Temas de relações internacionais, de política externa e de diplomacia brasileira, com ênfase em políticas econômicas, em viagens, livros e cultura em geral. Um quilombo de resistência intelectual em defesa da racionalidade, da inteligência e das liberdades democráticas.
O que é este blog?
Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.
O jornalismo como história da política externa brasileira
Paulo Roberto de Almeida
Correio Braziliense, 28/10/2024
Resenha do livro:
Maria Helena Tachinardi
Politica Externa e Jornalismo
São Paulo: Contexto, 2024
Os primeiros historiadores são os jornalistas, antigamente chamados de cronistas dos eventos correntes ou de memorialistas do cotidiano. Não importa muito o nome; se não fosse por eles, não teríamos outra história que não aquela feita nos gabinetes de Estado, nos atos da imprensa governamental, reportando a atividade dos donos do poder e suas interpretações exclusivas. Sem eles, a história se resumiria a um longo desfilar de relatos oficiais.
Na política externa, sobretudo, a atividade jornalística é fundamental, uma vez que relações exteriores são conduzidas basicamente pelos governos, em nome do seus Estados. Em meus exercícios de historiador da diplomacia brasileira, além de recorrer ao exame dos documentos oficiais, sempre apelei aos relatos dos fatos correntes feitos por jornalistas brasileiros e estrangeiros. Mas esse tipo de material sempre foi mais abundante nas questões de política interna ou de economia, do que na informação e discussão dos fatos relativos à política externa. No plano interno, Carlos Castelo Branco talvez tenha sido o mais importante cronista da política brasileira, mas faltava alguém na área da política externa que pudesse competir com o seu padrão. Agora não falta mais: Maria Helena Tachinardi acaba de ocupar com maestria, e constância, um espaço que poucos jornalistas brasileiros souberam até aqui preencher: o relato circunstanciado, meticuloso, bem-informado, mas também opinativo, sobre mais de três décadas de política externa brasileira, um ver- dadeiro manancial de relatos objetivos que constituem um aporte decisivo a todos os historiadores que necessitam reconstruir os passos de nossa diplomacia desde os anos 1970 até nossa própria época.
Entre fevereiro de 1974, data de sua primeira matéria, e junho de 2015, o último artigo catalogado no anexo do livro Políticaexterna e jornalismo, foram 305 reportagens no total, selecionadas dentre milhares de outras, geralmente veiculadas na Gazeta Mercantil, entre 1980 e 2003, incluindo sua fase como correspondente em Washington, de 1996 a 1988. O núcleo do livro está organizado por governos e décadas, começando pela Guerra Fria, ainda nos anos 1980, que compreende também a nossa “década perdida”, seguida pela globalização, nos anos 1990, logo agitada pelas manifestações antiglobalizadoras, até adentrar nos anos problemáticos da “guerra ao terror”, nos anos 2000, que também testemunharam os primeiros desajustes nas relações internacionais, com novas tensões surgindo no horizonte.
Mas, antes de percorrer todas essas décadas e governos, com base nas três centenas de trabalhos que redigiu ao longo de reportagens, viagens e estágios no exterior, ela oferece em três dezenas de páginas introdutórias os seus Princípios de política externa nas reportagens, com as ênfases sucessivas e as definições fundamentais dessa política: “soberania, autodeterminação, realismo, pragmatismo, autonomia e não intervenção” (página 33), que são também os eixos diretrizes com os quais sempre trabalhou a diplomacia brasileira. Para isso, ela se valeu não só de investigações e estudos próprios, bem como de ensaios acadêmicos e de declarações de diplomatas — entre eles, os embaixadores Rubens Barbosa (que assina o prefácio) e Fernando de Mello Barreto, que ofereceu uma orelha.
Acompanhei alguns atos de “fabricação” dessas matérias, sobretudo ao longo das negociações comerciais multilaterais da Rodada Uruguai, da difícil construção do Mercosul e dos embates da Alca. Maria Helena interrogou pacientemente diplomatas, empresários, autoridades estrangeiras e glosou notícias que vinham do mundo todo, em coberturas sempre certeiras. O resultado é uma historiografia da política externa brasileira, assim como da evolução do sistema internacional, nas décadas mais intensas da reinserção mundial do Brasil, desde o período final da ditadura militar até o capítulo conclusivo, que remete à guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia e ao primeiro ano de Lula III.
