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segunda-feira, 22 de janeiro de 2024

Roberto Campos e a "Lanterna na Popa" - José Mário Pereira (2017)

 Reproduzo, a seguir, a homenagem feita a Roberto Campos por seu editor e amigo, José Mário Pereira, por ocasião do seminário que organizei no Palácio Itamaraty do Rio de Janeiro, em abril de 2017, por ocasião do centenário do grande diplomata e economista.

 

segunda-feira, 1 de maio de 2017

Roberto Campos e a "Lanterna na Popa"

José Mário Pereira

 

Diário do Poder, 1/05/2017

 

Transcrito no blog Diplomatizzando (1/05/2017); link: 

https://diplomatizzando.blogspot.com/2017/05/roberto-campos-e-lanterna-na-popa-jose.html

 

Depoimento do editor José Mario Pereira no seminário “Roberto Campos: O Homem que pensou o Brasil”, Palácio Itamaraty, Rio de Janeiro, em 18 de abril de 2017, em homenagem ao centenário de nascimento do autor de "A Lanterna na Popa" (1994), que ele editou pela Topbooks.


Quem me apresentou ao dr. Roberto Campos, em Brasília, foi meu amigo José Guilherme Merquior. Isso aconteceu em 18 de novembro de 1981, uma quarta-feira em que Henry Kissinger deveria fazer conferência no auditório Dois Candangos, que acabou não acontecendo devido ao tumulto criado pelos estudantes. Eu estava lá, enviado pelo jornal Última Hora, onde escrevia sobre livros. Merquior, na época, assim como Francisco Rezek, se encontrava na assessoria de Leitão de Abreu, então chefe da Casa Civil. Ali, enquanto Kissinger era retirado da sala por questões de segurança, e a polícia tentava conter a confusão, Merquior me apresentou ao dr. Roberto. O que de imediato me chamou a atenção foi a fleuma dele, a tranquilidade com a qual presenciava o desenrolar da confusão. O que ele fazia? Contava uma piada atrás da outra, e, como era exímio nessa arte, provocava risos no grupo que se formara ao redor dele.

 

Dr. Roberto possuía um estoque infindável de frases jocosas, piadas envolvendo figuras históricas, e também muitas de teor fescenino e erótico. Na noite do mesmo dia, voltamos a nos encontrar, no jantar que Merquior ofereceu em seu apartamento, ao qual compareceram também Leitão de Abreu, Delfim Netto, Bilac Pinto, o reitor José Carlos Azevedo, da UNB, e o dr. Marcílio Marques Moreira, então no Unibanco. Naquele momento, o dr. Roberto cuidava de acertar a sua candidatura ao Senado por Mato Grosso, afinal vitoriosa, e que foi o início de um período de 16 anos entre o Senado e a Câmara dos Deputados.

Passado esse primeiro encontro, só voltamos a nos ver uns três meses antes das eleições majoritárias de novembro de 1990, por intermédio do seu antigo companheiro de seminário em Minas Gerais, o escritor Antônio Olinto, que me levou ao apartamento dele para que eu examinasse a possibilidade de editar, com urgência, um livro que ele gostaria de ver impresso antes das eleições. Foi assim que surgiu O século esquisito, antologia de artigos e ensaios que publiquei naquele mesmo ano, uma semana antes das eleições, e que teve um lançamento muito concorrido na Livraria da República, de que eu era sócio, logo à entrada do Shopping da Gávea.

Na mesma época lancei ainda Moscou, Freiburg e Brasília, ensaios do prof. Delfim Netto, e O tom desafinado, de César Maia. Minha editora, a Topbooks, nasceu, portanto, com a publicação de três economistas em campanha eleitoral. Do prof. Delfim Netto fiz, mais tarde, outro livro, e de Roberto Campos foram ao todo cinco títulos – entre eles A Lanterna na Popa, suas admiráveis memórias, que saiu em setembro de 1994, e, dois anos depois, Antologia do bom senso, ganhador do Prêmio Jabuti de melhor livro de não ficção de 1996.

Eu já tinha publicado, então, dois livros do dr. Roberto — O século esquisito em 90 e Reflexões do crepúsculo em 91 — quando, a caminho da Churrascaria Majórica, em Petrópolis, parei numa banca para comprar a Folha de S. Paulo. O caderno “Mais!” daquele domingo, 11 de abril de 1993, trazia na capa o título “Ok, Bob: Você venceu”, e na parte interna uma entrevista, conduzida pelo jornalista Fernando Rodrigues, em que se lia, logo na abertura, que A Lanterna na Popa sairia em julho daquele ano. Percebi ali, dado o tamanho da matéria, que haveria muita disputa por esse livro, e que eu teria pouca chance na concorrência com as grandes editoras; mas, por insistência de minha mulher, Christine, liguei no fim da tarde para o dr. Roberto, comentei a matéria, e dele ouvi: “Agora vou ter de terminar o livro”. Indaguei: “Mas não está pronto?”, ao que ele respondeu: “Já escrevi um bocado, mas ainda há muito trabalho a ser feito”. Aí, ganhei coragem, e perguntei: “O senhor irá amanhã ao escritório?”. Respondeu que sim, e indagou se eu gostaria de passar por lá. Confirmei, e marcamos o encontro para as 13h no seu confortável escritório no número 151 da Av. Rio Branco, no centro do Rio. Tivemos uma longa conversa, durante a qual me mostrou cartas de editoras interessadas que recebera naquela manhã; pediu-me informações sobre cada uma delas, e ao final perguntou o que eu propunha. Basicamente, ofereci a ele os meus préstimos como pesquisador, revisor, divulgador, e meio a meio no lucro com as vendas do livro. Por uma questão de tempo, não vou detalhar agora todo o teor dessa nossa conversa, mas é fato que, já no dia seguinte, d. Nayde (pronuncia-se Neide), sua fiel secretária por mais de 30 anos, me telefonou dizendo que o dr. Roberto tinha ido para Brasília e pedira para me entregar os disquetes com o livro no ponto em que estava. Ele queria uma avaliação minha, e a partir daí me dediquei inteiramente à finalização de A Lanterna na Popa. Portanto, colaborei com o dr. Roberto nesse projeto, intensamente, por 17 meses: de 13 de abril de 1993 até o lançamento do livro, em 12 de setembro de 1994.

Nos seis meses que antecederam a publicação, trabalhamos em média 10 horas por dia, nos finais de semana, no escritório do seu apartamento na rua Francisco Otaviano, 140. Ficávamos horas a fio em silêncio, cada um no seu canto, revendo capítulos, checando datas, aperfeiçoando detalhes de informação, limando uma ou outra repetição, conferindo citações. Ele fazia as inserções que achava necessárias, sempre a lápis, e examinava com atenção as sugestões de mudanças e acréscimos que eu trazia como resultado das pesquisas que fizera durante a semana.

O capítulo sobre Assis Chateaubriand, por exemplo, foi quase inteiramente reescrito dias antes do envio dos fotolitos para a gráfica devido à recente publicação do Chatô, de Fernando Morais, que continha a transcrição de trechos de alguns virulentos artigos do biografado contra o dr. Roberto Campos. A leitura desta biografia me alertou para a necessidade de uma consulta urgente ao arquivo de O Globo, onde localizei a íntegra dos textos citados, além de outros igualmente violentos de Chateaubriand contra ele e Roberto Marinho no período que antecedeu a assinatura do acordo da TV Globo com o grupo americano Time-Life.

Recordo também que o capítulo “O discurso inaugural” ganhou acréscimos quando relatei ao dr. Roberto, a partir de conversas com o dono da Globo e com Merquior, o que se passara no almoço oferecido em Brasília, em fevereiro de 1990, pelo presidente eleito, Fernando Collor, a Mario Vargas Llosa, que então concorria à presidência do Peru. Nesse dia eu fora e voltara de Brasília com o dr. Roberto Marinho, que me contou do almoço, e logo depois confrontara a sua narrativa com a do próprio Merquior. Lembro ainda o dia em que o dr. Roberto Campos me pediu para localizar “um punhado de frases” que merecessem um lugar ao lado da sentença de Coleridge que lhe havia inspirado o título A Lanterna na Popa. Pouco tempo depois entreguei a ele umas três páginas que extraíra de livros e dicionários de citações. Mas ele só gostou mesmo dos versos de João Cabral: “Sempre evitei falar de mim, / falar-me. Quis falar de coisas. / Mas na seleção dessas coisas / não haverá um falar de mim?”.

Para atiçar a memória do dr. Roberto, organizei num canto de sua biblioteca, onde as estantes eram de vidro, um conjunto de memórias, depoimentos e biografias de contemporâneos, e fichei as referências ao seu nome que considerei relevantes. Em seguida, eu comentava sobre o que localizara, e muitas vezes esse diálogo o levava a uma nova recordação, que ele imediatamente anotava para ser inserida numa passagem ou noutra do Lanterna. Entre os livros de memórias que lembro ter lido e anotado com vagar estão os de Gilberto Amado e Afonso Arinos; entre as biografias, eu destacaria a de Castello Branco por Luiz Viana Filho.

O Dr. Roberto era uma máquina de trabalho, e parece ter apreciado a minha disponibilidade para atendê-lo com a urgência que se impunha. Com o tempo, foi se consolidando uma boa camaradagem entre nós, e passamos a falar não só do livro em processo mas da situação política, do mercado editorial, de pessoas que conhecíamos, da ABL – onde ele viria a ingressar, após duas tentativas – e de vários outros assuntos culturais e mundanos. Lembro, por exemplo, que num domingo à tarde, depois de almoçarmos no andar de baixo de sua cobertura, me convidou para uma caminhada no calçadão de Ipanema, para “tomar um ar e apreciar as moças”. No meio do passeio, ele, vestindo um surrado moleton azul, ao perceber que eu virara o rosto para olhar uma bela garota de biquíni, disparou: “Acabo de constatar que você pertence à geração do pau aflito. Eu, infelizmente, estou broxa!”. E riu. Com o tempo, fui percebendo que ele praticava uma ironia muito corrosiva, não só sobre adversários ideológicos e os descaminhos políticos e econômicos do Brasil, mas também em relação a si mesmo!

 

A Lanterna na Popa foi quase todo escrito nos finais de semana. Dr. Roberto, então senador, chegava ao Rio, de Brasília, na quinta-feira à tarde. D. Neide me avisava, e então eu levava para ele o que já tinha revisto, mais o material que havia pesquisado em jornais e revistas, e que, me parecia, ele podia aproveitar nesses capítulos que deixara comigo no final da semana anterior, para revisão. Nesse compasso, o livro foi se avolumando e tornou-se o que é: obra definitiva para a compreensão do Brasil moderno.

Embora crescesse a cada semana, nunca passou por minha cabeça inibir o autor com observações sobre tamanho, nem impor limite ao número de páginas. Deixei-o escrever, reescrever, acrescentar. Na última hora, quando já estava indo para a impressão, ele pensou em eliminar o Apêndice, preocupado em reduzir o tamanho do livro. Mas advoguei o contrário, puxando de uma de suas estantes o primeiro volume das memórias de Henry Kissinger, The White House Years, com mais de 1.500 páginas. "Dr. Roberto, eis aqui um ilustre precedente". Ele concordou. Eu tinha a intuição de que assistia à gestação de uma obra única, que viria a ser, a partir de sua publicação, fonte de consulta permanente.

Quando comecei a trabalhar na finalização de A Lanterna na Popa, tive a preocupação de consultar todos os livros importantes, principalmente os de memórias e depoimentos de brasileiros ilustres seus contemporâneos. Qualquer referência a Roberto Campos que encontrasse eu fichava, resumia, e em seguida lhe dava conhecimento do meu achado. Às vezes ele olhava e dizia: "Isso não tem importância". Em outras, lia com atenção, sentava-se em seguida à mesa no fundo do escritório do seu apartamento, e começava a escrever – sempre à mão, com lápis e borracha, em bloco de papel pautado. Eu achava engraçado aquilo, parecia coisa de garoto em idade escolar. Quando não gostava do que redigira, apagava. A mesa ficava coberta por aquela farinha da borracha.

Com o tempo, certifiquei-me do hábito de escrevinhar seu artigo do fim de semana nos espaços em branco de qualquer livro que estivesse lendo – e muitas vezes à caneta. Fazia isso notadamente nos voos de ida e volta para Brasília. Uma vez lhe emprestei um livro que acabara de comprar. Semanas depois o encontrei em sua mesa de trabalho, todo rabiscado: ele havia escrito um artigo quase inteiro em suas guardas. Achei por bem presentear-lhe com o livro, que lhe despertara tanto interesse a ponto de riscá-lo daquela maneira, mas hoje lamento não poder voltar a examiná-lo com as marcações do dr. Roberto. Quase todos os livros dele eram riscados e anotados. Um dia, no almoço em sua casa, comentei dessa mania com d. Stella, sua mulher, que observou: “O Roberto gosta tanto de livro mas não para de fazer isso. Um horror!”.

