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quinta-feira, 16 de agosto de 2018

Alca e Alcantara: questoes mal postas - Jose Monserrat e Paulo Roberto de Almeida (2002)

Alca e Alcântara

José Monserrat Filho
JC e-mail 2112, de 04 de Setembro de 2002.
Quarta-Feira, 04 de setembro de 2002
          
A propósito do plebiscito nacional informal promovido por várias entidades da sociedade civil, creio estar havendo enorme confusão. Alca é uma coisa. Alcântara é outra
Alca é, de fato, uma questão de soberania. Alcântara é uma questão de mercado. Se aceitarmos entrar na Alca pela receita dos EUA, seguramente vamos ampliar a um grau quase incalculável nossa dependência e comprometer nosso direito soberano à autodeterminacão.
Alcântara é excelente campo de lançamentos espaciais. Tão boa ou até melhor que a base de Kourou, a 'Porta da Europa para o Espaço', que fica na Guiana Francesa, ao norte do Brasil. Alcântara está a menos de 3 graus ao sul da Linha do Equador. De lá, os lançamentos, ajudados pela própria rotação da Terra, são sempre mais econômicos.
É um recurso natural precioso que temos para explorar em plena era espacial, quando um monte de coisas vitais - telecomunicações, observação da Terra, meteorologia, sistemas de localização, alerta contra desastres naturais etc - se faz através de satélites que precisam ser lançados a preços cada vez menores.
Já gastamos mais de US$ 400 milhões para transformar Alcântara num centro de lançamentos competivivos. Mas, apesar de local privilegiado para essa atividade hoje milionária, ainda não faturamos um único centavo.
Para fazer Alcântara faturar, o Brasil saiu em busca de sócios e clientes. O primeiro consórcio pensado, com a empresa FiatAvio, da Itália, e duas empresas ucranianas, parecia ótimo. O primeiro cliente à vista foi a Motorola, dos EUA. Mas os EUA disseram não. Com o Brasil, não - comunicaram ao governo italiano. Então, o Brasil sentiu na pele que sem um acordo com os EUA não teria como explorar Alcântara.
Decidiu fazer este acordo. Os EUA de novo disseram não. E mais de uma vez. O Brasil resolveu tentar diretamente a Casa Branca. O presidente FHC falou com o presidente Clinton. Abriu-se uma brecha. Os dois países negociariam um acordo de salvaguardas tecnológicas.
Primeiro obstáculo: os EUA queriam que o Brasil abrisse mão do foguete VLS, nosso projetado lançador de satélites. Foi a vez do Brasil dizer não.
Os EUA, então, responderam: certo, mas o dinheiro das nossas empresas não pode ir para o VLS, pois temos uma política de não-proliferação de tecnologia de mísseis e o VLS, afinal de contas, pode virar um míssil.
O Brasil achou que valia a pena aceitar essa condição, pois a possibilidade de ter acesso às empresas norte-americanas, que representam mais de 80% do mercado de lançamentos, era muito vantajosa. E o acordo foi feito.
Acordo duro, pois os EUA estavam em posição negociadora mais favorável - nós precisávamos do acordo muito mais do que eles. Mas, quem ler o acordo com todo o cuidado, verá que, apesar das concessões que tivemos que fazer, o Brasil mantém o controle de todas as operações em Alcântara.
Para cada lançamento terá que ser feito um contrato entre a empresa norte-americana interessada e a empresa brasileira representante de Alcântara. A Agência Espacial Brasileira (AEB), a seguir, emitirá uma licença de lançamento, se todos os requisitos exigidos pela lei brasileira forem cumpridos. E haverá ainda um documento da AEB autorizando, por fim, o lançamento.
O Brasil estará vendendo os serviços e benefícios de Alcântara para empresas privadas. Não há cessão de território ou ocupação de área por estrangeiros. Alcântara nunca será um enclave, deixará de ser do Brasil e operada por brasileiros.
O acordo de salvaguardas tecnológicas com os EUA prevê, sim, áreas restritas, onde brasileiro só entra se convidado. As áreas restritas existem em todo o lugar do mundo onde se lida com tecnologias estrangeiras em torno das quais se estabelece vigilância rigorosa para que não sejam copiadas ilegalmente.
Mas as áreas restritas duram apenas enquanto se efetua a operação contratada e, em Alcântara, quem demarca as áreas restritas são as autoridades brasileiras.
A tecnologia estrangeira também não pode ser examinada quando chega, na Alfândega. Os franceses não examinam a alma dos satélites enviados à Kourou para serem lançados. Isso ocorre em qualquer base do mundo.
O cliente faz uma declaração sobre o conteúdo de sua carga, e se ele estiver mentindo, ele e seu país terão que arcar com as responsabilidades decorrentes. É assim que esse negócio funciona em toda parte.
Desse modo, a duras penas, o Brasil logrou concluir um acordo que não é a sétima maravilha do mundo, mas pode nos abrir uma porta no mercado mundial de lançamentos comerciais, onde não é qualquer um que entra e ao qual nós temos um ótimo serviço a oferecer.
Essa chance está em nossas mãos. Se recuarmos, Alcântara seguirá dando despesas, sem ganhar nada, entregue às moscas. É isso que queremos? E agora me digam: o que isso tem a ver com a Alca, um acordo que como se articula hoje visa apenas a nossa subordinação?
Alcântara é exatamente o oposto: é um meio para ingressarmos, com um serviço nosso, numa área de grandes negócios internacionais. 

