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sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Tratado de Petropolis com a Bolivia: contexto negociador, texto do tratado (PRA)

Transcrevo abaixo longa introdução que preparei ao Tratado de Petrópolis (1903) fixando as fronteiras entre o Brasil e a Bolívia, depois das negociações que resultaram na compra do território do Acre pelo Brasil, mediante compensações financeiras e territoriais (ademais de facilidades de acesso aos rios brasileiros conduzindo à saída do Amazonas).
Essa introdução, escrita originalmente -- Brasília, 25 fevereiro 2010 -- para uma revista da Câmara dos Deputados (Plenarium), não foi ainda publicada, razão pela qual resolvi divulgá-la neste momento.
Paulo R. de Almeida (17.09.2010)

O Tratado de Petrópolis de 1903, sobre o Acre, com a Bolívia: contextualização histórica e breve descrição
Paulo Roberto de Almeida

A negociação e a assinatura do Tratado de Petrópolis, que concluiu a compra do Acre à Bolívia pelo Brasil, em 17 de novembro de 1903, com alguma permuta de territórios e compensações financeiras, se situa exatamente a meio termo de um período de intensas negociações e de processos de arbitragem que consolidou as fronteiras do Brasil como jamais tinha ocorrido desde o Tratado de Madri (1750), que também redefiniu de modo radical os limites geográficos do Brasil na América do Sul. Na década e meia que vai da arbitragem em torno do caso das Missões (1895) a um novo tratado de limites com o Uruguai (1909), o Barão do Rio Branco conduziu praticamente sozinho a mais extensa, mais complexa e mais diversificada maratona diplomática de fixação das fronteiras do Brasil já registrada em nossa história. Ao final desse ciclo, já consolidada a República, o território brasileiro tinha, grosso modo, a conformação hoje presente nas cartas geográficas.
Até o início do regime republicano – no seguimento da anulação do Tratado de Madri, pelo qual a linha de Tordesilhas (1494) tinha sido empurrada bem longe, na direção do poente e no vácuo deixado pelos tratados “revisores” que o sucederam, El Pardo (1761) e Santo Idelfonso (1777) –, o Império tinha concluído, na segunda metade do século 19 (e depois das revoltas do período regencial), alguns tratados de “amizade, limites, navegação e comércio” com os países limítrofes (inclusive um com a Bolívia, em 1867) que buscavam delimitar fronteiras ainda largamente indefinidas, e que, em larga medida, assim permaneceram até que o Barão entrasse em cena. [Nota: Todos os tratados internacionais do Brasil, desde Tordesilhas até 1912, estão referenciados nos dois volumes de José Manoel Cardoso de Oliveira, Actos Diplomaticos do Brasil: tratados do periodo colonial e varios documentos desde 1492 (edição facsimilar: Brasília: Senado Federal, 1997; Coleção Memória brasileira nº 11; organização e introdução de Paulo Roberto de Almeida); o tratado de Santo Idelfonso, por sinal, foi invalidado pela guerra de 1801 entre Portugal e Espanha e pela conclusão do tratado de Badajós, logo em seguida, por sua vez declarado nulo por meio de manifesto que D. João, Príncipe Regente, fez divulgar logo após sua instalação no Rio de Janeiro, em 1808.]
Depois de Alexandre de Gusmão, um dos precursores do estudo e da aplicação consciente do princípio do uti possidetis à fixação das fronteiras do Brasil foi o diplomata Duarte da Ponte Ribeiro, um grande “recolhedor” de mapas e manuscritos dos países vizinhos em todos os postos por onde andou (repúblicas hispânicas do Pacífico, em sua maior parte). Curiosamente, a primeira diplomacia brasileira não acolheu favoravelmente suas sugestões quando esse “diplomata a cavalo” as fez, pioneiramente, na terceira e quarta décadas do século 19. [Nota: Sobre a vida e o trabalho diplomático do Barão da Ponte Ribeiro, ver José Antonio Soares de Souza, Um Diplomata do Império: Barão da Ponte Ribeiro (São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1952; Coleção Brasiliana 273). Ponte Ribeiro chegou a negociar um tratado baseado no uti possidetis com a então Confederação Peruana-Boliviana, em 1837, inconclusivo em função da dissolução dessa confederação. Ver, também, Luis Cláudio Villafañe Gomes Santos, O Império e as repúblicas do Pacífico: as relações do Brasil com o Chile, Bolívia, Peru, Equador e Colômbia, 1822-1889 (Curitiba: Editora da UFPR, 2002).]
De certa forma, ainda que por vias diferentes e mediante procedimentos não necessariamente conformes ao espírito desse princípio, o uti possidetis também foi aplicado ao caso do território do Acre, talvez até com maior ênfase prática, ainda que o conceito latino da posse legal pela ocupação efetiva nem de longe esteja presente na letra do referido tratado bilateral. De fato, brasileiros tinham se instalado de modo quase permanente no território boliviano, tão pronto a exploração da hevea brasiliensis levou seringueiros e outros aventureiros a avançar cada vez mais a montante dos tributários do Solimões e do Amazonas, à medida que a borracha subia de preço nos mercados internacionais. A reafirmação desse princípio, mais os traços físicos de antigas visitas e de localidades portuguesas fundadas desde a época da unificação dos dois reinos ibéricos – abundantes mapas e muitos marcos em pedra, penosamente levados em embarcações e em lombos de burros – serviram de substrato documental e material aos negociadores brasileiros na delimitação ulterior de nossas fronteiras com nossos vizinhos sul-americanos.