A primeira edição de A Lanterna na Popa foi de 6 mil exemplares, e mereceu uma cobertura pioneira da Veja e, na sequência, dos principais jornais do país. O editor Thales Alvarenga pretendia dar a capa da revista ao livro, mas Rubens Ricupero, então ministro da Fazenda, com uma frase infeliz gravada sem o seu conhecimento, acabou estampando a edição de 7 de setembro de 1994. Tivemos, no entanto, uma chamada no alto da capa, e mais oito páginas de matéria, sob o título “Mais de um século em 77 anos”, e um subtítulo: “Nas memórias de Roberto Campos um retrato abrangente e bem-humorado do Brasil”.

No dia 10 de setembro de 1994, um sábado, entreguei a Roberto Campos, no Aeroporto Santos Dumont, os primeiros 46 exemplares. Ele os levou para São Paulo, porque tinha um café da manhã agendado com jornalistas na manhã do dia 12, uma segunda-feira. À noite se deu o primeiro lançamento, no Clube Harmonia, com patrocínio da Bolsa de Mercadorias e Futuros, quando autografou 522 dos 550 exemplares que mandamos para lá, e que chegaram ao seu destino em cima da hora, pois a gráfica atrasara a entrega, o que provocou muito estresse.

Foi providencial a ajuda da Varig para embarcar, do Rio para São Paulo, esses exemplares no meio da tarde do dia do lançamento. No Rio de Janeiro, a noite de autógrafos ocorreu dois dias depois, na sede do Jóquei Clube, no centro da cidade, quando autografou pouco mais de 300 exemplares.

Em seguida, foram impressas pelo menos três edições de 20 mil exemplares cada uma. A partir daí fui reimprimindo tiragens de 2 mil exemplares. Desde então, nesses 23 anos o livro nunca deixou de ser reimpresso, e há muito tempo alcançou a categoria de obra de referência incontornável sobre o Brasil em que o autor viveu e atuou.    

As reações ao Lanterna, quando do seu lançamento, foram diversas: algumas livrarias que antes se recusavam a receber os livros do dr. Roberto, mesmo em consignação, passaram a vendê-lo com entusiasmo. A crítica também foi excelente. Wilson Martins escreveu no Jornal do Brasil de 4 de março de 1995: “Podem-se ler nas memórias de Roberto Campos a história política, a história diplomática, a história econômica, a história ideológica e a história intelectual do Brasil nos últimos 50 anos – assim como, bem entendido, a autobiografia de um estadista que nelas desempenhou funções de destaque e prestígio. São níveis de leitura que se completam e complementam entre si, para nada dizer do seu extraordinário valor documental”.

Houve também quem reclamasse do peso do livro. Paulo Francis foi um que lamentou não poder lê-lo na cama. Rachel de Queiroz me pediu para conseguir um exemplar cortado ao meio. Eu fiz melhor: mandei pra ela um exemplar com os 92 cadernos soltos. Assim ela o leu, inteiro, na rede de sua fazenda no Ceará. A socialite Carmen Mayrink Veiga cortou o exemplar com a tesoura e o levava aos pedaços para ler na praia. Tempos depois, Caetano Veloso, que lera o livro de ponta a ponta, brincou ao me conhecer: “Então você é o culpado pela minha bursite?” (rs).

Estamos falando de um livro que em sua primeira edição saiu em um volume de 1.417 páginas. Há nele histórias saborosas para todos os gostos. Entre as que dizem respeito à relação do autor com o editor, vou contar agora, pela primeira vez, uma especial. Por volta de junho de 1994, conversando com o dr. Roberto em seu escritório da Av. Rio Branco, e depois de muito hesitar, acabei comentando que conhecidos meus – não mencionei nomes, mas dois deles eram o jornalista Tarso de Castro e o compositor Tom Jobim – me perguntavam se na Lanterna ele iria falar sobre o episódio envolvendo uma mulher que o agredira. Estávamos tomando um whisky, na maior camaradagem, e a menção a esse caso mudou seu semblante. “Não tenho por que falar disso! Trata-se de um assunto de minha vida particular, já por demais comentado”, respondeu-me num tom fronteiriço ao áspero. Tomei fôlego e prossegui: “Não estou sugerindo que trate do assunto, dr. Roberto. Apenas quis preveni-lo a respeito, porque podem surgir perguntas nesse sentido em alguma entrevista ao vivo, por ocasião do lançamento”. Ele me olhou, ainda travado, e falou: “O que você sugere?”. Eu enfatizei que de modo algum pretendia induzi-lo a tratar de um tema que o desagradava, mas que ele podia tentar escrever uma frase (ou duas) que servisse de escudo no caso de ser abordado de surpresa, em público, sobre essa história. Aí tratei de finalizar o meu whisky, e logo ele disse: “Ok. Vou ver o que consigo!”. Fui embora um tanto arrependido de ter tocado num assunto que o incomodava. Uns três dias depois, ao voltar lá, assim que entrei na sala ele apanhou uma folha manuscrita, que estava sobre a mesa, e me passou, dizendo: “Veja se é isso o que você imaginava”.

Então li: “Esse depoimento é menos a estória de uma pessoa que o testemunho de uma época. Ou antes, de várias épocas da vida brasileira, com frequentes relanceios sobre a conjuntura internacional. Os prurientes ficarão desapontados pela ausência de entrechos românticos ou peripécias amorosas. Direi apenas que, tendo tido uma adolescência reprimida, com jejum e cilício no claustro, procurei usar galhardamente o direito de pecar. Se escrevesse um capítulo amoroso, ele teria apenas uma frase: “Não fui veado”; e uma nota de rodapé: “Nem atleta sexual”. Disse-lhe que estava perfeito, sem me alongar em comentários, e esse trecho acabou se tornando um dos mais citados do livro.

Embora fosse tímido, o que os desavisados tendiam a confundir com arrogância, ele era muito educado, atencioso, e até brincalhão em meio ao seleto grupo de amigos e conhecidos. Gostava da convivência com sua turma de confiança. Apreciava compartilhar o whisky com eles, sabia ouvir e estimular a conversação. Mas quando em meio ao trabalho, era em geral telegráfico, especialmente ao telefone. Não demorei a notar que quando dizia “OK” era hora de encerrar a ligação. Eu ouvia o seu “OK” e respondia imediatamente com um “Até logo; qualquer novidade ligo para o senhor”. Assim, nunca tivemos nenhum desentendimento.

Nossas conversas nos intervalos do trabalho giravam, com frequência, em torno de literatura, filosofia e teoria social. Ele contava boas histórias de Guimarães Rosa e Nelson Rodrigues, falava das leituras que fez de Aristóteles e Santo Agostinho no seminário, da forte impressão que lhe deixaram sociólogos como Ralf Dahrendorff e Ernst Gellner, que conhecera em Londres por intermédio de José Guilherme Merquior, e se queixava da falta de tempo para ler romances. Um dos últimos que tentou foi Auto de fé, de Elias Canetti, mas me confessou que não conseguira ir adiante, o que lamentei. Aprendi muito no convívio com ele e na observação de seu modo de pensar e proceder, e por isso lhe sou grato. No íntimo era um homem afetuoso; quem ler a seção “Elegias”, nos livros Reflexões do crepúsculo e Na virada do milênio, vai comprovar isso.

Meu amigo Darcy Ribeiro comungava com a opinião de Brizola sobre o dr. Roberto: “É o mais autêntico e competente dos tecnocratas entreguistas”. Quando, já doente, finalizava suas memórias, Darcy me chamou várias vezes ao seu apartamento para ajudá-lo a rever Confissões, que afinal teve edição póstuma, em 1997. Uma vez, assim que entrei na sala, ele me olhou e disse: “Você está com boa cara. Soube também que ficou rico!”. Eu ri, e perguntei que história era aquela. Ele então disparou: “Ora, você deve ter recebido muito dinheiro do Departamento de Estado americano, ou de algum outro órgão cultural deles, para editar o calhamaço do Roberto Campos! Eles também devem ter ajudado na pesquisa, não?”. Caí na gargalhada, e passei a contar as dificuldades que tive para levantar o dinheiro para editar A Lanterna na Popa. “Mas o Roberto Campos é rico, Zé Mario! Ganhou muita comissão servindo aos interesses americanos no Brasil! Então foi ele quem pagou a edição!”. Tornei a dizer que não era verdade, que eu até pegara dinheiro emprestado para publicar o livro, e que o dr. Roberto não me parecia nada rico: eu testemunhara suas dificuldades para levantar dinheiro quando das campanhas eleitorais, e depois para quitar as dívidas restantes, quando chegou a vender quadros que ganhara de amigos como Di Cavalcanti e Manabu Mabe. Mas Darcy continuou incrédulo, e então procurei mudar de assunto.

Terminada a cerimônia de posse de Darcy Ribeiro no Senado Federal, em fevereiro de 1991, fui para a sala do dr. Roberto Campos na Câmara porque havíamos combinado de almoçar juntos. Saímos em busca do carro dele, e fui contando que acabara de assistir a um comovido discurso do Darcy, e que ele até descera da tribuna para beijar a cabeça do Florestan Fernandes. Dr. Roberto deu um riso simpático, o que me animou a mostrar-lhe uma cópia do discurso do Darcy que trazia comigo. Ele começou a folheá-lo, aparentemente interessado, mas logo a seguir me devolveu a cópia, dizendo, com ar irônico: “O Darcy é um romântico inveterado. E os nossos índios não chegam aos pés dos astecas, incas e maias!”. Aí entramos no carro e passamos a falar de outros temas. Eu não contei dessa sua opinião para ninguém, mas tempos depois o próprio dr. Roberto, num artigo chamado “Ataques de romantismo”, publicado em 3 de setembro de 1995, repetiu quase literalmente o que antes me dissera. A receita para conviver com pessoas de visões ideológicas tão díspares é não dar a conhecer a nenhuma delas o que um disse do outro, e, na medida do possível, aplainar as diferenças. Foi o que sempre procurei fazer.

Dr. Roberto tinha imenso respeito intelectual por Eugênio Gudin, a quem considerava um intelectual lúcido e cosmopolita, e admirava Mario Henrique Simonsen por sua afinidade com a matemática, e também pela quase obsessão do amigo por ópera, especialmente as de Wagner, que ele, dr. Roberto, dizia considerar uma das supremas formas do tédio! Ele apreciava canto gregoriano, certamente eco de sua passagem pelo seminário, e algumas peças de Bach. Quando caminhava sozinho pelo calçadão de Ipanema, sempre de moleton, em geral o fazia portando um walkman, mas o que ouvia ali era Shakespeare e Eliot.

 

Em relação ao “liberista” Merquior, por quem tinha funda amizade, este lhe despertava admiração intelectual. O diálogo dos dois se estreitou no período em que coincidiram em Londres, ele embaixador. Nessa época, discutiram muito sobre as mudanças que ocorriam no mundo e que levaram à Queda do Muro de Berlim e à perestroika, por exemplo, além das últimas novidades da teoria liberal. Dr. Roberto era um entusiasta da obra madura de Hayek, especialmente de A constituição da liberdade, e comungava com Merquior no entusiasmo pela obra do politólogo francês Raymond Aron, de quem foram amigos, e sobre o qual escreveram. É muito aguda a introdução que o dr. Roberto fez para a edição lançada pela UnB no início dos anos 80 de O ópio dos intelectuais, assim como o prefácio que escreveu para a edição brasileira de Liberalismo – Antigo e moderno, o livro póstumo de Merquior, cuja morte precoce ele lamentou como a de um filho querido. “É um desperdício! Por que não fui eu, que já estou um bagaço?”, ouvi-o dizer à época, verdadeiramente comovido.  

Em várias ocasiões o vi referir-se elogiosamente a Celso Furtado; embora discordassem, ele o respeitava muito. Uma vez, saindo com o dr. Celso da ABL, este me confessou ter ficado surpreso com o espaço que Roberto Campos havia lhe dado em suas memórias, e considerou que o autor fora muito generoso com ele. O dr. Roberto tinha a capacidade de admirar, mesmo quando não concordava com as ideias expressas por seus adversários ideológicos. Não se encontra rancor nem mesquinharia intelectual em nenhum dos perfis de personalidades por ele traçados em A Lanterna na Popa.

O dr. Roberto – que no começo da carreira chegou a ser tachado de esquerdista – exercitava a autocrítica o tempo todo. Ele admitia seus erros, comentava as ilusões que teve ao longo da vida, os fracassos; era por demais autocrítico. Às vezes estávamos vendo uma fala sua na televisão, e alguém o elogiava; ele agradecia com um rápido “obrigado”, e acrescentava: “Mas como estou feio! Meu Deus!”.

Ele procurava refletir sobre tudo o que se publicava de relevante nos temas de sua especialidade. Lembro do enorme interesse com que leu, ainda em formato de tese, a obra de Ricardo Bielschowsky, Pensamento econômico brasileiro, onde se encontram excelentes páginas de análise sobre o seu pensamento e ação. Na classificação do autor, Gudin e Bulhões seriam “neoliberais” porque, ao contrário dos liberais até a Revolução de 30, admitiam uma moderada intervenção estatal para regular as imperfeições do mercado, enquanto Roberto Campos, em parte por ter concebido o Plano de Metas, seria um “desenvolvimentista”.

