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Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Meus livros podem ser vistos nas páginas da Amazon. Outras opiniões rápidas podem ser encontradas no Facebook ou no Threads. Grande parte de meus ensaios e artigos, inclusive livros inteiros, estão disponíveis em Academia.edu: https://unb.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida

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quarta-feira, 17 de setembro de 2025

A propaganda eleitoral de Lula no ‘NYT’ - Editorial O Estado de S. Paulo

 Grato, uma vez mais, a Walmyr Buzatto, pela transcrição:

“O artigo de opinião do Estadão de hoje complementa bem o que comentei em postagem anterior, sobre um artigo no mesmo jornal, de um professor de linguística da Universidade de Colúmbia, sobre Trump. Meu comentário se referia ao foco de Lula no palanque e os olhos sempre voltados à próxima eleição. Nada de novo.” (WB)

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A propaganda eleitoral de Lula no ‘NYT’

O Estado de S. Paulo, 16 de set. de 2025

Em artigo no ‘NYT’, Lula reafirma princípios, mas evita soluções no entrevero com Trump. Reforçando barricadas ao invés de construir pontes, mira na eleição em prejuízo do interesse nacional

O artigo do presidente Lula da Silva no jornal The New York Times endereçado ao presidente dos EUA, Donald Trump, oferece mais um retrato da subversão da diplomacia de Estado pela estratégia eleitoral. Adornado por apelos ao “diálogo franco” e à “cooperação entre grandes nações”, ele funciona na prática como peça de propaganda política: reafirma princípios óbvios e limites intransponíveis, mas não sugere um único terreno concreto de negociação. Longe de abrir canais, tranca-os.

Não se discute a validade de vários pontos levantados. A independência dos Poderes nacionais – a começar pelo Judiciário – é inegociável. É verdade que os EUA acumulam superávit comercial com o Brasil, o que enfraquece a lógica econômica de tarifas punitivas, ou que instrumentos como o Pix servem à inclusão financeira, não à concorrência desleal. Mas tudo isso já foi enfatizado em comunicados oficiais, entrevistas e discursos. O que caberia agora seria oferecer pistas de solução – entendimentos setoriais, iniciativas conjuntas, formatos de cooperação. Lula optou pelo contrário: enumerou apenas cláusulas pétreas, endurecendo ainda mais as posições.

A escolha do momento revela muito. O artigo saiu dois dias após a condenação de Jair Bolsonaro – transformando uma decisão judicial em combustível para a retórica confrontacional – e a poucos dias da Assembleia-Geral da ONU em Nova York – ocasião que poderia ser usada para estimular contatos de alto nível com os americanos. Um estadista disposto a reduzir tensões teria guardado munição para a mesa de negociações; Lula preferiu gastar palavras na vitrine internacional, reforçar barricadas e dinamitar pontes, ao invés de atravessá-las.

Desde antes da escalada tarifária, o Planalto evitou buscar uma conversa direta e produtiva com Trump. Agora, manipula a crise para inflamar discursos sobre “soberania” e “resistência”. É uma escolha calculada: quanto maior a animosidade com Washington, mais fácil para o governo se vitimar e se retratar como salvador da Pátria. Nessa lógica, empresários brasileiros que lutam para preservar contratos e mercados tornam-se figurantes abandonados à própria sorte por sua diplomacia.

A carta ainda trouxe um elemento que seria cômico, não fosse trágico: o elogio às investidas intervencionistas de Trump, como uma prova, segundo Lula, de que o Brasil (leia-se, o lulopetismo) foi “vingado” ao rejeitar o chamado Consenso de Washington, proposto por instituições multilaterais como o Fundo Monetário Internacional (FMI) ou o Banco Mundial nos anos 1980: disciplina fiscal e monetária, abertura comercial, privatizações e desregulação. Mas enquanto países que investiram nesse receituário – como Coreia, Chile ou México – avançaram, nós ficamos para trás. O Brasil segue sendo uma das economias mais fechadas do G-20, e o resultado está aí: estagnação da produtividade, preços elevados e exclusão das cadeias globais de valor. Se o governo americano insistir com essas práticas, colherá os mesmos frutos – queda de dinamismo e perda de credibilidade. Os improvisos estatistas de Trump não confirmam nossas virtudes, e sim repetem nossos vícios – e quem sairá vingada, como sempre, é a realidade.