Uma característica, porém, distingue o Tratado de Petrópolis de todos os demais estabelecidos com os países vizinhos, negociados ou não pelo Barão do Rio Branco: à diferença dos territórios em larga medida indevassados, de cartografia imprecisa ou inexistente, cuja linha divisória necessitava ser penosamente demarcada por homens no terreno, consoante definições difusas constantes de antigos tratados da era luso-castelhana ou no seguimento das independências sul-americanas, todo o território do Acre era juridicamente, historicamente boliviano. Tão boliviano, aliás, quanto atualmente os territórios do Chile setentrional, na fronteira com o Peru, que a nação vizinha perdeu para o longo país andino, na segunda guerra do Pacífico.
Persistia, entretanto, no caso do tratado de 1867 com a Bolívia, dúvidas quanto à divisória exata naquele espaço acreano: se a linha oblíqua Javari-Beni, ou o paralelo 10°20’, como tendia a acreditar o Brasil. Essas divergências cartográficas, incertezas derivadas do próprio desconhecimento da hidrografia local, também alimentaram teses divergentes no período mais agudo do conflito, marcado pelas incursões dos patriotas liderados por Plácido de Castro e, depois, pela ocupação militar do Brasil.
O Brasil, que jamais empreendeu qualquer guerra de conquista contra qualquer um dos seus vizinhos – apenas defendendo o que lhe pertencia por herança lusitana na América do Sul, à exceção do território da Cisplatina, o Uruguai atual, contencioso criado com a própria fundação da Colônia de Sacramento, mas que, na condição de foco de precoce animosidade entre o jovem Império do Brasil e as então pouco consolidadas Províncias Unidas do Rio da Prata, reproduzia históricos conflitos luso-castelhanos – e que jamais manifestou qualquer espírito belicoso em relação a vizinhos grandes, pequenos e médios, sempre preferiu a via do direito para estabelecer esses limites, seja pela via das negociações diretas, seja por meio da arbitragem internacional. A mesma abordagem escrupulosamente jurídica foi seguida igualmente no caso da Bolívia, como também foi o caso de uma hipotética fronteira entre o Brasil e o Equador, cujas linhas básicas, em grande medida virtuais, o Barão do Rio Branco fez questão de finalizar com aquele país do Pacífico – que depois perdeu territórios amazônicos para o Peru e a Colômbia – tão pronto foram resolvidas as pendências com a Bolívia e com o Peru. Depois da infeliz decisão do árbitro italiano – o rei Vitório Emanuel – em torno da questão da Guiana, cujo território disputado foi em boa parte entregue pelo italiano ao Reino Unido, o Barão preferiu negociar diretamente com os vizinhos todas as pendências remanescentes da era colonial e do Império.
A outra característica do território acreano, e que o distinguia das demais disputas ou negociações para o estabelecimento de linhas divisórias com os países lindeiros, era que essa mesma região era mais facilmente acessível pelo lado do Brasil do que a partir do território boliviano, o que justamente explica a ocupação gradual, e pacífica, de gente brasileira no último terço do século 19, ali deslocada para extrair a goma-elástica, que constituía uma das bases da economia local. Foi justamente em face dessa dificuldade em administrar um território que, em grande medida, escapava à sua autoridade, que os dirigentes de La Paz tinham resolvido arrendar a região e seus recursos naturais a um “sindicato” de capitalistas ingleses e americanos, processo efetuado mediante a assinatura de um “contrato” entre o governo boliviano e a corporação então criada, em junho de 1901, e aprovado pelo Congresso boliviano em dezembro do mesmo ano. Tal decisão ameaçou trazer para o coração da América do Sul o mesmo de tipo de colonização por grandes companhias ocidentais já protagonizado em territórios asiáticos ou africanos, com possível ingerência política ulterior das potências sedes dessas corporações.
Falhando as admoestações diplomáticas brasileiras em prol do cancelamento desse contrato de cessão de soberania, e revoltando-se a população local brasileira contra as novas condições estabelecidas após o arrendamento estrangeiro, o governo boliviano resolveu deslocar tropas para a região, como forma de submeter os rebeldes e implementar as pretensões dos arrendatários. Foi esse o estado de situação que o Barão encontra, como seu primeiro grande problema diplomático, ao tomar posse como ministro das relações exteriores do presidente Rodrigues Alves (1902-1906) em dezembro de 1902.