Num de seus livros, Celso Furtado chama a atenção para o ceticismo de Roberto Campos em relação ao Estado. Celso chega mesmo a supor que essa sua posição tomou forma quando idealizou o BNDE, e Getúlio Vargas, para seu espanto, entregou a superintendência-geral do órgão, o cargo mais importante na estrutura de comando do órgão, a Maciel Monteiro, jejuno em economia, e conhecido como “Bundinha”.

Antes de Hayek, nos seus anos de formação, ele foi influenciado por Keynes, especialmente por seu Tratado sobre a Moeda; por Haberler – de quem foi aluno; pelo Schumpeter de Business Cycle, de 1939, e por Ragnar Nurkse. O Hayek pensador, de quem se aproximou na maturidade, muito mais que o economista foi o filósofo liberal que escreveu obras seminais como A constituição da liberdade (1960), e Direito, Legislação, e Liberdade, a trilogia de 1973. Ele também demonstrava um verdadeiro entusiasmo pelas ideias e pela capacidade decisória de Margareth Thatcher, com quem esteve várias vezes. No Brasil, a grande influência em sua formação profissional ele a recebeu de Eugênio Gudin e Octávio Gouvêa de Bulhões.

Dr. Roberto conhecia muita gente mas, quando estreitamos relações, nos meses que antecederam a eleição de 1990 – durante a produção do livro O século esquisito – quem mais eu via com ele, íntimos a ponto de frequentarem o seu apartamento, eram: o médico Reginaldo Delamare, com quem costumava caminhar no calçadão de Ipanema; o embaixador Oscar Lorenzo Fernandez, amigo de muitos anos, que o assessorou no Senado e na Câmara; Márcio Campos; Nelson Teixeira; Aristóteles Drummond; seu assessor de imprensa, Olavo Luz; seu cardiologista, César Benjó; o jornalista Gilberto Paim e o advogado Paulo Mercadante. Tanto Oscar Lorenzo quanto Gilberto o ajudavam, quando necessário, a estruturar os seus artigos, principalmente em épocas de eleição. Num domingo à tarde, fui ao seu apartamento e lá encontrei o Oscar e o Gilberto fazendo uma avaliação do quadro eleitoral. Ao elogiar seu artigo no Globo daquele dia, dr. Roberto deu uma risada e disse: “Já que gostou, cumprimente o Oscar. Foi ele quem o escreveu!”. Naturalmente ele fizera isso dados a intimidade e o conhecimento profundo das ideias do economista, mas esta sua manifestação espontânea revela muito sobre seu compromisso com a verdade e sua predisposição para reconhecer o talento alheio.

O dia a dia do dr. Roberto era controlado pela fiel secretária Nayde Rodrigues Alves, a dona Neide, e pelo filho Bob. A muitas solenidades ele comparecia com Sandra, a filha, e não com d. Stella, senhora admirável, sem pompa, que aparentemente gostava mesmo era de ficar em casa. No mundo empresarial, tinha grande estima por figuras como Walther Moreira Salles e Roberto Marinho, para citar apenas dois. Um dia, o dono da TV Globo, que muito ajudara na divulgação de A Lanterna na Popa, me pediu para combinar com o dr. Roberto Campos um almoço, que foi o último deles, acrescentando: “Mas vamos fazê-lo lá em casa, não na televisão, só nós três, para podermos conversar à vontade”. Fomos juntos, no dia combinado, à residência do Roberto jornalista, no Cosme Velho. Ainda no carro ele me perguntou: “O Roberto te falou qual será a pauta do almoço?”. Respondi que não, mas que pressentira nele um ar conspirador. Lá chegando, o mordomo nos conduziu a uma mesa na varanda, e logo depois apareceu o dr. Roberto Marinho; sorridente, nos abraçou, e convidou-nos a sentar. Então contou que havia pedido aquele encontro porque há muito pensava em promover uma grande campanha para devolver ao Rio de Janeiro o título de capital do país, pois achava Brasília um horror, e acreditava que a crise inflacionária nacional tinha sido agravada com os custos de sua construção. “O que você acha, Roberto? Você me ajudaria nisso?”, ao que o Roberto economista respondeu: “Acho a ideia excelente, só desconfio que não tenhamos mais o necessário ânimo para implementá-la, nem tampouco suportarmos o achincalhe. Mas há tempos fiz umas tabulações sobre o “custo Brasília”, que é alto, isso para não falar do coeficiente de corrupção que lá prospera”. Garantiu que iria voltar a estudar o assunto, o anfitrião ficou satisfeitíssimo, e logo depois nos despedimos. Como previu o economista, o tempo foi curto para que ambos pudessem tocar a cruzada a favor do Rio.

Tenho a impressão de que o dr. Roberto Campos não cultivava ressentimento de nenhuma ordem. Às vezes comentava que fora alvo de campanhas injustas, que os estudantes haviam promovido o seu enterro, mas logo depois dava uma risada. Havia em sua personalidade um componente estoico que o predispunha a aceitar com tranquilidade as reações provocadas por suas ideias, mesmo quando tais reações eram desmedidas, tolas ou arbitrárias. Nisso eu o achava parecido com Raymond Aron, e assinalei essa semelhança de postura intelectual no texto que escrevi para as “orelhas” de A Lanterna na Popa.

Foi assim que ele se comportou frente à campanha, promovida por intelectuais de esquerda como Antônio Houaiss e Antonio Callado, às vésperas da concessão, pela Academia Brasileira de Letras em parceria com o grupo Votorantim, da primeira edição do Prêmio Senador José Ermírio de Moraes, que afinal recebeu em 20 de julho de 1995. Eles e outros acadêmicos defendiam a escolha como melhor livro do ano de 1994 para Chatô, o rei do Brasil, de Fernando Morais. Callado declarou ao Jornal do Brasil: “Vamos tentar de tudo” para impossibilitar a premiação ao “baluarte do que há de mais reacionário no Brasil” (Veja, 19.4.1995). Na mesma matéria, havia a seguinte afirmação de Houaiss: “O livro de Roberto Campos é só vaidade. Uma pessoa que tem uma vida de canalhice não pode escrever um livro de santo. Não há nenhuma autocrítica no texto”. No domingo anterior, 16 de abril de 1995, Paulo Francis comentara em sua coluna “Diário da Corte”, em O Globo: “Surpreendente que Antonio Callado e Dias Gomes queiram negar o prêmio da Academia a Roberto Campos, porque o detestam ideologicamente, única razão, porque suas memórias são um pilar da nossa história. Rosa Luxemburgo disse tudo: “Liberdade é quase sempre exclusivamente a liberdade de quem discorda de nós”.

O liberalismo no Brasil tem uma história longa, já esmiuçada por estudiosos como Luiz Camilo de Oliveira Torres, Celso Lafer, Wanderley Guilherme dos Santos, José Murilo de Carvalho, entre outros. Por sua capacidade de exposição, vigor analítico e destemor na defesa de seus pontos de vista, Roberto Campos teve uma enorme importância na história do nosso liberalismo econômico. Ele herdou e ampliou o debate sobre as ideias liberais de Eugênio Gudin, a quem conheceu durante a Conferência de Bretton Woods, e a quem permaneceu ligado pelo resto da vida.

Eu lhe perguntei muito sobre Castello Branco, dado que nasci no Ceará. Ele o tinha em alta conta. Admirava-lhe a disposição para ouvir, e o seu espírito cívico e liberal. É bom lembrar que o então presidente pretendia ser sucedido por um civil. Segundo o depoimento de Cordeiro de Farias, o candidato de Castello era Bilac Pinto, um dos próceres da UDN.

Num artigo que publicou em O Globo a 27 de março de 1994, dr. Roberto afirmou: “Com a correção monetária, criei um carneiro que virou um bode”. Numa entrevista à revista IstoÉ de abril de 1983, declarou: “‘Arrocho salarial’ é expressão pejorativa. O que houve ao tempo de Castello Branco foi ‘realismo salarial’. Era necessário evitar que os salários reais crescessem mais que a produtividade. E era necessário restaurar a exangue capacidade de investimentos, quer do Governo, quer das empresas”.

Não só em A Lanterna na Popa ele expressa admiração e respeito pessoal por Castello Branco. Em artigos de jornal e em entrevistas anteriores, reconhece as qualidades de estadista do marechal-presidente. Ele considerava que um de seus êxitos junto a Castello foi fazê-lo compreender a necessidade de se alcançar a estabilidade de preços.

A mim ele nunca expressou reserva de qualquer ordem, ou mesmo arrependimento, por ter colaborado com governos militares. Considerava-se um funcionário público, treinado para desempenhar funções administrativas e de planejamento econômico. Eu penso que o dr. Roberto, por temperamento, não era de arrependimentos dessa natureza. Ele não era um carreirista, desses que fazem qualquer coisa pelo poder. Havia nele uma autonomia intelectual genuína, e desse modo não evitava conflito ou polêmica quando elas se faziam necessárias.

Dr. Roberto era muito autocrítico. Admitia erros de percurso, evidentemente. É de sua lavra esta reflexão: “Quem chega ao crepúsculo de uma longa experiência na vida pública pode sempre detectar, com realismo, a brecha entre o desejável e o realizável, entre a promessa e o desempenho”.

Quem consultava muito o dr. Roberto sobre a situação econômica brasileira, com ênfase no desempenho das estatais, entre elas a Petrobrás, era o Paulo Francis. Na última passagem do Francis pelo Rio, pouco antes de sua morte em fevereiro de 1997, almocei com ele na casa de um grande amigo seu, o empresário Ronald Levinsohn. Ao final, liguei para o dr. Roberto, falei rapidamente com ele, e passei o telefone para o Francis. Eles conversaram por um bom tempo, o Francis empolgado, dando gargalhadas, e pelo menos uma vez eu o ouvi dizer: “É um espanto. A Petrobrás é um espanto!”.

Roberto Campos era muito crítico da Constituição de 1988, que considerava “híbrida no plano político, intervencionista no plano econômico, e utópica no plano social”. Acreditava que a privatização podia ajudar muito na solução da nossa dívida interna e externa, mas que era necessário o governo ter pulso firme na condução desse processo. Ele percebia muita hesitação a respeito em alguns setores. Assisti a inúmeras conversas dele com Oscar Lorenzo Fernandez e Paulo Mercadante sobre o tema.

No último volume do seu Diário da Presidência, o ex-presidente Fernando Henrique conta que, em várias ocasiões, pediu a ajuda do dr. Roberto para acalmar alguns banqueiros, do Brasil e dos Estados Unidos, em relação ao que ele estava fazendo na economia. No mesmo volume, o leitor é informado de que, nos anos 70, FHC esteve detido no Doi-Codi paulista por 24 horas, “para “prestar esclarecimentos” sobre suas ligações com intelectuais trotskistas e sua amizade com o ex-ministro Roberto Campos”. Ou seja, o homem que em 1958 teve o seu enterro simbólico promovido por estudantes da UNE, nos anos 70 era visto com desconfiança pelos militares.

Ele foi um corajoso defensor das privatizações, alertando, porém, para a necessidade de que fossem realizadas com base em minuciosos estudos preliminares, para evitar pressões políticas, lobismo irresponsável, e roubalheira. Em relação à Petrobrás – que apelidara de “Petrossauro” – tinha uma visão crítica, amparada no exame detalhado que fazia de relatórios, balanços e informações que recebia, na Câmara e no Senado, de gente ligada à empresa. Mesmo assim, penso que se espantaria com o nível de bandalheira praticada nos últimos anos na Petrobrás, e que a Lava Jato ajudou a trazer a público.

Além de economista brilhante, filósofo social, e até moralista – no sentido francês dessa expressão – ele era um escritor de pena feliz. Gosto de lembrar que a revista Senhor, que contou entre seus colaboradores com grandes escritores da época, não descuidou de ter Roberto Campos em suas páginas. Na Sessão da Saudade na Academia Brasileira de Letras, uma semana após sua morte, em outubro de 2001, Carlos Heitor Cony disse que o modelo de A Lanterna na Popa eram as Mémoires d’outre tombe (1849), do francês Chateaubriand. Não acredito nisso, nunca vi essa obra na biblioteca do dr. Roberto. Isso não significa que ele não a tenha lido, mas não creio que fizesse parte de suas leituras de cabeceira a ponto de tê-lo influenciado na arquitetura de suas memórias. De qualquer modo, o fato de uma pessoa com a experiência e a cultura de Cony ter visto em A Lanterna na Popa a influência das Memórias de Chateaubriand revela que o livro de Roberto Campos é obra de escritor com domínio invulgar da língua — não somente um economista que, a certa altura da vida, resolveu escrever memórias.