A crise atual tem múltiplos culpados. Trump manipula tarifas e sanções para favorecer um aliado e intimidar instituições brasileiras. O clã Bolsonaro, por sua vez, alimenta essa chantagem em busca de ganhos pessoais. Mas nada disso justifica a má-fé e a má vontade diplomáticas de Lula. Cabe a um chefe de Estado defender interesses permanentes da Nação, não acirrar crises para acumular dividendos eleitorais. O governo poderia propor fóruns técnicos sobre regulação digital, intensificar esforços de lobby em Washington ou sinalizar cooperação em áreas de interesse mútuo. Ao invés disso, prefere multiplicar gestos de confronto retórico.

O Brasil precisa de diplomacia ativa e inteligente, não de provocações em jornais estrangeiros; precisa de portas abertas, não de “cartas abertas”. Mas enquanto Trump joga para sua base e Bolsonaro para a sua sobrevivência pessoal, Lula joga para a plateia doméstica. Todos saem ganhando, menos o Brasil. •


sexta-feira, 29 de agosto de 2025

Os Estados Unidos no caminho da servidão - Editorial O Estado de S. Paulo (com introdução de Walmyr Buzatto)

 Copio do FB do amigo Walmyr Buzatto este editorial impecável do Estadão – o venerando jornal reacionário está terrivel em seu vibrante e novo formato "esquerdista" – sobre um caso extraordinário na história dos EUA (e do mundo), o de um grande império acelerando seu declínio para um república de bananas, caminhando para ser um Estado autoritário e ordinariamente mediocre em sua classe dirigente:


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WB:
Eu disse outro dia que os EUA iriam se tornar um Brasil do Hemisfério Norte, com aumento de inflação, queda de produtividade e competitividade e mercado fechado. Não tinha citado os ‘campeões nacionais’, mas é uma decorrência natural de uma mudança dessas.

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Os Estados Unidos no caminho da servidão
O Estado de S. Paulo, 29 de ago. de 2025

O capitalismo de Estado de Trump, um filho bastardo do que há de pior no estatismo chinês e no populismo latino-americano, ameaça o modelo de prosperidade e democracia nos EUA

Donald Trump se vende como paladino do conservadorismo americano, mas dilapida o legado literalmente mais valioso dessa tradição: a defesa do livre mercado. Aumentar impostos por meio de tarifas generalizadas, intervir em companhias privadas, flertar com estatizações ou pressionar o banco central são iniciativas mais familiares ao repertório de demagogos latino-americanos conhecidos por arruinar suas economias à força de decretos. A Casa Branca está sendo transformada numa espécie de fundo de investimento estatal comandado pelo humor do presidente. Sua barganha com a Intel – ora exigindo a saída do CEO, ora oferecendo aportes bilionários em troca de participação acionária – lembra menos as convicções capitalistas de Ronald Reagan e mais a prática surrada de Brasília de eleger “campeões nacionais” à custa do contribuinte.

À luz das evidências históricas, as políticas comerciais e industriais de Trump só podem ser descritas como uma espécie de masoquismo econômico. A crença de que tarifas protegem empregos foi desmoralizada repetidas vezes. Elas encarecem insumos, corroem margens de lucro e destroem mais postos de trabalho do que geram. A ilusão de que o governo pode cultivar indústrias “estratégicas” com subsídios e participação acionária já produziu fiascos memoráveis, de fábricas fantasmas a empresas zumbis sustentadas apenas por favores políticos. No Brasil, esse é um filme antigo e monótono: décadas de protecionismo criaram indústrias complacentes, incapazes de competir fora de seus muros tarifários, mas habilíssimas em cultivar clientelas em Brasília. O resultado foi atraso tecnológico e um fardo inflacionário para o consumidor. Ao abraçar a cartilha dirigista, Trump sufoca o dinamismo do mercado e alimenta o que jurava combater: o pântano de privilégios.