Rio Branco constatou, “ao primeiro exame, que só uma solução se impunha, urgente e inadiável: tornar brasileiro todo o território habitado pelos nossos nacionais mediante sua aquisição. Solução prática e eficaz, de benefícios imediatos para um e outro governo, eliminava radicalmente as causas de desinteligência entre as duas soberanias e removia, de uma vez por todas, as dificuldades com que ambas lutavam desde 1889.” [Nota: Cf. A. G. de Araújo Jorge, Rio Branco e as Fronteiras do Brasil: uma introdução às obras do Barão do Rio Branco (Brasília: Senado Federal, 1999), p. 104-105.]
O processo não foi evidentemente linear ou rápido, tendo os bolivianos recusado algumas propostas brasileiras e ordenado a pacificação militar da região, em face do que o Brasil decidiu atuar no mesmo sentido: “Ante esses preparativos bélicos, o governo do Brasil julgou ser do seu dever ordenar a remessa de tropas para os estados de Mato Grosso e Amazonas e encarregou a legação brasileira em La Paz de informar o governo boliviano de que o Brasil resolvera ocupar militarmente o território do Acre, até solução final do litígio.” [Nota: Idem, p. 105.]
Um armistício foi obtido em março de 1903, logrando-se o fim das hostilidades, o controle efetivo do território pelo Brasil, o pleno acesso garantido à Bolívia das vias fluviais do Amazonas, com trânsito comercial assegurado, e, mais importante, a “declaração legal de absoluta desistência do sindicato anglo-americano de todo e qualquer direito ou reclamação possível, mediante uma indenização de 110 mil libras esterlinas.” [NOTA: Idem, p. 106. Os agentes financeiros do Brasil em Londres, os Rothchilds, se incumbiram de negociar a renúncia do Sindicato Boliviano, em montante equivalente a meio milhão de dólares, ao câmbio da época.] As negociações prosseguiram, sob a responsabilidade direta do próprio Rio Branco, com a ajuda temporária do Senador Rui Barbosa (até 17 de outubro) e do político e diplomata Joaquim Francisco de Assis Brasil, então ministro brasileiro em Washington, cuja atuação na capital americana foi no sentido de desmontar as pretensões do Bolivian Syndicate.
Quatro longos meses duraram essas negociações, com propostas e contrapropostas, ao cabo das quais foi assinado o Tratado de Petrópolis de 17 de novembro de 1903, com ratificações trocadas em 10 de março de 1904, após as quais puderam ser efetuadas as “permutas e outras compensações” previstas no acordo bilateral. As negociações foram complicadas pelo fato de que “o Peru reivindicava boa parte da área em litígio, e já assinara acordo de arbitramento com o Bolívia para decidir sobre a fronteira no Alto Purus e Alto Juruá”. [NOTA: Cf. Luis Felipe Pereira de Carvalho, As Negociações do Tratado de Petrópolis: o estilo negociador do Barão do Rio Branco e a formação do território nacional (Brasília: Instituto Rio Branco, dissertação de Mestrado apresentada ao programa de pós-graduação do Instituto Rio Branco, 2005), p. 14. As linhas da fronteira com o Peru só seriam resolvidas em 1907.] A tática negociadora do Barão foi a de isolar as negociações com um país e com outro, e tratá-las separadamente, o que suscitou protestos do Peru. Para tentar conter esses ânimos e entabular as primeiras negociações com o Peru a respeito das fronteiras com o Brasil, Rio Branco convidou para ser chefe de legação em Lima o historiador e diplomata Manuel de Oliveira Lima, que no entanto relutou em aceitar a missão. [Nota: Cf. Paulo Roberto de Almeida, “O Barão do Rio Branco e Oliveira Lima: Vidas paralelas, itinerários divergentes”, In: Carlos Henrique Cardim e João Almino (orgs.), Rio Branco, a América do Sul e a Modernização do Brasil (Brasília: Comissão Organizadora das Comemorações do Primeiro Centenário da Posse do Barão do Rio Branco no Ministério das Relações Exteriores, IPRI-Funag, 2002), p. 233-278; disponível: http://www.pralmeida.org/01Livros/2FramesBooks/57BaraoRioBranco.html. O Peru pretendia não apenas participar das negociações bilaterais entre o Brasil e a Bolívia, mas queria depois, qualquer que fosse o resultado, submeter o eventual resultado de um acordo tripartite a arbitragem internacional, com o que não concordava em absoluto o Barão.]