Nos fins de semana, quando terminávamos a tarefa do dia, por volta das 9 ou 10 da noite, o dr. Roberto Campos costumava me propor um whisky. Logo aprendi o ritual: eu ia até a sala no fundo do corredor, onde havia um minibar, e preparava duas doses – a minha, só com gelo, e a dele, que acrescentava ao whisky um pouco de coca-cola diet. Ao longo de nossa convivência, eu o observei em várias situações, algumas alegres, outras tristes, mas acho que a mais tensa de todas ocorreu quando, acossado pelas contas da última campanha à Câmara dos Deputados (um dia chegou a me dizer que estava sem dinheiro até para os galhardetes), o vi disparar telefonemas para vários lugares em busca de um banqueiro seu amigo, baseado na Suíça, que prometera ajudá-lo, mas que naqueles dias parecia ter evaporado. Cheguei a ficar preocupado, porque pouco tempo antes ele colocara um marca-passo.

Conto isso agora com os olhos fitos no descalabro que as delações premiadas da Operação Lava Jato vêm revelando, onde avulta o absurdo volume do dinheiro envolvido, parte dele roubada da Petrobrás, e a desfaçatez da maioria dos acusados. Revelo esse episódio que presenciei porque, entre nós, poucos foram tão acusados injustamente quanto o autor de A Lanterna na Popa. Como seria bom poder ouvi-lo a respeito do que hoje se passa com o Brasil e sua desacreditada classe política. O que ele diria a respeito?

Se a vida não fosse “um acidente irrecorrível”, como bem lembrou o prof. Delfim Netto no artigo dedicado ao dr. Roberto Campos no último domingo, e o homenageado do dia pudesse agora se exercitar no trapézio de sua imensa lucidez, talvez me repetisse o que escreveu num dos artigos de Temas e sistemas, seu livro de 1969: “O nosso problema atual é menos de instituições que de material humano”.

Depoimento do editor José Mario Pereira no seminário “Roberto Campos: O Homem que pensou o Brasil”, Palácio Itamaraty, Rio de Janeiro, em 18 de abril de 2017, em homenagem ao centenário de nascimento do autor de "A Lanterna na Popa" (1994), que ele editou pela Topbooks.

 

terça-feira, 5 de janeiro de 2021

O ano Merquior (10): depoimento de José Mário Pereira sobre José Guilherme Merquior (2001)

 Segue abaixo, tal como transcrito desta obra: 

Alberto Costa e Silva (org.)

O Itamarati na cultura brasileira

(Brasília, Instituto Rio Branco, 2001)


 o depoimento pessoal, pungente, informativo, afetivo, do editor José Mário Pereira (da Editora TopBooks) feito sobre seu amigo e editado José Guilherme Merquior, a pedido do embaixador Alberto da Costa e Silva.

Paulo Roberto de Almeida


O fenômeno Merquior

por José Mário Pereira

  

"A mais fascinante máquina de pensar do Brasil pós-modernista — irreverente, agudo, sábio", na feliz expressão de Eduardo Portella, José Guilherme Merquior espantava pela versatilidade e capacidade de metabolizar idéias. No Brasil do século XX sua obra foi um marco, e sua morte prematura, aos 49 anos, no dia 7 de janeiro de 1991, um desastre incontornável para a cultura brasileira, que dele ainda tinha muito a receber. Identificado quase sempre como polemista — o que, em se tratando de Merquior, é redutor — a riqueza heurística de sua produção intelectual está ainda por ser enfrentada sem a leviandade e a preguiça mental contra as quais tanto se bateu.

Por muitos meses hesitei em escrever estas notas. Somente a paciência e a compreensão do poeta e historiador Alberto da Costa e Silva, o organizador deste volume, conseguiram pôr a nocaute meu quase pânico em depor sobre o amigo cuja vida, no seu momento de maior esplendor  criativo, acompanhei de perto. O fato é que sua morte abrupta chocou a todos, em especial os que esperávamos poder desfrutar de sua verve e inteligência por muitos anos. Imagino que a seus leitores também. A idéia de condensar num texto sua trajetória intelectual e humana, e também o drama dos dias finais, que ele encarou com estoicismo, não é uma fácil tarefa. 

Merquior completaria agora em abril 60 anos; não obstante, continua a ser denegrido por muitos que não o conheceram nem o leram. Não poderia eximir-me, portanto, de dar  um testemunho e fornecer alguns elementos para um retrato da maior figura intelectual de sua geração, diplomata exemplar e ser humano inesquecível. Espero, pelo menos, desenhar um esboço, pálido que seja, do que José Guilherme Merquior representou como personalidade e presença vital no mundo da cultura brasileira e internacional.

*****

Nascido sob o signo de Touro, em 22 de abril de 1941, na Tijuca, zona norte do Rio de Janeiro, filho de Maria Alves Merquior (D. Belinha) e Danilo Merquior, advogado, José Guilherme era irmão mais velho de Carlos Augusto, Marco Aurélio e Maria Cristina. A família morava então na rua Dr. Satamini, 94, apto. 402, perto do Colégio Lafayette, onde ele estudou e, desde cedo, impressionou pela inteligência e precocidade. Da primeira viagem à Europa, ainda adolescente, trouxe um busto de Voltaire — tão pesado que seu transporte se transformou num pesadelo familiar. E um dos primeiros presentes que ganhou do pai foi a abertura de uma conta sem limite na livraria Leonardo da Vinci, de D. Vanna Piracini, no centro do Rio.

Na universidade cursou Direito, mas entre os professores a quem mais se afeiçoou estão Dirce Cortês Riedel, de Literatura, e Antonio Gomes Penna, de Psicologia. À primeira dedicou seu livro sobre Drummond, lançado na década de 70, afirmando  que ela "despertou em mim o amor da literatura do nosso tempo"; e era na casa do segundo que muitas vezes preferia hospedar-se quando, já diplomata, passava pelo Rio.

No início da década de 60, Merquior dava aulas de estética em seu apartamento de Santa Teresa a alunos atraídos por um anúncio de jornal que ele mandara publicar. E foi aí que, já casado com Hilda, sua companheira de colégio, recebeu para um jantar em torno do sociólogo americano Talcott Parsons, em julho de 1965. Mas não quis tornar-se professor universitário: preferiu fazer concurso para o Itamaraty, onde tirou o primeiro lugar. Em 1963, Manuel Bandeira o convidou para organizar com ele a antologia Poesia do Brasil. Colaborava então em revistas como PraxisSenhorCadernos brasileiros e Arquitetura. Embora já tivesse publicado artigos no Jornal do Brasil em 1959, só no ano seguinte se vincula ao Suplemento Dominical, então dirigido por Reynaldo Jardim. Numa nota intitulada "Bilhete de editor", publicada no alto da página em 30 de abril de 1960,  lê-se:

A primeira colaboração de JGM nos chegou como centenas de outras através de nossa seção Correspondência. Bastou ler o primeiro artigo para constatarmos que estávamos frente a um legítimo escritor amplamente capacitado a colaborar conosco. Publicamos o artigo e tempos depois chegou outro comprovando a categoria intelectual de seu autor. Mais um ou dois artigos de JGM vieram às nossas mãos sem que o conhecêssemos pessoalmente.

E finaliza o editorial:

Aqui estará ele, sem o compromisso do aparecimento semanal, mas mantendo um certo ritmo em sua colaboração que pretendemos venha contribuir para a melhoria do nível de produção poética em nosso meio.

Neste Suplemento Dominical do JB Merquior assinou mais de 50 ensaios entre 1959 e 1962, alguns de página dupla. Os temas são estéticos, literários e filosóficos. "Neoolakoon ou da espacio-temporalidade" (17.10.59) não foi incluído em livro; "Galatéia ou a morte da pintura I e II" (26.11.60 e 07.01.61) também não. Há apreciações devastadoras sobre livros de poetas — O pão e o vinho, de Moacyr Félix, em 07.05.60;O dia da ira, de Antonio Olinto, em 20.08.60; Operário do canto, de Geir Campos, e Vento geral, de Thiago de Mello, em 12.06.60; Ode ao crepúsculo, de Lêdo Ivo, em 03.06.6l; Três pavanas, de Gerardo Mello Mourão, em 03.06.61.  Mas há também elogiosas considerações sobre  Cassiano Ricardo, Murilo Mendes, Marly de Oliveira, e até  para o hoje desconhecido Edmir Domingues, cujo Corcel de espuma comentou em 04.02.61.

No prefácio ao volume Crítica (1964-1989), de 1990, afirmava, rigoroso,  sobre estes artigos:

Na época, os artigos nada indulgentes de minha coluna de crítica no SDJB, "Poesia para amanhã", incomodavam bastante vários versejadores. Hoje receio que eles incomodem principalmente o próprio autor, menos pela contundência que pela sua superficialidade.

Qualificado por Haroldo de Campos, em artigo no caderno Mais! daFolha de S. Paulo, de "crítico conservador" (19.04.92), já em outubro de 1960 Merquior percebia  — e elogiava — a novidade do trabalho de tradução de Augusto, irmão dele, em E. E. Cummings. 10 poemas:

O livro — muito bem apresentado — traz inclusive uma objetiva introdução de A. C. à técnica de E. E. C. Quanto à versão para o português, é a melhor desejável. De uma maneira geral, A. C. manteve uma fidelidade digna de aplauso, e ainda por cima sem se restringir a um servilismo antipoesia. Nós sabemos quantas vezes o traddutore, por não querer ser traditore, acaba mais traidor do que nunca... Mas a lealdade de A. C. é muito mais ampla. Ela acompanhou a invenção de Cummings quando não é mais possível a simples tradução.

Basta examinar a relação desses artigos no JB, alguns incluídos emRazão do poema, para verificar o grau de maturidade intelectual alcançado precocemente por Merquior. Exigente consigo mesmo, resistiu a todos os apelos para reeditar seus livros iniciais. Desculpava-se dizendo que muito tinha a publicar antes de começar a reeditar. Na antologia de ensaios lançada um ano antes de sua morte referia-se aos artigos não incluídos no primeiro livro:

Excluí desta antologia todos os meus ensaios de estréia, todos os que publiquei desde 1959 no Suplemento Dominical do Jornal do Brasil, na revista Senhor e em outros lugares e não recolhi em minha primeira coletânea crítica, Razão do poema, de l965. (...) Barrei sem remorso a minha juvenília. Como dizia meu saudoso amigo Murilo Mendes, precisamos ser contemporâneos, e não apenas sobreviventes, de nós mesmos.

*****

Na conferência que fez no PEN Club, em junho de 1991, por sugestão afetuosa do cientista político Celso Lafer, que o trouxe ao Rio, Antonio Candido falou pela primeira vez, demoradamente, de Merquior. Em 18 de setembro de 1995, a meu pedido, o crítico enviou-me a versão escrita de trecho dessa fala,  que reproduzi, em parte, na contra-capa da reedição de Razão do poema, pela Topbooks, em 1996. Transcrevo, por sua importância, a página integral, síntese perfeita da  forma mentis de Merquior:

... foi sem dúvida um dos maiores críticos que o Brasil teve, e isto já se prenunciava nos primeiros escritos. Lembro como sinal precursor o ensaio que escreveu bem moço sobre A canção do exílio, de Gonçalves Dias, fazendo uma descoberta que dava a medida de sua imaginação crítica, — entendendo-se por imaginação crítica a capacidade pouco freqüente de elaborar conceitos que têm o teor das expressões metafóricas ou o vôo das criações ficcionais. Estou falando do seguinte: ao comentar a afirmação costumeira que o famoso poema é tão bem realizado porque não tem adjetivos, ele mostrou que a sua eficiência provém na verdade do fato de ser todo ele, virtualmente, uma espécie de grande expressão adjetiva, uma qualificação sem qualificativos, devido à tonalidade do discurso.

Num de seus ensaios mais recentes ele disse que a falta de informação filosófica prejudicava a maioria da crítica brasileira. Ora, deste mal ele estava galhardamente livre. A sua acentuada vocação especulativa e a vasta erudição que a nutria lhe permitiram fazer do trabalho crítico uma investigação que não se satisfazia em descrever e avaliar os textos, mas desejava descobrir o sentimento entesourado e em seguida ligá-lo a outros produtos da cultura. Daí um cruzamento fertilizador, característico do seu trabalho: o pensador José Guilherme Merquior era capaz de expor os seus pontos de vista com a expressividade de um escritor versado na melhor literatura, enquanto o crítico José Guilherme Merquior era capaz de interpretar os textos ou traçar a articulação dos movimentos com a capacidade dialética de discriminar e integrar, própria da mente filosófica. Por isso, poucos foram tão capazes de associar o impulso do pensador ao olhar do leitor penetrante. Nele, era notável a combinação de gosto fino, argúcia analítica, precisão da síntese e transfiguração reflexiva.

Não espanta que, sendo dotado de tais qualidades, Merquior tenha podido com igual maestria fazer análises finíssimas e construir visões integradoras. Ele sabia desmontar a fatura dos textos sem os reduzir à mecânica formalista e inscrever as obras na seqüência temporal sem deslizar para o esquema. Sobrevoando esses dons, a linguagem adequada, expressiva, cheia de flama, parecendo comunicar à página o ritmo trepidante que foi a sua vida de impetuosa dedicação às coisas mentais.