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 Alca e Alcântara : questões mal postas

Comentários de Paulo Roberto de Almeida
a artigo de José Monserrat
Publicado no Jornal da Ciência e-mail
(nº 2114, 6.09.02).
Relação de Publicados nº 350.

Meus cumprimentos ao editor José Monserrat por seu brilhante artigo em torno da confusão que resolveram montar em torno do pretenso plebiscito sobre a Alca, na qual se inseriu uma questão, aparentemente extemporânea e totalmente estranha, sobre o uso da base de Alcântara. Digo aparentemente porque a intenção dos organizadores do plebiscito não é consultar a população, mas tão simplesmente obter uma condenação tanto da Alca quanto do acordo de salvaguardas tecnologicas para o uso de Alcântara, o que é demonstrado pela forma preconcebida como foram formuladas as questões. O que me leva a apostar com qualquer representante da CNBB o que desejar se, a exemplo do plebiscito de cartas marcadas de dois anos atrás sobre as dívidas externa e interna, este também não recolher uma adesão maciça ao NÃO, provavelmente na faixa de 95 a 99% (unanimidade ao velho estilo albanês de fazer votações).
Monserrat demonstra como o Brasil está perdendo com a não aprovação desse acordo de Alcântara, o que nos deixa duvidando sobre a adequação ao interesse nacional das intenções dos organizadores do plebiscito, do qual resolveu dissociar-se em boa hora o PT. Não precem se dar eles conta de que a base de Alcântara deve servir para fins de abertura de uma noa área de exploração das possibilidades industriais, de serviços e sobretudo de progressiva capacitação tecnológica do País em domínio até aqui restrito a uns poucos países habilitados nesse jogo restrito que constitui o uso de vetores e o domínio das técnicas de lançamento. Como se pode esperar que o País se capacite nessa area?: criando uma “Lançobras”para capacitá-lo unicamente com o apoio do dinheiro público, que sabemos inexistente ou irrisório? Qual a ameaça à soberania do país na preservação da confidencialidade tecnológica de lançamentos operados por empresas americanas quando, numa comparação, não de todo inusitada, a Coca-Cola produz até hoje sua famosa gororoba com base num segredo comercial, nunca revelado e nunca patenteado e devidamente respeitado pelo Brasil (como por qualquer outro país)?
Confundir soberania com interesse comercial não revela apenas raciocícnio tortuoso por parte dos organizadores do plebiscito; revela também quão pouco identificados com os interesses nacionais eles estão.
Um único reparo ao artigo do Monserrat: considerar que a Alca é uma questão de soberania revela um outro desvio curioso do debate nacional em torno desse projeto de acordo comercial (que não sabemos hoje se existirá, mas que os organizadores do plebiscito já consideram como líquido e certo, num curioso exercício de profetismo histórico).  Por certo não se trata de um “mero” acordo de livre-comércio, pois que, se ele existir (o que duvido, não por causa do punhado de opositores que se manifestam de forma estridente, mas por causa do protecionismo do Congresso americano, tão avesso a ele quanto nossos mais furiosos manifestantes anti-Alca, o que nos deixa pensando sobre as razões dessa curiosa coincidencia), ele deveria supostamente englobar aspectos não totalmente comerciais, como propriedade intelectual, investimento, concorrência ou compras governamentais.
Mas, esse acordo – que finalmente se reduz a rebaixar tarifas e eliminar umas outras tantas barreiras não tarifárias ao exercício de negócios nos países americanos, introduzindo o conceito de tratamento nacional nas áreas assim abertas à concorrência estrangeira – apresenta muito menos desafios à soberania nacional do que, por exemplo, os acordos que o Brasil já assinou, e que todos os progressistas apoiam, nos terrenos da luta contra a corrupção internacional nos negócios (um acordo hemisférico, outro multilateral) e no do tratamento aos mais bárbaros atentados aos direitos humanos, como consubstanciado no TPI, saudado como marco de avanço no direito internacional e que, sim, comporta renúncia de soberania no que toca os próprios nacionais brasileiros.
Em face desses acordos, eles sim comprometedores da “soberania” nacional, o futuro e até aqui hipotético acordo da Alca seria muito menos intrusivo e nocivo à soberania nacional, pois que se limita a estender ao âmbito hemisférico preferências tarifárias, compromissos de acesso a mercados e um certo conjunto de nomas comerciais, o que o Brasil já pratica hoje no plano do Mercosul e também no quadro da Aladi.
Nunca vi nenhum congressista brasileiro denunciar essa “renúncia de soberania” que representa o Mercosul e que vários observadores brasileiros querem ver aprofundado no sentido da adoção de cláusulas supranacionais (portanto, mais renúncia de soberania). Frente a isso, a Alca é o menor dos males e a oposição a ela deve ser apenas porque a proposta partiu do Império, o mal absoluto no julgamento desses opositores. Mais uma vez se demonstra o baixo grau de confiança que muitos brasileiros entretêm sobre nossa própria capacidade de negociar com pleno conhecimento de causa oportunidades comerciais – pois que a Alca trata precisamente disso, como Alcântara – por um suposto temor de dependência dos interesses externos. Creio que se trata simplesmente de manifestação de baixa-estima sobre nossas condições negociadoras.
Paulo Roberto de Almeida (sociólogo; pralmeida@mac.com)