As notas, ao final, complementam a informação sobre alguns episódios e fornecem alguma bibliografia. A obra termina por onde começou, ao citar Gabriel Garcia Marques, que relatou sua “paixão insaciável” pela “melhor profissão do mundo”. Maria Helena possui essa paixão, e conseguiu convertê-la num livro essencial aos historiadores do passado, assim como aos diplomatas do futuro.
De princípio quero deixar registrado meu agradecimento à jornalista e professora Rose Esquenazi pelo amável convite para integrar esta mesa ilustre que hoje se reúne no Midrash, sob a condução do rabino e escritor Nilton Bonder, para lembrar a bela vida e a obra singular de um dos mais criativos, corajosos e produtivos intelectuais do Brasil moderno, Alberto Dines, com quem tive a grata satisfação de conviver e dialogar, e cuja personalidade e contribuição cultural ao país considero da maior relevância. Saúdo a todos os presentes, em especial Norma Couri, a grande companheira e colaborada de Dines, a quem envio o meu abraço solidário.
Conheci Alberto Dines em 1981, nos meses que antecederam a publicação de MortenoParaíso, sua admirável biografia de Stefan Zweig. Nosso primeiro encontro se deu na sede da Editora Nova Fronteira, que funcionava à época numa confortável casa na Rua Maria Angélica, no Jardim Botânico. Eu era então uma espécie de escriba da editora, responsável pela elaboração dos textos de orelhas dos livros, do material de divulgação e de entrevistas com os autores, a serem distribuídas para os jornais de todo o país. Assim, li a biografia de Zweig ainda em provas.
Numa manhã em que Dines foi à editora, às vésperas do lançamento, me apresentei a ele, disse qual era a minha função na casa, e pedi para conversarmos por alguns minutos. Eu queria me certificar sobre detalhes da passagem de Zweig pelo Brasil para então finalizar a redação do material de imprensa. Dines mostrou-se muito atencioso, respondeu às minhas perguntas pacientemente, e ficou contente ao perceber que eu lera com cuidado o seu livro. Quando lhe disse que estava entusiasmado com sua biografia de Zweig, e que tinha certeza de que ela seria um sucesso, Dines fez cara de feliz, agradeceu com um riso que me pareceu revelar também alguma timidez, e me deu um rápido abraço. Esse gesto fraterno me sensibilizou. Constatei ali, de imediato, estar diante de um ser afável, predisposto à amizade, e essa minha primeira impressão só se confirmou no decorrer do tempo.
A noite de autógrafos, na Livraria Xanam, no Shopping Cassino Atlântico, no final da Av. Atlântica, em 16 de novembro de 1981, uma segunda-feira, foi das mais movimentadas do ano. Pedro Paulo de Sena Madureira, o editor, e Sérgio Lacerda, o dono da Nova Fronteira, não escondiam a alegria com a receptividade ao livro do ex-editor-chefe do Jornal do Brasil. Vale lembrar que este saiu junto com a biografia de Maria Antonieta por Zweig, pois Dines convencera Pedro Paulo a reeditar o autor, cujos livros, naquele momento, só se encontravam em sebos, nas antigas edições que Abraão Koogan, seu primeiro editor no país, fizera na Editora Guanabara.
Semanas antes do lançamento de MortenoParaíso, esteve na Nova Fronteira o ensaísta e diplomata José Guilherme Merquior, meu amigo e editado da casa. Como Dines, por coincidência, estava lá, Sérgio Lacerda nos levou para a sala dele, mandou chamar Pedro Paulo, pediu que trouxessem café, e lá ficamos um bom tempo conversando sobre coisas da política e da literatura. Merquior demonstrou imediato interesse pelo livro de Dines, e logo depois Pedro Paulo fez chegar a ele uma cópia. Merquior escrevia então, semanalmente, no Jornal do Brasil, mas durante o encontro a que me refiro nada disse sobre resenhar ou não a biografia escrita por Dines. No entanto, dias depois, por telefone, me contou que “talvez” escrevesse algo a respeito, o que efetivamente acabou por fazer: em 29 de novembro, um sábado, publicou o artigo “Zweig: uma estética da existência”, onde ressaltava o acerto da perspectiva narrativa adotada pelo mais recente biógrafo do prolífico escritor vienense:
Stefan Zweig.