O mito de que o “modelo chinês” é um atalho para a prosperidade só agrava o equívoco. O “milagre” que retirou centenas de milhões da pobreza nasceu não do controle estatal de Pequim, mas sim, ao contrário, das reformas liberalizantes iniciadas por Deng Xiaoping, que desobstruíram a energia empreendedora do povo, permitindo que o capital e as ideias circulassem. A China cresceu apesar do estatismo centralizador, não por causa dele, e o voluntarismo intervencionista de Xi Jinping, com a repressão a empresas e a onipresença do Partido Comunista, ameaça destruir esse legado. Emular essas amarras é como invejar o prisioneiro pelo tamanho da cela.

Nada mais revelador que o endosso do esquerdista radical Bernie Sanders aos intervencionismos de Trump: ambos sonham com uma Intel transformada em repartição pública dos semicondutores, sustentada por subsídios e dirigida ao sabor de agendas políticas. O socialismo de Sanders e o nacionalismo de Trump compartilham da mesma fantasia: a de que políticos e burocratas podem pilotar o setor produtivo melhor que milhões de agentes livres. Os extremos se unem na caricatura do capitalismo de Estado.

A diferença é que Trump não dispõe nem dos instrumentos nem da disciplina de Xi. Não pode instalar células partidárias nas empresas nem impor alinhamento ideológico a seus executivos. Seu método é mais errático: uma mistura de bravata pública e chantagem privada, tarifas anunciadas de manhã e suspensas à tarde, favores concedidos a quem se curva e ameaças a quem resiste. A boa notícia é que seu poder para subjugar o setor privado não é absoluto nem irrevogável. A má é que sua imprevisibilidade já mina a confiança em ativos americanos, encarece investimentos e enfraquece a competitividade da indústria.

O verdadeiro caminho para enfrentar a competição global não é copiar os vícios da China nem reciclar as mazelas do Brasil, mas reafirmar o que sempre fez dos EUA um país próspero: livre comércio, descentralização, competição e Estado de Direito. O capitalismo de Estado de Trump não é alternativa ao socialismo; é sua versão caricata, tingida de vermelho, branco e azul. Ao insistir em tarifas, subsídios e intervenções, Trump inaugura não um “Dia da Libertação”, mas uma noite longa, fria e tenebrosa, e coloca sua “América” não no rumo da grandeza, mas, como já alertava Hayek, no caminho da servidão.

domingo, 6 de outubro de 2024

O autoritarismo custará caro ao México Editorial O Estado de S. Paulo

O autoritarismo custará caro ao México

O Estado de S. Paulo | Notas & Informações
06 de outubro de 2024

Ambições autocráticas de Obrador e seus acólitos, incluindo a nova presidente, estão destruindo não só as liberdades políticas dos mexicanos, mas suas oportunidades econômicas

P or 70 anos o México viveu sob o regime de um partido único, sem os contrapesos do Legislativo e do Judiciário. Nos anos 90, as pressões de uma sociedade civil complexa, educada e sedenta de pluralismo forçaram o Partido Revolucionário Institucional (PRI) a fazer concessões e reformas estabelecendo instituições eleitorais e judiciais independentes. Agora, o país caminha a passos largos para hipertrofiar o Executivo e concentrar poder no partido incumbente, o Movimento Regeneração Nacional (Morena), fundado por Andrés Manuel López Obrador (AMLO), que no dia 1.º encerrou seu mandato presidencial de seis anos, passando a faixa para sua pupila, Claudia Sheinbaum. Um partido único está sendo reinstaurado ? só que desta vez pode ser pior.

O PRI mutilou as liberdades políticas dos mexicanos e controlava as eleições, mas era disciplinado e construiu instituições e burocracias profissionais. A agenda do Morena vai na direção oposta.

AMLO sufocou o Instituto Nacional Eleitoral (INE) e manipulou as regras para favorecer seu partido. Nas eleições de junho, elegeu Sheinbaum com ampla margem. A coalizão de esquerda liderada pelo Morena obteve 54% das cadeiras na Câmara dos Deputados, mas um INE já aparelhado distorceu as regras de representação, concedendolhe 74% das cadeiras e uma supermaioria no Senado.