O Tratado de Petrópolis, em si, é uma peça relativamente simples de diplomacia política e “geográfica”, constando de apenas dez artigos, com sete parágrafos no primeiro, e principal, deles, o que justamente define a fronteira entre o Brasil e a Bolívia. As coordenadas certamente refletiam uma melhor precisão em termos de latitudes e longitudes do que o tratado de 1867, impreciso em pontos importantes. Ainda assim, o parágrafo sétimo abre duas alíneas para possibilidades alternativas no que se refere à nascente do rio Acre, indeterminada até aquele momento: “se a nascente do Acre estiver em longitude menos ocidental...”, ou, “se o rio Acre, como parece certo, atravessar a longitude 69° Oeste de Greenwich e correr ora ao Norte, ora ao Sul do citado paralelo 11°...”, o que denota não apenas bom-senso dos negociadores, como criatividade e boa-fé recíproca.
Basicamente, o tratado efetuou compensações territoriais em diversos pontos da fronteira comum, obviamente concedendo ao Brasil uma porção maior de terras do que o originalmente atribuído pelo tratado de 1867. A Bolívia passava a ter liberdade de trânsito em caráter perpétuo, a ser garantido por um tratado de comércio e navegação; a ela seria facilitado o acesso pelos rios amazônicos até o oceano, e o Brasil se obrigava a viabilizá-lo mediante a construção, inteiramente a seu encargo, de uma ferrovia desde o Porto de Santo Antonio, no rio Madeira, até Guajará-Mirim, no rio Mamoré, com um ramal chegando a Villa-Bella, na Bolívia. Por não haver equivalência entre os territórios trocados, o artigo III estipulava o pagamento de uma indenização de 2 milhões de libras esterlinas, a serem pagos em duas prestações: a primeira três meses após a troca de ratificações (o que ocorreu em março de 1904), a segunda em março de 1905. Teoricamente, a Bolívia se comprometia em aplicar essa receita principalmente na construção de estradas de ferro ou “outras obras tendentes a melhorar as comunicações e desenvolver o comércio entre os dois países”, o que é duvidoso que ela o tenha feito. [Nota: No cômputo final, o Brasil cedeu 3.200 quilômetros quadrados de seu próprio território e recebeu 191 mil, superfície superior à de vários pequenos estados brasileiros, e capaz de produzir riquezas certamente elevadas naquela conjuntura de alta excepcional da demanda pela borracha.]