“MortenoParaíso, a (retro) ‘reportagem humanista’ de Alberto Dines sobre os últimos anos de Stefan Zweig (1881-1942), contrasta com argúcia um mito, a utopia do trópico-eldorado, com uma vivência facilmente miticizada: o desespero do intelectual europeu, e sobretudo judeu, diante do holocausto nazi. (…) Uma das qualidades do biografismo humanizado mas não demagógico de MortenoParaíso é a crônica isenta dos mal-entendidos entre a cautela do refugiado Zweig, hóspede de um Estado Novo ainda indeciso entre o Eixo e a causa aliada, e a nossa esquerda da época, ‘cobrando’ do escritor atitudes mais combativas. No Brasil, Zweig permaneceu apolítico – mas isso não o impediu de defender sua raça, não o fez esquecer que devia o primeiro empurrão de sua carreira literária ao fundador do sionismo, seu conterrâneo Theodor Herzl”.
Esse foi apenas o primeiro artigo de peso a ressaltar a novidade e a abrangência da pesquisa empreendida por Dines. Muitos outros viriam a seguir. Em sucessivas edições, sempre revistas, MortenoParaíso, já editado inclusive na Alemanha, firmou-se como um livro essencial sobre Zweig, além de contribuir para aproximar as novas gerações de sua obra e iluminar o entendimento de como se processaram as relações do Estado Novo com muitos intelectuais e escritores.
Foi, portanto, no contexto do lançamento de MortenoParaíso, adaptado para o cinema pelo diretor Sylvio Back, que se alicerçou a minha camaradagem com Alberto Dines. Desde então, pelo fato de morarmos em cidades diferentes, nossos encontros pessoais ocorreram de forma espaçada, mas, valendo-me do telefone, pude conversar com Dines inúmeras vezes, e com ele trocar informações sobre livros, pessoas que conhecíamos, autores que admirávamos; livros que acabavam de sair e outros, esgotados, que ele achava que mereciam ser reeditados; projetos que estava desenvolvendo, artigos que tinha urgência em localizar; autores que eu publicara e ele queria entrevistar (um deles, o delegado Cláudio Guerra, de quem editei um depoimento estarrecedor sobre ações de extermínio de pessoas durante o regime militar), livros que eu lhe enviava.
Posso afiançar, sem exagero, que de todas essas conversas saí com o sentimento de que Dines era incansável, tanto pela variedade de suas leituras quanto pela capacidade de trabalho. A seriedade intelectual do nosso homenageado, seu entusiasmo pelos grandes temas do espírito, o conhecimento que possuía não só do seu métier profissional, o jornalismo, mas também da saga do judeu no mundo, com destaque para o modo como se processou no contexto ibérico e espanhol, sem o que ele não teria escrito uma obra da envergadura de Vínculosdefogo, deixava evidente a solidez de seus conhecimentos, sua curiosidade omnívora, e o volume de informação que possuía a respeito da produção da mais recente scholarship sobre os temas de seu interesse. Os primeiros versos de “Operário da palavra”, poema do grego Yiánnis Ritsos, caberiam bem como epígrafe de uma futura e necessária biografia de Dines: “Trabalhou a vida toda duramente, incondicionalmente/com ardor, com arrebatamento, quase com fé na/ imortalidade…”
Aciono a máquina da memória e ouço a voz de Alberto Dines me contando de suas frequentes conversas, na sede do CorreiodaManhã, com o ensaísta Otto Maria Carpeaux, a quem tanto admirava, e cujos ensaios editei; lembro também da tarde em que me falou com entusiasmo da obra de Elias Lipiner (1916-1998), para ele o “seu mestre”, me convocando a ler Os baptizados em pé: estudos acerca da origem e da luta dos Cristãos–novosemPortugal (1998); depois que cumpri a tarefa, ele me passou o telefone desse grande historiador nascido na Ucrânia, então morando em Israel, para que eu ligasse para ele, o que de fato fiz. Na verdade Dines estava preocupado com o desânimo que parecia rondar o amigo, e imaginou que receber um telefonema de tão longe, de alguém falando com apreço de sua obra, possivelmente o animaria. A meu ver, essa atitude expressa bem o sentimento de solidariedade, a vocação para o diálogo, o pendor analítico, a disponibilidade para a compreensão do outro que animou seu trabalho como biógrafo, especialmente em relação a Zweig e ao dramaturgo Antônio José da Silva, o Judeu, queimado pela Inquisição em 1739.