Em setembro, quando AMLO ainda era presidente e a nova legislatura assumiu, ele tentou aprovar 18 emendas constitucionais para, entre outras coisas, eliminar agências independentes, banir parcerias de estatais com a iniciativa privada, ampliar a ingerência das Forças Armadas na segurança pública, erguer barreiras a investimentos e ao comércio internacional e reduzir prerrogativas de partidos minoritários. O tempo não foi suficiente para aprovar o pacote, mas Sheinbaum promete encaminhá-lo, e a mais perniciosa das reformas, a do Judiciário, foi aprovada.

Em três anos, todos os magistrados e ministros da Suprema Corte serão removidos, e passarão a ser eleitos por voto popular. Os candidatos serão préselecionados pelo Executivo e o Legislativo, as exigências profissionais serão mínimas e um ?tribunal disciplinar? terá poderes para punir os indóceis. Além do poder oficial, o poder paralelo do narcotráfico terá amplas oportunidades de influenciar as escolhas através do dinheiro e da violência.

AMLO e seus acólitos replicam o manual de outros candidatos a déspotas, como Viktor Orbán, na Hungria. Nesses casos, a democracia não é derrubada à força de golpes e tanques na rua, mas por erosão intestina. O México mostra que essa destruição da democracia por meios democráticos não é prerrogativa de alguma região ou ideologia.

Pode acontecer na Europa ou América Latina, à esquerda ou à direita. Mas nenhum país é uma ilha, muito menos um país grande, mas em desenvolvimento, como o México, ou um país desenvolvido, mas pequeno, como a Hungria. O autoritarismo tem custos, e já se fazem sentir.

A União Europeia tem encontrado meios de neutralizar e isolar Orbán. As políticas de AMLO estão sangrando a economia mexicana. Seu governo teve as piores taxas de crescimento neste século: o Banco Central prevê 1,5% neste ano e 1,2% no próximo. O peso está em queda e o déficit está acima de 5%, o maior desde os anos 80. Agências de risco advertem para um aumento do prêmio, e a mídia e o governo dos EUA, país que tem US$ 144 bilhões investidos no México e recebe 80% de suas exportações, alertam que a reforma judicial não só mina a proteção de direitos humanos e o acesso imparcial à justiça, como inviabiliza os negócios. Outras reformas no pacote do Morena violam o acordo de livre comércio com EUA e Canadá, que expira em 2026 e precisa ser renegociado.

Uma parcela da população mexicana está revoltada. Se não for capaz de mobilizar seus conterrâneos e reverter a destruição do Estado Democrático de Direito em curso, seu país provará uma das mais amargas lições da História: que a combinação da concentração do poder político com a penúria econômica leva inexoravelmente ao recrudescimento da tirania ou à ruptura pela anarquia.

 

 

domingo, 4 de agosto de 2024

O comício de Lula em rede nacional -Editorial O Estado de S. Paulo

 O comício de Lula em rede nacional

O Estado de S. Paulo, 2/08/2024

 

Convocado a título de prestação de contas, o pronunciamento extemporâneo foi, na prática, um comício fora de hora e de lugar, num escandaloso uso da máquina pública para fins eleitorais

 

No domingo passado, o governo convocou de supetão uma rede nacional de rádio e TV para o presidente Lula da Silva. Um ingênuo poderia pensar que Lula, que se julga um estadista, talvez quisesse fazer algum comentário oficial sobre a vergonhosa eleição na Venezuela. Que nada. Lula apareceu nas TVs do País inteiro sem pedir licença para dizer que sua mãe lhe ensinou direitinho a não gastar mais do que ganha.

O extemporâneo pronunciamento, convocado a título de prestação de contas após um ano e meio de governo, foi, na prática, um comício fora de hora e de lugar, num escandaloso uso da máquina pública para fins eleitorais e partidários. É o velho Lula de sempre – mas a reiteração desse comportamento antirrepublicano por parte do chefão petista não o torna menos grave.