Em algumas passagens de seus livros Merquior esboça uma autobiografia intelectual, como, por exemplo, em A natureza do processo (l982),  escrito em cinco semanas por provocação do editor Sérgio Lacerda:

...o autor não deixa de considerar este livro um reflexo de algumas das preocupações mais vivas de sua geração — uma geração condenada a aprender, na velhice do século, as lições que a história contemporânea já permite extrair da longa emulação de sistemas sociais no nosso tempo.

Ou nas páginas introdutórias de Crítica (1964-1989), que reviu no México, e lhe provocava recordações dos primeiros anos de atividade:

Meu trajeto ideológico foi passavelmente errático até desaguar, nos anos oitenta, na prosa quarentona de um liberal neo-iluminista. Se desde cedo mantive uma posição constante — a recusa dos métodos formalistas, então em pleno fastígio — por outro lado meu quadro de valores mudou muito, especialmente no que se refere à atitude frente às premissas estéticas e culturais do modernismo europeu, berço da doxa humaíistica de nosso tempo.

Antes, em abril de 1981, no discurso de agradecimento pelo prêmio de ensaio do PEN Club, que li em seu nome na cerimônia a que não pôde comparecer, declarou:

Ensaísta que procura não fugir às necessárias tomadas de posição, e insiste em exercer a escrita como discurso eminentemente crítico e autocrítico, não posso deixar de receber a distinção tão expressiva com o sentimento de que o combate por uma literatura menos formalista, mais racional e mais humana, não é uma luta vã — embora seja travada contra várias das mais poderosas mitologias da nossa época. A honra é grande, o estímulo ainda maior; meu agradecimento só pode tomar a forma de uma renovada fidelidade à defesa das letras contra toda superstição ideológica.

*****

Em 1966 seguiu para Paris, seu primeiro posto internacional, como terceiro-secretário, levado por Bilac Pinto. Nessa época Merquior correu o risco de ser cassado: dera conferências no ISEB, participara da organização de um festival de cinema russo no MAM, e, em Brasília, ajudara a coordenar uma exposição de fotógrafos cubanos, pelo que teve de responder a inquérito. Depois trabalhou em Bonn, Londres, Montevidéu, novamente em Londres, uma rápida volta a Brasília, a seguir no México, e mais uma vez em Paris, onde estava como embaixador junto à Unesco quando foi surpreendido pela doença que o mataria, meses depois, nos Estados Unidos, em janeiro de 1991.

José Guilherme Merquior fez no Itamaraty uma carreira rápida e brilhante, o que não significa que tenha sido fácil. Algumas vezes o vi irritado com intrigas e perseguições veladas. Azeredo da Silveira, por exemplo, perseguiu-o o quanto pôde, por identificá-lo como funcionário e amigo de confiança de Roberto Campos. Depois que Merquior foi promovido, mandou-lhe um telegrama de cumprimentos. Recebeu imediatamente outro de Merquior, repudiando as felicitações. E um embaixador da família e do staff de Collor se opôs decisivamente à idéia de sua  nomeação  para o posto de chanceler.

Mas pertenciam também ao Itamaraty alguns dos amigos que mais estimava na vida: Paulo Renato Rocha Santos, a quem dedicou o ensaio sobre Gonçalves Dias; Jerônimo Moscardo de Souza, que chegou a morar em sua casa no período de preparação para o concurso do Itamaraty; Alberto da Costa e Silva, que o ajudou a se safar de problemas burocráticos, numa amizade ainda mais fortalecida pelo apreço que Merquior tinha pela obra poética de Da Costa e Silva, pai; Marcílio Marques Moreira, o interlocutor permanente e elo afetivo com San Tiago Dantas; Rubens Ricupero, cuja clareza mental e conhecimentos de política externa e economia eram para ele fonte de permanente consulta; e Roberto Campos, que sempre procurou ajudá-lo na carreira, como provam algumas cartas do arquivo pessoal de Merquior. Fascinado por sua inteligência, Campos costumava enviar textos de sua autoria para que ele comentasse. Foi ainda na casa de Merquior em Brasília, na noite do dia em que Henry Kissinger fez conferência na UnB interrompida pelos estudantes, que Campos acertou os últimos detalhes de sua  candidatura ao Senado por Mato Grosso.

No começo da carreira conheceu San Tiago Dantas, que se tornou seu amigo. Por especial empenho de Merquior, San Tiago foi o paraninfo da turma de 1963 do Instituto Rio Branco, que escolheu o jovem crítico para orador. O convívio deles foi curto, mas afetuoso. Sempre que se referia ao autor de Dom Quixote — um apólogo da alma ocidental, fazia-o com admiração, e gostava de recordar suas idas à casa dele na rua D. Mariana, em Botafogo, onde a filosofia alemã e a literatura francesa — notadamente Proust, uma das paixões literárias do anfitrião — eram o tema dominante. Relembrava também, com especial emoção, uma visita à casa de San Tiago em Petrópolis na companhia de Hilda, Marcílio Marques Moreira e Jerônimo Moscardo de Souza, ocasião em que o político serviu canjica com coco, sobremesa muito apreciada por Merquior.

Em sua biblioteca, hoje no Centro Cultural Banco do Brasil, no Rio, há alguns livros de San Tiago, entre eles um exemplar de Figuras do Direito(ed. José Olympio, 1962) dedicado: "A J. Guilherme Merquior, com a estima e admiração de San Tiago Dantas". A data é 24 de julho de 1964, menos de dois meses antes da morte do ex-chanceler, às 6 da manhã do dia 6 de setembro. Sob o impacto dessa morte, Merquior escreveu um artigo e, como de praxe, consultou o Itamaraty antes de divulgá-lo. Era seu desejo publicar no Jornal do Brasil, conforme se lê no pedido que o então terceiro-secretário enviou, no dia 16 de setembro de 1964, ao chefe do Departamento Consular e de Imigração do Itamaraty, solicitando "juízo favorável à publicação do referido texto". No protocolo, há quatro rubricas e apenas uma assinatura legível — a do secretário-geral A. B. L. Castelo Branco. No parecer final, lê-se: "Só poderá ser autorizada a publicação se o funcionário escoimar do artigo toda opinião política, na forma dos regulamentos em vigor. Nada há a opor aos merecidos elogios pessoais". Como o artigo nunca apareceu nas páginas do JB, é de se supor que Merquior, a ter que suprimir passagens do texto, preferiu não publicá-lo. Contratempos à parte, ele não deixava de reconhecer que devia ao Itamaraty o fato de ter realizado a trajetória intelectual que conhecemos.

O  emocionado artigo de Merquior  começa assim:

Junto ao túmulo de San Tiago Dantas, Afonso Arinos e Roberto Campos falaram dele como do mais dotado  representante de sua geração;  disseram da invencível tristeza de ver desaparecer, colhido aos cinqüenta e poucos anos, aquele exemplo superior de uma geração que, tendo chegado tarde ao poder, parece destinada a sofrer a sua fugacidade até mesmo na perda prematura de alguns de seus melhores membros.

Inédito até a morte de Merquior, este texto destaca o sentido pedagógico da atuação pública de San Tiago para as novas gerações e reconhece a originalidade de sua visão da sociedade brasileira e das relações internacionais, ressaltando que sempre sobrepôs ao tosco moralismo — tendo na época na UDN a mais alta representação — uma visão larga dos problemas, amparada permanentemente numa ética e num entendimento íntimo da "razão histórica". Em 1969, Merquior dedicou à memória de San Tiago Arte e sociedade em Marcuse, Adorno e Benjamin, primeiro tratamento sistemático, entre nós, sobre a Escola de Frankfurt.

Em todos os postos onde esteve procurou difundir a cultura brasileira. Embaixador no México, criou a cátedra Guimarães Rosa, além de ter realizado a compra da atual sede da embaixada por empenho pessoal junto ao presidente José Sarney. Ali tornou-se íntimo do poeta e ensaísta Octavio Paz, que viria a saudá-lo na sua despedida, em nome dos mexicanos, numa simpática festa organizada por Hilda nos jardins da embaixada. A convite de Paz, voltaria ao México, já doente, para o seminário "El siglo XX: La experiencia de la liberdad", organizado pela revista Vuelta e a Televisa, participando do debate sobre "La nueva Europa, Estados Unidos y America Latina", ao lado de Daniel Bell, Hugh Thomas, Mario Vargas Llosa, Jean François Revel. Teve alguns livros editados pelo Fondo de Cultura Económica, a mais prestigiosa editora mexicana, e colaborou em revistas como Vuelta, de Octavio Paz e Enrique Krause; Cuadernos y Libros Americanos, de Leopoldo Zea, e Nexos, de Hector Aguilar Camín. Foi Krause, historiador que estimava por sua corajosa revisão da história mexicana, quem melhor escreveu sobre Merquior depois de sua morte, no artigo "O esgrimista liberal" (Vuelta, janeiro de 1992).

(...) Sua maior contribuição à diplomacia brasileira no México não ocorreu nos corredores das chancelarias ou através de relatórios e telex, mas na tertúlia de sua casa, com gente de cultura deste país. (...) A Embaixada do Brasil se converteu em lugar de reunião para grupos diferentes e até opostos de nossa vida literária. Lá se esqueciam por momentos as pequenas e grandes mesquinhezas e se falava de livros e idéias e de livros de idéias. Merquior convidava a gregos e troianos, escrevia em nossas revistas e procurava ligar-nos com publicações homólogas em seu Brasil. (...) Merquior cumpriu um papel relevante: foi uma instância de clareza, serenidade e amplitude de alternativas no diálogo de ambos os governos.

*****

Professor no  King's College, em Londres,  doutorou-se em letras pela Sorbonne, orientando de Raymond Cantel, com tese sobre Carlos Drummond de Andrade aprovada com louvor em junho de 1972. Depois de levar meses para  acusar a remessa dos capítulos que Merquior lhe enviava, Drummond respondeu:

Eu poderia  tentar justificar-me alegando que esperava o recebimento do texto completo para lhe escrever. Mas a verdade verdadeira é que, desde a leitura das primeiras páginas, me bateu  uma espécie de inibição que conheço bem, por ser velha companheira de minhas emoções mais puras. Se você estivesse ao meu lado nos momentos de leitura, decerto acharia graça na dificuldade e confusão das palavras que eu lhe dissesse. Talvez até  nem dissesse nenhuma. E na minha cara a encabulação visível diria tudo... ou antes, não diria nada, pois o melhor da sensação escapa a esse código fisionômico. Senti-me confortado, vitalizado, vivo. Meus versos saem sempre de mim como enormes pontos de interrogação, e constituem mais uma procura do que um resultado. Sei muito pouco de mim e duvido muito — você vai achar graça outra vez — de minha existência. Uma palavra que venha de fora pode trazer-me uma certeza positiva ou negativa. A sua veio com uma afirmação, uma força de convicção que me iluminou por dentro. E também com uma sutileza de percepção  e valorização crítica diante da qual  me vejo orgulhoso de nobre orgulho e... esmagado. Eis aí, meu caro Merquior. Estou feliz, por obra e graça de você, e ao mesmo tempo estou bloqueado na expressão dessa felicidade.

Também doutorou-se na London School of Economics, sob a batuta de Ernst Gellner — de quem viria a se tornar amigo e introdutor da obra entre nós — com tese sobre a teoria da legitimidade em Rousseau e Weber, publicada depois pela Routledge & Kegan Paul, e que, no posfácio, em 1990, à edição brasileira finamente traduzida por Margarida Salomão,  qualificou de "meu livro mais elaborado". Este passou quase despercebido no Brasil, embora tenha provocado na Inglaterra o mais vivo interesse acadêmico, ganhando elogios de Peter Gay, John Hall e Wolfgang Mommsen,  o grande especialista em Weber.

Ele poderia ter sido igualmente um crítico imbatível de artes plásticas, porque acompanhava tudo a respeito, mantendo-se atualizado sobre as novidades teóricas no setor. Adorava Poussin, Tiepolo, mas também escreveu sobre Degas, Hodler, Lygia Clark, Lygia Pape, e outros. Veja-se os eruditos ensaios que dedica ao tema em Formalismo e tradição moderna. Em viagem a Florença, já doente, fez questão de rever a capela Brancacci, onde se encontram os afrescos de Masaccio,  pintor  que tanto estimava. Pode-se mesmo dizer que a Itália foi a sua pátria artística, e não escondia o desejo de, um dia, ser nomeado  embaixador neste país.