Um tema recorrente em nossas conversas era a contribuição judaica à cultura universal. Sempre procurei me informar a respeito dela, e Dines era um especialista, de modo que eu o consultava sempre. Diversas vezes conversamos sobre Gershom Scholem, o grande estudioso da mística judaica, amigo de Walter Benjamin, autor, entre outros, de SabataiTzvi: O MessiasMístico, um livro apaixonante, erudito, que exigiu anos de pesquisa, e que pensávamos deveria ser levado ao cinema. Falamos também de Uriel da Costa, Spinoza e Heine, de seus dramas pessoais, e da relação conflituosa que mantiveram com a tradição intelectual de seu povo. Trocamos informações sobre Américo Castro e Claudio Sanchez-Albornoz, que se enfrentaram numa polêmica de anos a respeito da contribuição judaica e moura à formação da identidade espanhola.
Pouco depois de ver em DVD o filme O Golem, de Carl Boese e Paul Wegener, comentei sobre ele com Dines sem saber que havia começado no jornalismo como crítico de cinema. Ele não só o conhecia como recordou várias cenas. Tempos depois retornou ao assunto, pois tinha lido uma resenha elogiosa de uma obra de Moshe Idel sobre o Golem, e me recomendou que a adquirisse. Recordo ainda da afeição que dedicava a escritores como Isaac Bashevis Singer e Joseph Roth, e, por fim, que foi ele, que se via como judeu laico, quem me falou pela primeira vez, com franco entusiasmo, da edição do primeiro volume do Zohar, com tradução e comentários de Daniel C. Matt, que acabara de sair pela Stanford University Press.
O legado intelectual de Alberto Dines é imenso. As ideias inovadoras que pôs em prática nos jornais e revistas que dirigiu, a ação pedagógica por ele exercida como professor nos muitos cursos de jornalismo e comunicação que ministrou por décadas, os programas de televisão que idealizou e apresentou, entre eles o “Observatório da Imprensa” e “O Canto dos Exilados”, a organização da coleção contendo as 175 edições do CorreioBraziliense, de Hipólito José da Costa, lhe garantem um lugar de destaque na história de nossa imprensa. Os muitos livros que escreveu, e que incluem também ficção, suas inúmeras contribuições em obras coletivas – com destaque para Os idos de março e a queda em abril, de 1964 – testemunham a enorme capacidade de trabalho, a agudeza de sua sensibilidade no campo da pesquisa histórica, e a elegância de sua prosa.
Embora sejamos obrigados a concordar com Moses Ibn Ezra quando observa, numa de suas meditações, que “o homem tem consciência, no curso da sua vida, /de ser levado para a morte”, a partida de alguém próximo, a quem admiramos, nos entristece. Só nos resta recordá-lo, sozinho ou na companhia de amigos. É o que viemos fazer aqui hoje: recordar Alberto Dines, o profissional exemplar, o homem corajoso e solidário, o conviva irônico e bem humorado, o intelectual cosmopolita e o judeu cultor da história e da sabedoria de seu povo.
José Mário Pereira é Editor da Topbooks. Este texto foi lido no Midrash Centro Cultural em 6 de junho de 2018.
A presidente Dilma Rousseff explica por que guarda ''em casa'' R$ 152 mil em espécie, valor que consta na sua declaração de bens como candidata à reeleição. Ela lembra ainda o período da ditadura, em que durante sete anos ''dormia de sapatos'', enquanto fugia da repressão. A candidata à reeleição presidencial participou nesta quarta-feira (28) de sabatina promovida pelo UOL, pela "Folha de S.Paulo", pelo SBT e pela rádio Jovem Pan. Leia mais sobre asabatina.