Em longos 7 minutos e 18 segundos, Lula da Silva praticou seu esporte preferido: apontar “heranças malditas” deixadas por governos anteriores. Disse que, ao final de seu segundo mandato, em 2010, deixou um país no caminho da prosperidade, sem desemprego, com inflação baixa e grande crescimento econômico. “De lá para cá, assistimos a uma enorme destruição no nosso país”, disse Lula. Na descrição do presidente – em cuja narrativa obviamente não se consideram nem os dois anos de recessão provocados pela inépcia de Dilma Rousseff nem a pandemia de covid-19 –, os governos não petistas que se seguiram ao impeachment de sua dileta criatura desmontaram programas sociais, tiraram verbas de saúde e educação, aumentaram os juros, deixaram a inflação disparar, empobreceram e endividaram famílias, “espalharam armas ao invés de empregos” e, máxima crueldade, “trouxeram a fome de volta”.

Como não se tratava de “assunto de relevante importância”, como manda o Decreto 84.181, de 1979, que regulamenta a convocação de rede nacional de rádio e TV, o pronunciamento de Lula não tinha nenhum compromisso com a verdade. Sentindo-se autorizado por sua condição de demiurgo, caprichou na mistificação.

Depois de relatar a suposta terra arrasada deixada por seus antecessores, Lula enumerou seus alegados feitos, como se estivesse no horário eleitoral. Sem dar qualquer contexto, como é típico das bravatas de palanque, falou como se antes dele não houvesse um país, e sim um inferno. Não citou os nomes nem do “genocida” Jair Bolsonaro nem do “golpista” Michel Temer, mas nem precisava. Estava claro que o presidente estava mais uma vez colocando os brasileiros diante de uma escolha crucial: o PT ou a barbárie. Com a volta do PT ao poder, declarou Lula, “o Brasil se reencontrou com a civilização”. Nada menos.

É evidente que se pode fazer todo tipo de crítica ao governo de Jair Bolsonaro, que lidou de maneira criminosa com a pandemia, ameaçou reiteradas vezes promover uma ruptura democrática, desmoralizou o Brasil no exterior e destratou jornalistas e opositores. Lula, como cidadão e presidente, tem todo o direito de fazer o pior juízo possível de Bolsonaro, mas o lugar para fazê-lo não é numa rede nacional de rádio e TV – que, além de não se prestar a isso, não permite o contraditório. Para quem festeja a “vitória da democracia”, como Lula fez questão de fazer logo no início de seu pronunciamento, trata-se de um comportamento bem pouco democrático.

No mais, é o caso de perguntar quais eram as motivações e os objetivos de Lula com seu comício em cadeia nacional. Ao reiterar seu compromisso com o equilíbrio das contas públicas – numa única frase em seus mais de sete minutos de discurso –, Lula apenas cumpriu tabela. Citou as lições de economia recebidas da mãe como prova de que fala sério, e mais não disse. Todo o resto do pronunciamento, em ano de eleições municipais nas quais Lula está pessoalmente empenhado, serviu para dar o roteiro do embate que ele pretende travar com Bolsonaro – e o uso vergonhoso da máquina pública para isso mostra até que ponto Lula está disposto a ir nessa guerra imaginária.


quinta-feira, 11 de julho de 2024

A irrelevância do Mercosul - Editorial (O Estado de S. Paulo)

 A irrelevância do Mercosul

O Estado de S. Paulo | Internacional
Editorial, 11 de julho de 2024

Em uma reunião de cúpula do Mercosul, cuja principal notícia é a ausência de um dos chefes de Estado, o argentino Javier Milei, retrata perfeitamente a insignificância do bloco sul-americano.

O acirramento de divergências ideológicas que colocam interesses políticos dos líderes de alguns dos sócios do Mercosul acima dos objetivos do bloco econômico deu a tônica de um encontro com declarações vazias e um documento final anódino. Diante de desafios maiores, perdeu todo o bloco.

Não é de hoje que o Mercosul falha em sua missão de colocar os países-membros Brasil, Argentina, Paraguai, Uruguai e agora Bolívia - em destaque no mercado global, o que, sem dúvida, atravanca o desenvolvimento regional. Criado há mais de 30 anos, o bloco deveria estimular o livre-comércio e defender a democracia. Mas, nos últimos tempos, chefes de Estado duelam por pautas estranhas aos objetivos de longo prazo do Mercosul para agitar suas militâncias internas.