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Quando decidiu candidatar-se à Academia Brasileira de Letras não imaginava que a disputa com Arnaldo Niskier iria se prolongar por mais de um ano. Examinou as possibilidades. Escreveu à mão uma tabela com os nomes dos acadêmicos por estado: na Bahia, onde supunha ter mais votos, os de Luiz Viana Filho, Jorge Amado, Herberto Sales e Eduardo Portella. Ao lado do último nome desenhou um envelope, ou seja, Portella votaria por carta. O mesmo desenho aparece ao lado do nome de João Cabral. Na horizontal lia-se a lista por estados; na vertical  os nomes dos membros da ABL agrupados segundo as expectativas de voto: "certos, prometidos, prováveis, possíveis, certos para Niskier". Na primeira votação ninguém conseguiu quorum. Niskier tinha em Austregésilo de Athayde, presidente da casa, seu mais poderoso aliado.

Marcou-se nova eleição para meses depois. O poder de que diziam estar Merquior aureolado não contou. Não houve ministro nem presidente Figueiredo fazendo pedidos constrangedores aos votantes. Merquior teve de acompanhar sozinho o desenrolar da campanha. O empresário José Carlos Nogueira Diniz, amigo e compadre, pôs à sua disposição um pequeno apartamento na Sá Ferreira —  rua  onde morava sua mãe, Dona Belinha — e ele vinha para o Rio nos fins-de-semana encontrar-se com eleitores e amigos. Em novembro de 1982, elegeu-se, depois de longa disputa, à vaga de Paulo Carneiro na ABL, vencendo por 22 votos contra 15 dados a Niskier e um a Geir Campos. A recepção, na vitória, foi patrocinada pelo mesmo Nogueira Diniz, que recebeu, em seu apartamento na Barra da Tijuca, convidados em grande maioria da república das letras. O discurso de posse, que muitos levam meses a escrever, Merquior fez num fim de semana, e no dia da cerimônia, 11 de março de 1983, chegou à Academia de táxi. Nada que sugerisse o poder que lhe era atribuído.

Nesta ocasião entrevistei-o para a Última hora (13.11.1982) e, entre outros assuntos, perguntei-lhe sobre o liberalismo. Sua resposta:

O liberalismo moderno é um social-liberalismo, é um liberalismo que não tem mais aquela ingenuidade, aquela inocência diante da complexidade do fenômeno social, e em particular do chamado problema social, que o liberalismo clássico tinha. O liberalismo moderno não possui complexos frente à questão social, que ele assume. É a essa visão do liberalismo que eu me filio.

Sobre a validade dos conceitos de direita e esquerda afirmou:

Eu acho que esse tipo de conceituação está em grande parte esvaziado pelo uso demasiado sloganesco que dele tem sido feito. O problema da direita versus esquerda, usado na base do clichê, tem levado realmente a muito pouca análise. É o caso típico em que a discussão produz mais calor do que luz. Trata-se de palavras dotadas de uma grande carga emocional e que são usadas para fins puramente polêmicos na vida política e no combate ideológico. Eu hoje sou um cético em relação ao uso dessas categorias.

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O último ensaio de Merquior chamou-se "Situação de Miguel Reale", para o volume Direito Política Filosofia Poesia, coordenado por Celso Lafer e Tércio Sampaio Ferraz Jr. para a editora Saraiva, comemorativo do octogésimo aniversário de Reale. Embora escrito em meio a exames médicos, pois a doença  estava avançada,  provocou o entusiasmo de Reale, que em carta de 7 de dezembro de l990 assim o expressou:

É uma análise abrangente e profunda, ponto de partida essencial a qualquer nova indagação, a começar pelas observações sobre o culturalismo. Você viu bem a correlação de meu pensamento com o de Croce, pois bem cedo fui um leitor entusiasta de sua revista, Critica, que renovou o pensamento italiano. (...) A influência de Hegel e Marx em minha formação foi atenuada pela filtragem croceana, revelando-se logo minha oposição a Gentile e seu idealismo "attualista". (...) Outro ponto que me impressionou foi o seu paralelo com Raymond Aron, a quem me aproximo  pela constante vivência  da problemática filosófica em sintonia com a política.

Trabalhador intelectual incansável e extremamente organizado, Merquior escrevia com rapidez, praticamente sem corrigir. Uma vez, já no aeroporto, de volta para Londres, se deu conta de que não preparara seu artigo semanal para o JB. Pediu-me que conseguisse umas folhas de papel e voltasse em meia hora. Fui passear pelo aeroporto e, quando retornei, recebi o manuscrito e um novo pedido: que fizesse a gentileza de mandar datilografar e enviar, no dia seguinte, ao Mario Pontes, do JB. Escrevendo de Londres, em 16 de outubro de 1984, ao mesmo Miguel Reale, que lhe estranhara o silêncio dos últimos meses, conta:

A razão do meu silêncio é a infindável labuta de minha pena este ano, ora em pleno terceiro livro. No primeiro semestre, redigi um estudo sobre Foucault, a sair aqui dentro de um ano, e um exame crítico algo alentado do estruturalismo e sua sequela: From Saussure to Derrida(350 pgs.). Agora me encontro todo entregue a um volume, mais conciso, sobre o marxismo ocidental. Todos encomendas locais. Mas deram e dão trabalho: releituras, novas leituras, reapreciações....

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Um artigo fundamental para a compreensão do modo como Merquior pensava o Brasil publicou-se na Folha de S. Paulo em l0.03.l985. "Nova República: o horizonte social-liberal" começava dizendo:

Como imaginar o Brasil da Nova República? Talvez não seja mau começar por uma constatação: a de quanto o nosso país, até aqui, já conseguiu desmentir os estereótipos mais renitentes sobre a América Latina em seu conjunto

E finalizava com um agudo perfil de Tancredo Neves:

Graças a seu senso histórico-filosófico do papel do Estado, Tancredo regenera a noção da autoridade legítima entre nós. Daí a tranqüila, suave impressão que cerca, nesse homem proverbialmente afável, o sentido no entanto vivíssimo da autoridade. Reparem nas montanhas de Minas: delas emana uma majestade amena, muito diversa da monumentalidade abrupta de outros relevos. Algo semelhante deflui da imago potestatis de Tancredo. Essamajestas sem pompa, mas sempre cônscia da própria dignidade, é a que melhor consulta os requisitos do poder em reconstrução na transição democratizante. (...) No discurso de Vitória, Tancredo preconizou o reforço da democracia e a reanimação do princípio federal. O poder, na Nova República, admite, deseja desconcentrar-se. E pode fazê-lo, porque o que perder em concentração será ganho em autoridade. No ciclo atribulado da nossa Quarta República, Juscelino nos ensinou o convívio com o desenvolvimento. A grande, sóbria esperança da Nova República é que com Tancredo, nosso príncipe civil, a nação interiorize de vez a vivência da democracia. Qualquer coisa aquém disso seria indigna do Brasil moderno.

O desejo de interferir no debate social brasileiro levou Merquior a escrever, em diversas ocasiões, a políticos com quem tinha relações de amizade. A José Sarney, então presidente, endereçou cartas hoje preciosas para a análise do seu pensamento político, como é exemplo a que mandou de Londres, em 15 de abril de 1985.

(...) A meu ver, seu governo será um bombom: o recheio é castelista (Sarney, Leônidas), mas o envelope de chocolate será a Aliança Democrática, com dominante PMDB.

A alternativa: governar também com o PDS,  me parece ir, se a dose for muito alta, contra a aspiração de mudança que anima o país, e portanto poderia impopularizar. O que, evidentemente, não proíbe o aproveitamento de um que outro nome nacional do PDS.

A permanência do Presidente no PMDB torna-se, por essa lógica, a essa altura, imprescindível. Se V. lá está, para que sairia? O único resultado prático de uma eventual preferência pelo PFL seria entregar o maior partido ao herói de Homero.

Quando o que seria conveniente contê-lo, em sua condição de alternativa latente para seu poder presidencial, aliciando para tanto boa parte do PMDB. Como? Reforçando a ligação Sarney-Lyra. Fazendo talvez Fernando Henrique ministro (do exterior? da própria Casa Civil?). E sobretudo fazendo desde já certos gestos simpáticos à esquerda, embora — ça va sans dire — sem comprometer a linha moderada, social-liberal, que presidiu o nascimento da nova república. Uma 'apertura a sinistra', sem exagero.

Que gestos poderiam ser esses? De imediato, vejo dois. Um, o seu programa de emergência, desde que assegurada a sua compatibilidade com o reforço efetivo do combate à inflação.

Este ponto, meu caro Sarney, é absolutamente vital. V. está sendo — injustamente — acusado de não ligar para a severidade indispensável da nossa postura econômico-financeira. Nós, os literatos, seremos sempre acusados de moleza nesse capítulo. O jeito é impedir a todo custo que essa imagem falaciosa ganhe terreno. A inflação é de fato o mais cruel dos impostos: sempre atinge principalmente a pequena classe média e as camadas populares, e a preocupação de dominá-la não é nenhum preconceito direitista ou conservador.

Na mesma carta advoga o reatamento das relações com Cuba, colocando-se à disposição para trabalhar discretamente nesse processo:

Outro gesto de grande charme para a esquerda: reatar relações com Cuba. 'Eles ficariam meio ano digerindo este pitéu, obrigados a achar que 'pô, esse Sarney até que não é assim tão reaça...'

Cuba hoje não oferece maiores perigos na América do Sul. O guevarismo já era. E o reatamento tem pelo menos três vantagens para nós:

a)      abriria um significativo potencial de exportações brasileiras;

b)      permitiria ao Brasil influir, em boa medida, na conduta internacional de Havana, como faz o México, em sentido moderador e realista;

c)      evitaria que, no futuro, nosso reatamento se desse a reboque de uma reconciliação diplomática Cuba/USA, reconciliação essa, a médio prazo, tão certa quanto o foi o reconhecimento de Pequim por Washington, na década passada.

Em 1º de outubro de 1990, Merquior teve um encontro com o presidente Fernando Collor de Mello na passagem deste por Paris, a caminho de Praga. Voltariam a se encontrar na residência parisiense de Baby Monteiro de Carvalho, quando conversaram a sós por quase uma hora. Nesta noite, Collor expôs suas ideias sobre um partido social-liberal e pediu a Merquior para desenvolver o tema. O paper que produziu, só conhecido por uns poucos com os quais discutia enquanto o elaborava, são, no original, 33 páginas datilografadas, nas quais estrutura uma "agenda social-liberal para o Brasil", abrangendo sete temas: a) o papel do Estado; b) democracia e direitos humanos; c) o modelo econômico; d) capacitação tecnológica; e) ecologia; f) a revolução educacional; e g) desarmamento e posição internacional do Brasil. Só não desenvolveu os itens d e e, sugerindo, já doente, que pedissem a Roberto Campos para fazê-lo.

Esses textos, pensados como programa de partido, escritos e ampliados a partir das intuições e indicações de Collor, foram depois publicados por este, provocando uma grande confusão nos jornais, que o acusavam de plagiar Merquior. Em O Globo de 10 de janeiro de 1992, Roberto Campos, com sua natural lucidez, resumiu a questão: "Vejo na atitude de Collor um procedimento normal a qualquer presidente, que raramente escreve seus artigos e discursos. A figura do ghost-writer é uma instituição mundial".

Nos últimos anos, sempre que Merquior vinha ao Brasil marcávamos  visita ao escritório do advogado Jorge Serpa,  para uma "auscultação" da situação política e econômica do país. Merquior gostava das análises de conjuntura que Serpa sabia fazer, da maneira como via o Brasil em consonância com o mundo lá fora. A conversa também passava por temas filosóficos, pois Serpa é um orteguiano de carteirinha, além de conhecedor de filosofia antiga, em especial o Platão do Sofista. Curiosamente, sempre que saíamos do escritório do advogado, então na Praça Pio X, Merquior pedia para irmos até a igreja da Candelária. Postava-se a admirar o interior, fazendo comentários estéticos, e nunca falava em religião ou fé. Mas penso que, no íntimo, esses assuntos o acicatavam.

Foi também Jorge Serpa quem pavimentou o caminho de José Guilherme Merquior  até às páginas de O Globo. Certo dia, depois de almoçarmos na TV Globo, na hora da despedida, Roberto Marinho chamou Merquior a um canto da sala. Vi que ele balançava a cabeça negativamente, naquele jeito que só quem o conheceu poderia entender. E ria. Depois, no carro, contou-nos o diálogo. ---"Merquior, você tem alguma coisa contra O Globo?" — "Não, Dr. Roberto, nada. Por quê?" — "Porque nunca o vi escrevendo no Globo". Começava ali, naquela tarde, a coluna A vida das idéias,  que estreou a 6 de dezembro de 1987 e só terminou pouco antes de sua morte, com um  artigo intitulado "O sentido de 1990".

A convite de Collor, Merquior estava em Brasília, a 20 de fevereiro de 1990, para o almoço em torno do escritor peruano Mario Vargas Llosa, então candidato à presidência do Peru, mas tendo ainda que enfrentar o segundo turno das eleições. O almoço, na casa do médico Eduardo Cardoso, teve também a presença do empresário Roberto Marinho. Dois dias antes Merquior me ligara de Londres, contando que estava fazendo as malas porque tinha recebido um telefonema de Marcos Coimbra informando que Collor o convocava a participar desse encontro. Os jornais logo começaram a especular sobre suas possibilidades ministeriais.