Para ser mais exato, a própria construção da ferrovia na selva foi estimada em 2 milhões de libras esterlinas, o que significa que o Brasil arcou com um custo financeiro total pelo menos duplicado em relação ao expresso no tratado. Também é preciso registrar que a ideia de uma estrada de ferro ligando o Madeira ao Mamoré não era exatamente nova, nem derivou exclusivamente do Tratado de Petrópolis de 1903. Já o tratado de 1867 com a Bolívia – de amizade, limites, navegação e comércio – continha uma cláusula (artigo 9) que estipulava a construção de linha ferroviária exatamente unindo os dois rios, promessa renovada solenemente em 1882.
Em 1870 foi concedida uma concessão a uma companhia inglesa, a “Madeira and Mamoré Railway”: bem rapidamente se constatou que a região era terrivelmente insalubre e que os homens morriam como moscas. Em 1879, restavam apenas 180 homens, a maior parte dos quais doente e sem recurso algum. [Nota: Cf. Cassiano Ricardo, O Tratado de Petrópolis (Rio de Janeiro: Ministério das Relações Exteriores, 1954, vol. II), p. 153, que por sua vez cita William Price, The Amazing Amazon (New York: The John Day Company, 1952).] A empresa foi naturalmente à falência e um decreto de setembro de 1881 declarava caduca a concessão feita anteriormente. Em 1882, tenta-se o reinício dos trabalhos, por intermédio de uma nova comissão designada pelo governo imperial, mas tampouco se conseguiu fazer o projeto avançar.
Foi só com o Tratado de Petrópolis que os trabalhos efetivamente deslancharam: em junho de 1907 foram realizados os estudos iniciais e a terraplenagem começou no ano seguinte. Em 1910 se inaugura a estação de Jaci Paraná e em mais dois anos, em 30 de abril de 1913, a de Guajará-Mirim, onde já se podia trafegar com locomotivas. A Madeira Mamoré fica então concluída e é arrendada à “Madeira Mamoré Railway Company”, desde janeiro de 1912, em conformidade com o decreto 7.344, de 25 de fevereiro de 1909. [Nota: Idem, Ricardo, p. 157.]

No que se refere especificamente à demarcação da fronteira, o Artigo IV não deixava dúvidas quanto à seriedade do comprometimento do Brasil: “Uma Comissão Mista, nomeada pelos dois Governos, dentro do prazo de um ano, contado da troca das ratificações, procederá à demarcação da fronteira descrita no Artigo I, começando os seus trabalhos dentro dos seis meses seguintes à nomeação. (...) Se os Comissários demarcadores nomeados por uma das Altas Partes Contratantes deixarem de concorrer ao lugar e na data da reunião que forem convencionados para o começo dos trabalhos, os Comissários da outra procederão por si sós à demarcação, e o resultado das suas operações será obrigatório para ambas”. Finalmente, os desacordos eventuais quanto à interpretação ou execução do tratado deveriam ser resolvidos mediante arbitramento, método porém excluído nas negociações seguintes que o Brasil tencionava empreender com o Peru.

O tratado não foi unanimemente acolhido em todos os setores: ele foi objeto de intenso debate no Senado, onde estava Rui Barbosa, um dos negociadores até um mês antes de sua assinatura, tendo renunciado então. O senador baiano considerava que o Brasil não deveria ceder nenhum território seu à Bolívia e julgava onerosas demais as concessões financeiras que estavam sendo prometidas à Bolívia, ao que Rio Branco lhe escreveu, pouco depois de seu afastamento: “Se comprássemos dois grandes encouraçados gastaríamos improdutivamente tanto quanto vamos gastar com essa aquisição de um vastíssimo e rico território, já povoado por milhares de brasileiros que assim libertaremos do domínio estrangeiro.” [Nota: Cf. Araújo Jorge, Rio Branco e as Fronteiras do Brasil, op. cit.. p. 112.] Rui Barbosa se considerou, como ele mesmo escreveu, um plenipotenciário vencido.

Ao fim e ao cabo, o tratado de Petrópolis, que comprou o Acre à Bolívia, não foi, exatamente, um tratado diplomático, baseado em princípios abstratos do direito ou de natureza essencialmente política: ele foi negociado para resolver um problema social, uma realidade humana e um fato concreto, que mobilizou enormemente a opinião pública nacional: a presença de milhares de brasileiros num território essencialmente estrangeiro. Que este tenha sido trazido ao Brasil mediante negociações diretas, sem imposições e sem conflito, revela o tino diplomático do Barão do Rio Branco, uma das raras unanimidades, junto provavelmente com Tiradentes, na História do Brasil.