Prova mais recente disso é que Milei preferiu viajar a Balneário Camboriú (SC) para participar de um convescote da extrema direita ao lado do ex-presidente Jair Bolsonaro, que quando era presidente também faltou à cúpula do Mercosul por pura picuinha. Estivesse à altura do cargo que ocupa, o argentino teria apresentado as suas propostas aos seus pares. Coube à sua chanceler, Diana Mondino, pedir reformas para que o bloco deixe de ser 'pequeno, medroso, protecionista e estagnado' e se torne mais 'voraz'. Está certíssima.

Milei perdeu, ainda, a chance de se alinhar ao presidente uruguaio, Luis Alberto Lacalle Pou, na defesa de negociações bilaterais entre integrantes do Mercosul com outros blocos ou países. Antes isolado na empreitada, o Uruguai pede a revisão das regras do bloco para que venha a firmar acordos comerciais com a China. O posicionamento de Brasil e Argentina sempre tem peso, haja vista que se trata dos dois maiores países do bloco.

Resistente a qualquer proposta de Milei, o presidente Lula da Silva afirmou, por sua vez, que os países devem resolver suas diferenças 'dentro do bloco, e não fora dele'. O que o petista rejeita mesmo é um 'choque de adrenalina' no Mercosul, como o defendido por Mondino, com revisão do orçamento, das tomadas de decisão e da dinâmica interna. O petista tachou a ideia de 'pseudorreforma' que 'afasta o Mercosul de suas bases sociais'.

Em que pesem os nós do Mercosul, o petista, mais uma vez, apequenou o debate com manifestações calculadas apenas para atiçar a polarização com o desafeto argentino. Em discursos, Lula da Silva criticou o 'ultraliberalismo' e o 'nacionalismo arcaico', como se sua saga pelo desenvolvimentismo não representasse a perseverança no atraso.

No que realmente importa, como o destravamento do acordo comercial Mercosul-União Europeia, parado há mais de 20 anos, o petista não admitiu o fracasso da suposta liderança que chamou para si. Enquanto isso, por esforços diplomáticos, o bloco vai buscando acordos pouco relevantes com países do Oriente Médio, América Central e Ásia. Entre discursos e comunicados, restaram contradições e muito diversionismo, o que só explicitou a irrelevância do Mercosul.

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2020

Editorial do Estadao: "Bolsonaro e os golpistas" (e???!; ele é um dos...)

O presidente e os golpistas

Não se pode dizer que surpreende a nova estocada do bolsonarismo contra o Congresso