Viajei para Brasília no dia seguinte com Dr. Roberto e seu amigo Álvaro Dias de Toledo. No hangar, nos esperavam Merquior e Toninho Drummond, diretor da TV Globo na capital. Sugeri a Merquior que desse ao Dr. Roberto um quadro da situação, e deixamos os dois conversando por uns 20 minutos. Depois Toninho entrou num carro com Dr. Roberto e Álvaro, eu em outro, com Merquior, e rumamos para  a Q.I. 15 do Lago Sul, endereço da bela mansão  do amigo de Collor. Despedi-me de Merquior e fui, com Toninho e Álvaro, almoçar na TV Globo.

Por volta das 15h30, Roberto Marinho chegou do almoço. Descansou meia hora no sofá da sala de Toninho, e logo após seguimos para o aeroporto. No avião, perguntei: "O que o senhor achou do almoço? Viu chances em relação à nomeação de Merquior para o Ministério das Relações Exteriores?" E o Dr. Roberto: "Não tive oportunidade de conversar sozinho com o Collor. Aliás, tenho pouca intimidade com ele, apesar de conhecê-lo desde pequeno. Mas o Merquior foi prestigiadíssimo no almoço. A toda hora o presidente reportava-se a ele. Pediu-lhe, inclusive, que fizesse o discurso de saudação a Vargas Llosa".

À noite Merquior ligou para comentar os fatos do dia. Disse-me que o presidente dera a ele uma sala no Palácio para que trabalhasse no discurso de posse (depois modificado na segunda parte por Gelson Fonseca). Merquior ficou em Brasília até a quinta-feira, e esteve no Senado, onde seu encontro com Fernando Henrique Cardoso causou frisson entre repórteres e fotógrafos. Contou-me depois, de Paris, que Collor o havia sondado para o Ministério da Cultura, mas, diplomaticamente, fizera ver ao presidente que a nomeação lhe traria uma redução salarial drástica num momento em que os filhos Júlia e Pedro ainda se encontravam em idade escolar. Naturalmente teria aceitado o Ministério das Relações Exteriores, o coroamento da carreira no Itamaraty, mas nunca lamentou, nem demonstrou rancores de qualquer ordem: não era do seu feitio. Retomou os compromissos profissionais em Paris; para Collor escreveu ainda um discurso, lido na República Tcheca como saudação a Vaclav Havel, e outro para ser dito em Portugal.

*****

Merquior era um  contendor verbal rápido e certeiro, mas querer reduzi-lo apenas a polemista é um erro. A  propensão ao debate de idéias, que muitas vezes levou-o a rebater com dureza os adversários, foi usada pela mídia com fins facilitários. Poucas  vezes  se procurou promover seriamente uma discussão profunda. Os adversários usaram sua veia polêmica para desqualificá-lo como figura exponencial da direita: se o argumento de Merquior era forte — e não havia dúvidas de que era um erudito imbatível — então a saída era atacá-lo noutro flanco.

Um caso sintomático ocorreu quando chamou a atenção para a presença de vários parágrafos de Claude Lefort em livro de Marilena Chauí, sem as devidas aspas.   Em vez de desculpar-se — afinal, Merquior nunca falara em plágio, e sim em "desatenção", como disse, em julho de 1989, na Folha de S. Paulo: "Repito pela enésima vez que ao detectar a presença de frases de Lefort no texto de Marilena jamais me passou pela cabeça  achar que ela o fazia com a intenção de esconder o leite" — a filósofa paulista revidou batendo na velha tecla de direita versus esquerda. O fato é que se armou uma tempestade em São Paulo, com direito até a abaixo-assinado e outras reações azedas contra ele.

Todos os que não conseguiam enfrentá-lo de forma minimamente razoável partiam para o agravo. Eduardo Mascarenhas, por exemplo, declarou que Merquior praticava "terrorismo bibliográfico", isso porque seus livros tinham muitas citações. Em nenhum fórum intelectual sério este tipo de argumento funcionaria. Então no auge da fama — por ter declarado que "jamais brochara" — Mascarenhas revelou, num programa de televisão em que Merquior era o entrevistado, que se dera ao trabalho de contar quantos nomes havia no índice onomástico de As idéias e as formas. Logo depois começaram os debates entre os dois no Jornal do Brasil sobre a validade científica e epistemológica da psicanálise. O jornal não economizou espaço. Merquior declarara, no Canal Livre, que "a psicanálise era uma doença do intelecto", e em "O avestruz terapêutico", artigo publicado no JB, em 31 de janeiro de 1982, completava:

Desconfio que a próxima edição do perspicaz Tratado geral dos chatos, de Guilherme Figueiredo, trará um capítulo especialmente consagrado ao chato analisando, que, decretando 'todo mundo neurótico', não descansa enquanto não vence a 'resistência' (ou torra os países baixos) dos amigos e até conhecidos, no ignóbil afã de prostrá-los no divã.

No início dos 80, o debate com os psicanalistas mobilizou a imprensa. Os artigos de Merquior no JB, onde colaborava, dividiram a opinião dos intelectuais especialistas na matéria. O psicanalista Mascarenhas respondia pela categoria. Na época,  dizia-se que seus textos, antes de publicados, eram lidos por colegas teoricamente mais preparados. Coincidência ou não, o fato é que lançou depois vários livros e jamais recolheu, em nenhum deles, o material que assinou durante a polêmica. Ele encarnava a classe ferida, da qual um dos gurus era Hélio Pellegrino. Este veio a publicar um artigo na Folha de S. Paulo (13.02.82) sob o título: "Comigo não, violão!", onde procurava desacreditar Merquior enfatizando tratar-se de "funcionário de governo anti-democrático". Como não apresentou nenhuma refutação teórica relevante, levou Merquior a dizer: "Trata-se de um pensador sem idéias e um autor sem livros".  No artigo-resposta, publicado no mesmo jornal  no dia l7 e intitulado "Escapismo e agressão", Merquior contra-atacava:

As críticas que venho dirigindo à psicanálise certamente possuem uma quota de sátira, irresistivelmente provocada pela própria beatice que costumam exibir os círculos devotos de Freud. No entanto, desde o início, isto é, desde junho de 1980, quando foi lançado o livro O fantasma romântico, todos os textos em que procurei questionar a validez científica, terapêutica e cultural da psicanálise expõem vários argumentos e várias referências a pesquisas empíricas, uns e outras inteiramente independentes, em si mesmos, do tom de sátira ou ironia presente nesses escritos.

Merquior não conhecia Hélio pessoalmente. Nessa mesma época, fomos a uma galeria de arte em Ipanema, e, mal chegamos, noto pelo vidro o Hélio Pellegrino. Nisso, alguém vem falar comigo, e Merquior entra antes que pudesse preveni-lo de que Hélio estava lá. Fico acompanhando de fora o que se passa no interior, e daí a pouco o vejo em meio a um grupo onde se encontrava o psicanalista. Conversa longa, cheia de risos. Em seguida ele vai para  outra roda. Quando consigo me deslindar,  parto a seu encontro, e me  pergunta: "Quem é aquele camarada simpático?" Era Hélio Pellegrino.  Merquior riu muito ao saber.

Uma de suas maiores qualidades residia em saber apreciar o contendor inteligente. As discussões com Leandro Konder — de quem se tornara amigo antes dos 20 anos, quando se conheceram nas sessões de cinema do MAM e logo passaram a trocar ideias em torno da obra do marxista húngaro Georg Lukács — e com Carlos Nelson Coutinho, outro companheiro pelo qual tinha enorme afeição,  contabilizava-as entre seus prazeres intelectuais. Respeitava críticas agudas, como a de Rubem Barbosa Filho a O marxismo ocidental, em julho de l987, na revista Presença. E seu primeiro livro, Razão do poema, ainda hoje considerado um feito por tê-lo publicado aos 25 anos, teve apresentação de Leandro Konder. Mas, ao contrário de Leandro e Carlos Nelson, houve também os que preferiram, para desviar a atenção, tachá-lo, simplesmente, de reacionário e intelectual orgânico da ditadura.

Entre os muitos com quem polemizou estava o sociólogo Francisco de Oliveira,  que Merquior considerava 'filosoficamente incompetente', desafiando-o para um debate público. O sociólogo recusou, mas se comprometeu a publicar qualquer ensaio que o desafiante enviasse aos Cadernos Cebrap, de que era diretor. Antes havia dito que só lera um livro do seu adversário. Em declaração à Folha de S. Paulo Merquior atacava: "Enquanto não acontece o debate eu tenho duas tarefas para ele — ler alguns dos meus livros e realizar com categorias marxistas uma análise das reformas econômicas gorbatchovianas". Para Oliveira, o marxismo estava em plena vitalidade, enquanto para Merquior eram visíveis os sintomas de exaustão.

Polemizou também com Mário Vieira de Mello, nos Cadernos Rio Arte, sobre temas gregos; com Carlos Nelson Coutinho sobre a democracia no interior do marxismo; com José Artur Gianotti; com o embaixador Meira Pena sobre o pensamento de Jung, e com muitos outros. Acusado por figuras como Carlos Henrique Escobar de "empregadinho da ditadura militar, servil servidor de um providencial cabide de empregos para intelectuais orgânicos", reagiu qualificando o adversário de "intelectual pigmeu e leviano".

Respondendo ao crítico literário Wilson Martins, que comentara em dois artigos, publicados em junho de l984 no JB, o livro O elixir do apocalipse (1983), num texto a que chamou "O martinete", ironizou:

Minha famigerada erudição, já cansei de insinuar, mal passa de uma ilusão de ótica. Na maioria das vezes em que é indigitada, ela parece refletir apenas a ignorância dos que a acusam. Será minha culpa se, em nosso meio intelectual, volta e meia ainda se valoriza mais a sacação do que a fundamentação, o palpite do que o argumento, a alegre usurpação de idéias alheias do que o cuidado em identificar tradições de pesquisa e linhagens de pensamento?

Todas essas tomadas de posição eram atitudes críticas, não pessoais. Fez questão de convidar Marilena Chauí a dar conferência no México — e ela não aceitou. Certa vez referiu-se a Caetano Veloso como "um pseudo-intelectual de miolo mole". E fundamentava a opinião: "...não compartilho dessa visão pateta do Brasil de que os grandes astros da música popular são intelectuais". Conversando com Caetano, há tempos, dele ouvi que, depois desse episódio, certa noite em São Paulo pediu a seu assistente para limitar a afluência  ao  camarim após o show,  porque  um compromisso o obrigava a  sair tão logo finalizasse a apresentação. Soube depois que Merquior  lá estivera, mas fora barrado pelo assessor, que não fazia a menor idéia de quem ele era. Caetano achou graça da desinformação de seu empregado, confessou que gostaria de ter recebido o ensaísta, e repetiu, divertido, a  expressão "miolo mole", afirmando que Merquior estava certo. Creio que a conversa entre  os dois teria sido cordialíssima.

*****

Testemunhei inúmeras reações hostis a Merquior, em geral de pessoas que não o conheciam pessoalmente. Darcy Ribeiro, por exemplo, durante muito tempo só se referia a ele com ironias. "E o seu amigo de direita?", me perguntava.  Ou ainda: "Como vai o protegido de Roberto Campos?" Nos seus cacoetes de homem de esquerda, costumava falar de supostas comissões recebidas pelo economista e diplomata e depositadas em  nome de pessoas íntimas dele, como Merquior. Nas reuniões das manhãs de quinta-feira em seu gabinete, chamadas de "Culturinha'' — quando acumulava os cargos de vice-governador e secretário de Cultura do Estado do Rio de Janeiro, no governo Brizola — vez por outra fazia comentários maledicentes sobre  Merquior e sua obra — que intuía mas não tinha lido. Surpreendi-me quando, um dia, Darcy me chamou com ar aliciante, dizendo: "Zé Mario, você tem falado com  seu amigo reacionário?" Sabendo a quem se referia, respondi: "Falo sempre". E ele: "Preciso de uma ajuda. É o seguinte: o Brizola quer erigir um monumento a Zumbi dos Palmares. Vamos ter que abrir concurso, o que é um desastre, porque pela lei somos obrigados a aceitar a escultura ganhadora, e  acho a escultura que se faz hoje no Brasil  uma merda. A mais bela estatuária negra que já vi está no Museu Britânico, que possui uma magnífica coleção de estátuas do Benim, na Nigéria. Como ninguém sabe a cara que tinha Zumbi, minha idéia é pôr no monumento desenhado pelo Oscar (Niemeyer)  a cópia de uma dessas estátuas, mas para isso preciso de uma reprodução em gesso de uma delas. Fale, por favor, com seu amigo em meu nome, e diga que estou pedindo a ajuda dele".

