época e respondendo aos desafios do momento.

13. Nas sociedades islâmicas faltam os traços mais elementares da ideologia humanista, centrada sobre o homem e sobre o respeito de seus direitos naturais. O conceito mesmo de “direitos do homem” é propriamente estranho ao mundo islâmico. Na sociedade islâmica, o cidadão não existe enquanto individualidade livre de afirmar-se espiritualmente e intelectualmente fora da, ou contra a, religião muçulmana. A religião, “conquistadora” por excelência, permeia toda a sociedade e não há esfera propriamente civil da vida social.

14. A justiça islâmica, de caráter retaliatório e obedecendo a preceitos elaborados no contexto da sociedade tradicional em que vivia o Profeta, comporta punições de caráter exemplar, implicando, entre outros, a mutilação física do condenado, quando não a decapitação cerimonial.

15. A sociedade islâmica não contempla a idéia de uma arte representativa ou figurativa, na qual se possa reproduzir a natureza. A brilhante arte persa, por exemplo, foi rapidamente asfixiada à medida em que progredia a islamização daquela sociedade. O mesmo fenômeno ocorreu em outras sociedades islamizadas progressivamente.

16. A “barreira ideológica” que impede a representação do mundo natural dificulta o desenvolvimento de várias disciplinas científicas. A não-afirmação individual e o conseqüente esmagamento do cidadão por normas e obrigações estritamente dependentes da ideologia religiosa por certo contribuíram para o esgotamento de qualquer inovação ou criatividade científicas nas sociedades muçulmanas, depois dos primeiros séculos de aproveitamento da memória coletiva trazida desde a Antiguidade clássica e das contribuições aportadas pelas civilizações hindu ou chinesa.

17. Com poucas exceções, não houve desenvolvimento independente de ciências sociais, uma vez que a interpretação religiosa do mundo não pode ser contradita por textos laicos. De uma forma geral, o “pensamento crítico” e a “razão negativa” não podem se exercer nos círculos culturais das sociedades islâmicas, uma vez que o exercício de tais faculdades seria considerado uma contestação à “palavra escrita” do Profeta. Nenhuma norma social ou forma de organização política e judiciária podem ir além do que está implícito ou explícito no “texto” de referência.

18. Dessa forma, a iniciativa individual, que é necessariamente contestadora dos padrões estabelecidos, se encontra condenada ab initio nas sociedades islâmicas. Não apenas tal estrutura impede o desenvolvimento da ciência e da tecnologia, mas ela também dificulta a expansão do espírito mercantil e empreendedor que esteve na origem do capitalismo moderno e da hegemonia ocidental.

19. Não se pode excluir o surgimento de uma variante do Islã que seja racionalizada e relativamente mais “laica”, mas qualquer “reforma” da religião muçulmana teria enormes barreiras estruturais pela frente. O que se observa, ao contrário, é o desenvolvimento das correntes mais fundamentalistas dessa religião, numa possível reação de defesa contra o predomínio intelectual e tecnológico do Ocidente de afiliação cristã. Mais do que uma afirmação, o fundamentalismo – também chamado de integrismo, em outras análises – pode ser visto, nesse contexto, como uma espécie de frustração pelo relativo atraso e subordinação das sociedades islâmicas.

20. Não se pode, tampouco, excluir a possibilidade de uma variante do “Renascimento” nas sociedades islâmicas, com a crescente afirmação dos valores individuais e uma progressiva separação das esferas laica e religiosa da vida social. Mas, essa evolução teria em grande parte de ser feita contra o Islã e a despeito de seus preceitos. A tolerância em relação a valores alternativos de vida social não é exatamente uma característica do Islã.

Paulo Roberto de Almeida

 1554. “A insustentável rigidez das sociedades islâmicas: Vinte notas (o mais possível objetivas) sobre algumas das razões que podem explicar seu imobilismo atual (que não necessariamente perdurará...)”, Brasília, 24 fevereiro 2006, 3 p. Revisão do texto sobre as sociedades islâmicas, para publicação no site do Instituto Millenium. Publicado sob o título: “A insustentável rigidez das sociedades islâmicas”, em 2.03.06 (link: http://institutomillenium.org/2006/03/02/a-insustentavel-rigidez-das-sociedades-islamicas/). Relação de Publicados n. 627.