Editorial O Estado de S. Paulo, 27/02/2020


O presidente Jair Bolsonaro precisa esclarecer, sem meios termos, que não apoia a convocação de uma manifestação em sua defesa e contra o Congresso Nacional, feita por seus apoiadores. Os cidadãos são livres para se manifestar contra quem bem entenderem, mas um presidente da República não é um cidadão comum e não pode permitir que seu nome seja usado para alimentar um protesto contra os demais Poderes constituídos. Se aceitar essa associação, ou, pior, se incentivá-la mesmo indiretamente, Bolsonaro estará corroborando as violentas críticas que esses apoiadores, em claro movimento golpista, estão fazendo contra o Congresso, tratado nas redes sociais bolsonaristas como “inimigo do Brasil”.
Ao distribuir a seus contatos no WhatsApp uma das virulentas peças de propaganda da manifestação convocada para o próximo dia 15 de março, o presidente ajudou a disseminar a mensagem, o que equivale a chancelá-la. Bolsonaro disse que apenas distribuiu a mensagem a “algumas dezenas de amigos, de forma reservada”, como se o caso pudesse ser resumido a uma comunicação de caráter pessoal. Mas tudo o que diz um presidente da República, em razão de sua proeminência política, tem enorme poder de influenciar os rumos do País, razão pela qual seu apoio tácito a um protesto contra o Congresso, mesmo que manifestado apenas a um punhado de simpatizantes, configura óbvio abuso de poder, pois incita ilegítima pressão popular sobre o Legislativo.
Não se pode dizer que surpreende a nova estocada do bolsonarismo contra o Congresso, com a anuência do presidente da República. “Eu respeito as instituições, mas eu devo lealdade apenas a vocês, povo brasileiro”, discursou Bolsonaro em agosto do ano passado. “Povo brasileiro”, parece claro, é o nome que Bolsonaro dá a seus seguidores – que, segundo o próprio presidente, são “35 milhões em minhas mídias sociais”. É a estes que Bolsonaro jura lealdade, embora tenha sido eleito para governar a Nação dentro das normas democráticas.
O menosprezo de Bolsonaro pelo Congresso – onde esteve por quase três décadas como deputado – foi reafirmado diversas vezes na campanha eleitoral e depois de sua posse como presidente. Em maio de 2019, distribuiu pelo WhatsApp um texto de teor golpista, segundo o qual o País é “ingovernável” sem os “conchavos” políticos, em alusão à necessidade de negociação com o Congresso, e que, sendo assim, “o presidente não serve para nada”. Na ocasião, Bolsonaro disse que contava “com a sociedade” para “juntos revertermos essa situação” – um óbvio apelo direto ao “povo” contra as instituições.
Assim, o presidente parece procurar construir um regime populista de inspiração militar, bem ao gosto dos saudosos da ditadura e que faz lembrar o governo do general Velasco Alvarado no Peru (1968-75), que hostilizava os partidos por considerá-los parte do sistema oligárquico que dizia combater em nome do “povo”. Anos depois do fracasso da experiência peruana, o coronel Hugo Chávez implantou na Venezuela uma versão do “populismo militar” cujos resultados estão à mostra. Esse não é um modelo a ser imitado.
Ante a escalada bolsonarista, autoridades dos demais Poderes reagiram. O presidente da Câmara, Rodrigo Maia, retratado como um porco em uma das mensagens a respeito da manifestação do dia 15, disse que cabe às autoridades “dar o exemplo de respeito às instituições e à ordem constitucional”. O ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes afirmou que “a harmonia e o respeito mútuo entre os Poderes são pilares do Estado de Direito, independentemente dos governantes de hoje ou de amanhã”.
Fazem bem o Congresso e o Supremo em se manifestar de modo sereno, mas firme, sobre o comportamento do presidente e de seus seguidores. Também fez bem o general Carlos Alberto dos Santos Cruz, ex-ministro de Bolsonaro, que criticou o uso de fotografias de militares na convocação dos protestos contra o Congresso, que ele qualificou de tentativa “grotesca” de confundir o Exército com o golpismo bolsonarista. A despeito disso, é muito provável que os bolsonaristas continuem a testar os limites da democracia – e portanto cabe às instituições impedir que eles consigam ir além das bravatas.

sábado, 28 de dezembro de 2019

O fracasso da Bolsodiplomacia - Editorial Estadão

Só não vê isto quem NÃO QUER ver. Nem é questão de ter ou de não ter votado no Bolsonaro, é sobre o que acontece agora. Fico pasma com a IGNORÂNCIA de alguns que nada ganham em defender este tipo de gente e que, no entanto, os defendem. Felizmente vejo que muitos já se deram conta da realidade!
Compartilho do Paulo Roberto de Almeida que entende do assunto e que cito: "O Editorial do Estadão sobre a diplomacia fracassada do governo Bolsonaro seria devastador para qualquer chefe de Estado, que buscaria se corrigir em face de críticas contundentes. Mas não Bolsonaro, que só recua em face de resistências bem fortes (dos militares, dos capitalistas do agronegócio), não por novas convicções retiradas da experiência. Mas o editorial se esquece de mencionar os péssimos conselheiros presidenciais em assuntos internacionais, a começar por aquele guru destrambelhado e escatológico que vive fora do país. Esses também são responsáveis pelos desastrosos não resultados de uma diplomacia sem direção e sem objetivos claros."
Carmen Lícia Palazzo

Diplomacia da camaradagem
Notas & Informações, O Estado de S.Paulo
26 de dezembro de 2019 | 03h00

Quase todas as decisões adotadas pelo presidente Jair Bolsonaro na condução da política externa deram em nada ou impuseram severos prejuízos, sejam os de ordem econômica, sejam os danos à imagem do Brasil no exterior.