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Anexos:
DECRETO N° 5.161, DE 10 DE MARÇO DE 1904.
Manda executar o Tratado de permuta de territórios e outras compensações, celebrado em 17 de novembro de 1903, entre o Brasil e a Bolívia.

O Presidente da República dos Estados Unidos do Brasil,
Tendo sancionado, pelo Decreto n° 1.179, de 18 de fevereiro do corrente ano, a resolução do Congresso Nacional de 12 do mesmo mês, que aprova o Tratado de permuta de territórios e outras compensações entre o Brasil e a Bolívia, concluído na cidade de Petrópolis aos 17 de novembro de 1903 e havendo sido trocadas hoje as respectivas ratificações nesta cidade do Rio de Janeiro,
Decreta que o mesmo Tratado seja executado e cumprido tão inteiramente como nele se contém.
Rio de Janeiro, 10 de março de 1904; 16° da República.
FRANCISCO DE PAULA RODRIGUES ALVES
Rio-Branco

Tratado de permuta de Territórios e outras Compensações (Tratado de Petrópolis)

A República dos Estados Unidos do Brasil e a República da Bolívia,
Animadas do desejo de consolidar par sempre a sua antiga amizade, removendo motivos de ulterior desavença, e
Querendo ao mesmo tempo facilitar o desenvolvimento das suas relações de comércio e boa vizinhança,
Convieram em celebrar um Tratado de permuta de territórios e outras compensações, de conformidade com a estipulação contida no Art. 5° do Tratado de Amizade, Limites, Navegação e Comércio de 27 de março de 1867.
E, para esse fim, nomearam Plenipotenciários, a saber:
O Presidente da República dos Estados Unidos do Brasil, os Srs. José Maria da Silva Paranhos do Rio-Branco, Ministro de Estado das Relações Exteriores e Joaquim Francisco de Assis Brasil, Enviado Extraordinário e Ministro Plenipotenciário nos Estados Unidos da América; e
O Presidente da República da Bolívia, os Srs. Fernando E. Guachalla, Enviado Extraordinário e Ministro Plenipotenciário em Missão Especial no Brasil e Senador da República e Cláudio Pinilla, Enviado Extraordinário e Ministro Plenipotenciário no Brasil, nomeado Ministro das Relações Exteriores da Bolívia;
Os quais, depois de haverem trocado os seus plenos poderes, que acharam em boa e devida forma, concordaram nos artigos seguintes:

Artigo I
A fronteira entre a República dos Estados Unidos do Brasil e a da Bolívia ficará assim estabelecida:
§ 1° Partindo da latitude Sul de 20° 08’ 35" em frente ao desaguadouro da Baía Negra, no Rio Paraguai, subirá por este rio até um ponto na margem direita distante nove quilômetros, em linha reta, do forte de Coimbra, isto é, aproximadamente, em 19° 58’ 05" de latitude e 14° 39’ 14" de longitude Oeste do Observatório do Rio de Janeiro (57° 47’ 40" Oeste de Greenwich), segundo o Mapa da fronteira levantado pela Comissão Mista de Limites, de 1875; e continuará desse ponto, na margem direita do Paraguai, por uma linha geodésica que irá encontrar outro ponto a quatro quilômetros, no rumo verdadeiro de 27° 01’ 22" Nordeste, do chamado "Marco do fundo da Baía Negra", sendo a distância de quatro quilômetros medida rigorosamente sobre a fronteira atual, de sorte que esse ponto deverá estar, mais ou menos, em 19° 45’ 36", 6 de latitude e 14° 55’ 46", 7 de longitude Oeste do Rio de Janeiro (58° 04’ 12", 7 Oeste de Greenwich). Daí seguirá no mesmo rumo determinado pela Comissão Mista de 1875 até 19° 02’ de latitude e, depois, para Leste por este paralelo até o arroio Conceição, que descerá até a sua boca na margem meridional do desaguadouro da lagoa de Cáceres, também chamado de rio Tamengos. Subirá pelo desaguadouro até o meridiano que corta a ponta do Tamarindeiro e depois para o Norte, pelo meridiano de Tamarindeiro, até 18° 54’ de latitude, continuando por este paralelo para Oeste até encontrar a fronteira atual.
§ 2° Do ponto de interseção do paralelo de 18° 54’ com a linha reta que forma a fronteira atual seguirá, no mesmo rumo que hoje, até 18° 14’ de latitude e por este paralelo irá encontrar a Leste o desaguadouro da lagoa Mandioré, pelo qual subirá, atravessando a lagoa em linha reta até o ponto, na linha antiga de fronteira, eqüidistante dos dois marcos atuais, e depois por essa linha antiga, até o marco da margem setentrional.
§ 3° Do marco setentrional na lagoa Mandioré continuará em linha reta, no mesmo rumo que hoje, até a latitude de 17° 49’ e por este paralelo até o meridiano do extremo Sudeste da lagoa Gahiba. Seguirá esse meridiano até a lagoa e atravessará esta em linha reta até o ponto eqüidistante dos dois marcos atuais, na linha antiga de fronteira, e depois por esta linha antiga ou atual até a entrada do canal Pedro Segundo, também chamado recentemente rio Pando.
§ 4° Da entrada Sul do canal Pedro Segundo ou rio Pando até a confluência do Beni e Mamoré os limites serão os mesmos determinados no Artigo 2° do Tratado de 27 de março de 1867.
§ 5° Da confluência do Beni e do Mamoré descerá a fronteira pelo rio Madeira até a boca do Abunan, seu afluente da margem esquerda, e subirá pelo Abunan até a latitude de 10° 20’. Daí irá pelo paralelo de 10° 20’, para Leste até o rio Rapirran e subirá por ele até a sua nascente principal.
§ 6° Da nascente principal do Rapirran irá, pelo paralelo da nascente, encontrar a Oeste o rio Iquiri e subirá por este até a sua origem, donde seguirá o igarapé Bahia pelos mais pronunciados acidentes do terreno ou por uma linha reta, como aos Comissários demarcadores dos dois países parecer mais conveniente.
§ 7° Da nascente do igarapé Bahia seguirá, descendo por este, até a sua confluência na margem direita do rio Acre ou Aquiry e subirá por este até a nascente, se não estiver esta em longitude mais ocidental do que a de 69° Oeste de Greenwich:
a) no caso figurado, isto é, se a nascente do Acre estiver em longitude menos ocidental do que a indicada, seguirá a fronteira pelo meridiano da nascente até o paralelo de 11° e depois, para Oeste, por esse paralelo até a fronteira com o Peru;
b) se o rio Acre, como parece certo, atravessar a longitude de 69° Oeste de Greenwich e correr ora ao Norte, ora ao Sul do citado paralelo de 11°, acompanhando mais ou menos este, o álveo do rio formará a linha divisória até a sua nascente, por cujo meridiano continuará até o paralelo de 11° e daí na direção de Oeste, pelo mesmo paralelo, até a fronteira com o Peru; mas, se a Oeste da citada longitude de 69° o Acre correr sempre ao Sul do paralelo de 11°, seguirá a fronteira, desde esse rio, pela longitude de 69° até o ponto de interseção com esse paralelo de 11° e depois por ele até a fronteira com o Peru.

Artigo II
A transferência de territórios resultante da delimitação descrita no artigo precedente compreende todos os direitos que lhes são inerentes e a responsabilidade derivada da obrigação de manter e respeitar os direitos reais adquiridos por nacionais e estrangeiros, segundo os princípios do direito civil.
As reclamações provenientes de atos administrativos e de fatos ocorridos nos territórios permutados, serão examinadas e julgadas por um Tribunal Arbitral composto de um representante do Brasil, outro da Bolívia e de um Ministro estrangeiro acreditado junto ao Governo brasileiro. Esse terceiro árbitro, Presidente do Tribunal, será escolhido pelas duas Altas Partes Contratantes logo depois da troca das ratificações do presente Tratado. O Tribunal funcionará durante um ano no Rio de Janeiro e começará os seus trabalhos dentro do prazo de seis meses, contados do dia da troca das ratificações. Terá por missão: 1° Aceitar ou rejeitar as reclamações; 2° Fixar a importância da indenização; 3° Designar qual dos dois Governos a deve satisfazer.
O pagamento poderá ser feito em apólices especiais, ao par, que vençam o juro de três por cento e tenham a amortização de três por cento ao ano.