O fiasco da diplomacia brasileira observado neste ano era totalmente previsível porque o presidente da República erra no básico e não emite qualquer sinal de que está disposto a aprender com seus erros. Jair Bolsonaro crê que a relação entre as nações se estabelece por meio da afinidade pessoal e ideológica entre chefes de Estado, e não pela concertação dos interesses em jogo em uma complexa trama comercial e geopolítica. Ou seja, o presidente Bolsonaro trata o que é um mero facilitador na aproximação entre lideranças internacionais como princípio orientador de suas ações.

A opção pelo alinhamento praticamente automático ao presidente norte-americano, Donald Trump, parece ser a linha mestra da política externa do governo Bolsonaro. Na visão do presidente, isso implicaria resultados que nenhum outro governo antes dele conseguiu produzir, como o ingresso do Brasil na Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e a abertura do comércio entre os dois países. De fato, Donald Trump apoiou a entrada do Brasil no chamado “clube dos ricos”, mas tratou-se de um apoio vago, sem a definição de prazo ou condições para que o pleito do País fosse de fato analisado. Na verdade, Trump optou por dar preferência aos interesses argentinos no âmbito da OCDE, em detrimento dos brasileiros.

Quanto ao comércio entre Brasil e Estados Unidos, a “proximidade” que haveria entre Bolsonaro e seu contraparte norte-americano também não parece estar ajudando. A carne bovina brasileira continua sob embargo e, em novo revés imposto ao País, Donald Trump decidiu retomar a aplicação de tarifas sobre o aço e o alumínio provenientes do Brasil e da Argentina, sob a alegação de que os dois países estariam praticando uma “deliberada desvalorização de suas moedas a fim de prejudicar as empresas e os trabalhadores dos Estados Unidos”. Sem atinar para a dimensão do problema, Jair Bolsonaro está disposto a resolver a crise com um telefonema. “Se for o caso, falo com Trump, tenho canal aberto”, disse o presidente.

Bolsonaro também tem trabalhado duro para minar a posição de liderança do Brasil na América Latina. Evidente que as dimensões do País, de sua população e a pujança da economia brasileira são os fatores que pesam, e muito, na relação com os vizinhos. Mas o País teria muito mais a ganhar caso Jair Bolsonaro pusesse os interesses do Estado acima de suas predileções. Na Argentina, por exemplo, o presidente brasileiro manifestou apoio à reeleição de Mauricio Macri, que foi derrotado pelo peronista Alberto Fernández. A relação entre Bolsonaro e Fernández já começou estremecida, a bem da verdade por erros que foram cometidos em ambos os lados da fronteira.

No Uruguai, o presidente Jair Bolsonaro apostou na vitória de Luiz Lacalle Pou, que saiu vitorioso do pleito, mas não sem antes recusar o apoio do presidente brasileiro, tido como “tóxico” em razão de suas posições extremadas.

O ano diplomático também foi marcado pelo amplo apoio dado pelo presidente Jair Bolsonaro à recondução do primeiro-ministro israelense Binyamin Netanyahu, outro líder internacional de quem o presidente brasileiro se julga próximo. Jair Bolsonaro chegou a prometer a mudança do local da embaixada do Brasil em Israel, de Tel-Aviv para Jerusalém, o que traria sérios abalos na relação comercial entre o País e as nações árabes.

A nota positiva na condução da diplomacia brasileira neste ano foi a recente mudança da visão do presidente Bolsonaro em relação à China, cedendo ao pragmatismo. Já não era sem tempo o despertar, dada a vibrante relação comercial com nosso principal parceiro.

A afinidade pessoal entre chefes de Estado ajuda muito na fluidez das relações entre as nações. Entretanto, este jamais deve ser o fio condutor da política externa de um país. Os riscos de uma “diplomacia da camaradagem” são muito maiores do que os eventuais benefícios que a proximidade entre os líderes, seja real ou imaginária, pode trazer.