Artigo III
Por não haver equivalência nas áreas dos territórios permutados entre as duas nações, os Estados Unidos do Brasil pagarão uma indenização de £ 2.000.000 (dois milhões de libras esterlinas), que a República da Bolívia aceita com o propósito de a aplicar principalmente na construção de caminhos de ferro ou em outras obras tendentes a melhorar as comunicações e desenvolver o comércio entre os dois países.
O pagamento será feito em duas prestações de um milhão de libras cada uma: a primeira dentro do prazo de três meses, contado da troca das ratificações do presente Tratado, e a segunda em 31 de março de 1905.

Artigo IV
Uma Comissão Mista, nomeada pelos dois Governos, dentro do prazo de um ano, contado da troca das ratificações, procederá à demarcação da fronteira descrita no Artigo I, começando os seus trabalhos dentro dos seis meses seguintes à nomeação.
Qualquer desacordo entre a Comissão Brasileira e a Boliviana, que não puder ser resolvido pelos dois Governos, será submetido à decisão arbitral de um membro da Royal Geographical Society, de Londres, escolhido pelo Presidente e membros do Conselho da mesma.
Se os Comissários demarcadores nomeados por uma das Altas Partes Contratantes deixarem de concorrer ao lugar e na data da reunião que forem convencionados para o começo dos trabalhos, os Comissários da outra procederão por si sós à demarcação, e o resultado das suas operações será obrigatório para ambas.

Artigo V
As duas Altas Partes Contratantes concluirão dentro do prazo de oito meses um Tratado de Comércio e Navegação baseado no princípio da mais ampla liberdade de trânsito terrestre e navegação fluvial para ambas as nações, direito que elas reconhecem perpetuamente, respeitados os regulamentos fiscais e de polícia estabelecidos ou que se estabelecerem no território de cada uma. Esses regulamentos deverão ser tão favoráveis quanto seja possível à navegação e ao comércio e guardar nos dois países a possível uniformidade. Fica, porém, entendido e declarado que se não compreende nessa navegação a de porto a porto do mesmo país, ou de cabotagem fluvial, que continuará sujeita em cada um dos dois Estados às respectivas leis.

Artigo VI
De conformidade com a estipulação do artigo precedente, e para o despacho em trânsito de artigos de importação e exportação, a Bolívia poderá manter agentes aduaneiros junto às alfândegas brasileiras de Belém do Pará, Manaus e Corumbá e nos demais postos aduaneiros que o Brasil estabeleça sobre o Madeira e o Mamoré ou em outras localidades da fronteira comum. Reciprocamente, o Brasil poderá manter agentes aduaneiros na alfândega boliviana de Villa Bella ou em qualquer outro posto aduaneiro que a Bolívia estabeleça na fronteira comum.

Artigo VII
Os Estados Unidos do Brasil obrigam-se a construir em território brasileiro, por si ou por empresa particular, uma ferrovia desde o porto de Santo Antônio, no rio Madeira, até Guajará-Mirim, no Mamoré, com um ramal que, passando por Vila-Murtinho ou em outro ponto próximo (Estado de Mato-Grosso), chegue a Villa-Bella (Bolívia), na confluência do Beni e do Mamoré. Dessa ferrovia, que o Brasil se esforçará por concluir no prazo de quatro anos, usarão ambos os países com direito às mesmas franquezas e tarifas.

Artigo VIII
A República dos Estados Unidos do Brasil declara que ventilará diretamente com a do Peru a questão de fronteiras relativa ao território compreendido entre a nascente do Javari e o paralelo de 11°, procurando chegar a uma solução amigável do litígio sem responsabilidade para a Bolívia em caso algum.

Artigo IX
Os desacordos que possam sobrevir entre os dois Governos, quanto à interpretação e execução do presente Tratado, serão submetidos a Arbitramento.

Artigo X
Este Tratado, depois de aprovado pelo Poder Legislativo de cada uma das duas Repúblicas, será ratificado pelos respectivos Governos e as ratificações serão trocadas na cidade do Rio de Janeiro no mais breve prazo possível.

EM FÉ DO QUE, nós, os Plenipotenciários acima nomeados, assinamos o presente tratado, em dois exemplares, cada um nas línguas portuguesa e castelhana, apondo neles os nossos selos.

FEITO na cidade de Petrópolis, aos dezessete dias do mês de novembro de mil novecentos e três.
Rio-Branco
J.F. de Assis Brasil
Fernando E. Guachalla
Cláudio Pinilla