Telefonei imediatamente para Merquior, que se prontificou a colaborar. Nem imaginava a confusão burocrática em que se metera. No Museu, ao explicar o que desejava, lhe informaram que se tratava de patrimônio nacional da Nigéria, e era necessário pedir autorização. Ansioso, a toda hora Darcy perguntava pelo assunto. Até que Merquior desembarca no Brasil trazendo a desejada cópia, e me procura na vice-governadoria — exatamente numa quinta-feira, dia em que o staff cultural de Darcy se reunia numa sala ao lado do seu gabinete. E chega quando os membros desse conselho começam a sair e se deparam com ele no corredor trazendo uma caixa debaixo do braço. Muitos ficam surpresos ao vê-lo, mas logo Darcy aparece e grita: "Merquior, que prazer vê-lo!" E dirigindo-se aos outros: "Bem, pessoal, me despeço de vocês,  porque tenho muito o que conversar com o Merquior e o Zé Mario". Em seguida nos arrasta para seu gabinete, e o final da história está na Avenida Presidente Vargas, no monumento a Zumbi dos Palmares: aquela cabeça é a cópia tão desejada por Darcy e conseguida por Merquior...

 Depois disso, sempre que ele vinha ao Brasil almoçávamos com Darcy, muitas vezes em seu apartamento, na esquina de Bolívar com Avenida Atlântica. E mudou  a maneira do antropólogo se referir a Merquior. Darcy passou a dizer: "Esse camarada é realmente muito inteligente". E conversavam, conversavam muito. Quando da inauguração do Memorial da América Latina, em março de l989, Merquior o ajudou nos contatos com os convidados mexicanos. E veio a São Paulo a convite de Darcy, o comandante do evento, que hospedou  os convidados — dele e do governo de São Paulo — no Macksoud Plaza. Darcy também convidou Merquior a escrever na Revista do Brasil, então sob sua  tutela. A camaradagem adensou-se ainda mais quando descobriu que Merquior escrevera sobre Rondon. Fez questão de incluir o artigo no número 1 da revista Carta, que editava no Senado, e redigiu a nota: "Veja aqui o Merquior, jovem filósofo, avaliando Rondon, o maior dos humanistas brasileiros".

Ainda em março de 89 acompanhei Merquior numa visita a Antonio Carlos Magalhães, internado no Incor, que nos recebeu de pijama curto, sereno, às vésperas de submeter-se a delicada cirurgia no coração. À noite fomos jantar com Celso Lafer e sua mulher Mary, e o encontro no Fasano revelou-se uma delícia, nem tanto pela comida mas pelas saborosas histórias que ouvi de ambas as partes. 

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A biblioteca de Merquior construiu-se em função de suas urgências intelectuais. Nos primeiros anos predominou o interesse por temas literários. Quando se mudou para Paris,  doou à UnB cerca de mil livros, afora os que deixou no Rio, na casa de sua mãe,  na rua Sá Ferreira, e no escritório do pai. Numa passagem pelo Rio, abriu várias caixas de livros: separou alguns, me deu outros e doou o resto para a instituição onde o pai trabalhava. Havia de tudo nessas caixas, desde a obra inteira de Buckminster Fuller, que leu em virtude do então entusiasmo de Marcílio Moreira pelo autor, até uma inusitada Méthaphysique du strip-tease, de um tal Denys Chevalier, que me ofertou, às gargalhadas, dizendo tratar-se de "leitura fundamental".

Chegando a  Paris, intensifica a compra  de livros de sociologia e antropologia. É o período de seu curso com Claude Lévi-Strauss, de quem se tornaria amigo, como se pode depreender das inúmeras cartas trocadas (e da nota de pesar que enviou a Hilda, logo após a morte do ex-aluno, confessando que "admirava em Merquior um dos espíritos mais vivos e mais bem informados de nosso tempo"). Já em Londres, acentua-se na biblioteca a presença de títulos de cunho liberal, obras de Weber e Rousseau, que foram usadas para a redação da tese de doutorado na London School of Economics.

Merquior contribuiu para a divulgação pioneira no Brasil da Escola de Frankfurt. Seu Arte e sociedade em Marcuse, Adorno e Benjamin, publicado pela Tempo Brasileiro de Eduardo Portella — e  ao qual  viria depois a se referir  como livro excessivamente heideggeriano — é ainda hoje uma referência central ao tema. Dos pensadores tratados neste volume, permaneceu o entusiasmo pelo heterodoxo Walter Benjamin. Na revista de Portella  publicou  muitos ensaios, além da entrevista que, junto com Sérgio Paulo Rouanet, fez com o pensador francês Michel Foucault, cuja obra examinaria criticamente depois, em livro publicado originalmente na Inglaterra e logo traduzido para várias línguas (inclusive o turco). Há nos ensaios de O fantasma romântico um certo enfrentamento crítico às posições defendidas por Octavio Paz. Eles irão, no entanto, estreitar relações no México, em função do ideário liberal que Merquior mais e mais defendia.

José Guilherme Merquior dividiu sua obra em duas categorias: 1) crítica; 2) estética, cultura, política. No primeiro grupo se encontram Razão do poema — Ensaios de crítica e estética (1965); A astúcia da mímese — Ensaios sobre lírica (1972); Formalismo e tradição moderna — O problema da arte na crise da cultura (1974); O estruturalismo dos pobres e outras questões (1975); Verso, universo em Drummond (1975);De Anchieta a Euclides: breve história da literatura brasileira I (1977); O fantasma romântico e outros ensaios (1980); As idéias e as formas(1981); O elixir do apocalipse (1983); De Praga a Paris (1986). No segundo grupo: Arte e sociedade em Marcuse, Adorno e Benjamin — Ensaio crítico sobre a escola neo-hegeliana de Frankfurt (1969);Saudades do carnaval — Introdução à crise da cultura (1972); A estética de Lévi-Strauss (1977); O véu e a máscara: ensaios de cultura e ideologia (1979); Rousseau e Weber: dois estudos de teoria da legitimidade (1980); A natureza do processo (1984); O argumento liberal (1985); Michel Foucault ou O niilismo de cátedra (1985); O marxismo ocidental (1987); Liberalismo antigo e moderno (1990). Isso para não falar dos textos inéditos no Brasil, que serão reunidos sob o título O outro Ocidente; os artigos em O Globo, a serem publicados com o nome da coluna, A vida das idéias; e os dispersos em revistas e jornais e que não incluiu em livro.

Há ainda a organizar as polêmicas, as entrevistas e a correspondência, rica e variada,  que, muitas vezes, ele xerocava antes de enviar. Neste caso estão as cartas que mandou a Gilberto Freyre, a primeira delas escrita em Bonn, entre 28 de julho e 3 de agosto de 1972, da qual destaco dois trechos:

Prezado mestre Gilberto Freyre,

Tive a honra e o prazer de conhecê-lo pessoalmente em Paris, há uns 3 ou 4 anos, na embaixada do Brasil (...). Não creio que o senhor se lembre do que me disse então sobre o seu projeto de livro dedicado aos cemitérios pernambucanos(projeto que me deixou curiosíssimo, ansioso pela possibilidade de comparar sua prosa necropolitana com os poemas tumulares de Drummond, João Cabral e Murilo Mendes, meus poetas de cabeceira entre os nossos modernos).

Faço, desde 60, uma crítica literária que procura enriquecer-se no contato com a filosofia e as ciências humanas. (...) pertenço a uma geração impregnada de hostilidade em relação a Gilberto Freyre. Embora desconcertado por, ou contrário a, mais de um juízo seu, não compartilho esse sentimento, a meu ver preconceituoso. Sou relativamente imune seja às restrições 'científicas' a seu método sociológico, em geral feitas por gente surda ao verdadeiro exame de consciência que a sociologia se vem saudavelmente entregando (basta ver, no mundo alemão, a crítica ao pseudo-objetivismo sociológico, desde um Freyer até, hoje, um Habermas), seja nos sarcasmos dos que se enraivecem ante a 'impossibilidade' de ajustar as análises sócio-culturais de obras como Casa-grande & senzala ao figuro 'progressista'.

Nessa longa carta, início de uma firme amizade, Merquior aproveita para cobrar recente declaração do sociólogo pernambucano:

(...) discrepo da sua porretada em Lévi-Strauss. O senhor sabe muitíssimo bem que não se trata de nenhum 'mediocrão'. Conheço bem a obra dele, fui seu aluno no Collège de France durante quatro anos. Tristes tropiques é um texto saborosíssimo, de riqueza montaigniana, mas não é, como o senhor não ignora, uma coisa central na obra científica de L.S. O que aí se diz sobre um certo Brasil (especialmente paulista) não é, afinal, tão injusto quanto o senhor sugere. Ninguém melhor do que o senhor tem condições, entre nós, para aquilatar a riqueza de perspectivas de livros como Anthropologie structurale e Lapensée sauvage; livros, sobretudo o último, plenos de áreas de convergência com a analítica anti-idealista (anti-idealista sem metafísica "materialista", é claro; anti-idealista no sentido em que toda autêntica sociologia do conhecimento o é) e anti-etnocentrista de Gilberto Freyre. E L.S. não "desemburrou" no Brasil — desemburrou nos Estados Unidos, em contato com Jacobson, etc. Aliás, mesmo que ele tivesse sido realmente injusto com o Brasil, e daí? não deveríamos nós — e Gilberto Freyre a fortiori — aplicar nossa indulgente tolerância brasileira ao caso? Tolerância que se desdobraria em objetividade de juízo, permitindo o reconhecimento do valor da obra de intelectuais menos amigos do Brasil.

Uma antologia de textos de Merquior deveria incluir as páginas sobre Machado de Assis contidas em De Anchieta a Euclides; o ensaio sobre Gilberto Freyre em As idéias e as formas; "A interpretação estilística da pintura clássica" em Formalismo e tradição moderna; os capítulos finais de Saudades do Carnaval; "Malraux contra Gide", em O estruturalismo dos pobres e outras questões; "O modernismo e três de seus poetas", emO elixir do apocalipse; "Guerra ao homo oeconomicus" e "Linhas do ensaísmo de interpretação nacional na América Latina", em O argumento liberal; a seção "Psicanaliteratura", em O fantasma romântico; "O vampiro ventríloquo", "Na casa grande dos oitenta" e "A volta do poema", em As idéias e as formas, isso para não falar de seus inúmeros ensaios publicados em revista estrangeiras, como "O logocídioocidental", "Vico, Joyce e a ideologia do alto Modernismo", "Em defesa de Bobbio", e outros muitos inéditos no Brasil.

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Em 1980, Merquior voltou a residir em Brasília, depois de uma temporada em Montevidéu um pouco tormentosa — até porque sua biblioteca tardou meses a ali chegar — mas que também lhe deu o clima propício para aprofundar o conhecimento da história política e ideológica latino-americana,  ao escrever o último livro, Liberalismo — Antigo e moderno, principalmente na parte em que trata de Sarmiento e Alberti.

Na capital brasileira trabalhou então com Francisco Rezek na assessoria de Leitão de Abreu e voltou a dar aulas na UnB, onde praticou uma consultoria informal, ajudando com seus contatos a trazer ao Brasil grandes nomes do pensamento internacional no momento de maior efervescência da editora dessa universidade, então sob a direção do também diplomata Carlos Henrique Cardim.

Logo começaram a falar que  era "o intelectual da ditadura", responsável pela redação de discursos. Curioso que nunca tenham imputado a mesma acusação ao mineiro Rezek, que com ele trabalhava. Nessa época, Merquior me contou que, numa reunião no palácio com vistas a impedir a construção do Memorial JK, desenhado por Niemeyer, fizera apenas um comentário aos adversários do projeto: "Acaba de sair em Londres uma obra importante, Makers of Modern Culture, onde só foram incluídos dois brasileiros, Carlos Drummond de Andrade e Oscar Niemeyer. Peço considerarem o fato". O memorial acabou sendo erguido. Não necessariamente por artes de sua retórica, mas o episódio diz bem da liberdade de opinião e senso do relevante que impregnavam os aspectos mais corriqueiros de sua vida.

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Vê-lo trabalhando era interessantíssimo: fazia de início, na sua letra miúda inconfundível, um pequeno roteiro, que com os anos foi ficando cada vez mais reduzido e taquigráfico. Não usava fichas ou computador, mas, quando se punha a escrever, o texto ia saindo pronto, limpo, sinônimo de uma organização mental impressionante. Os originais de O liberalismo — Antigo e moderno, por exemplo, que me mostrou no México, pareciam psicografados. Escritos em inglês, à mão, como tudo o que produziu, não tinham rasuras, vacilações ou emendas.

Estudioso de tempo integral, Merquior sempre ironizou a sua "tão propalada erudição". A certeza de que o conhecimento é infinito o fez, obsessivamente, tomar contato com tudo o que considerava relevante em várias línguas, através de inúmeros jornais e revistas especializadas, que devorava com apetite. Entrar com ele numa livraria (e fiz isso dezenas de vezes no Brasil e no exterior) era uma experiência intelectual indescritível. Conhecia tudo. Até o dia de sua morte permaneceu lúcido, com a vivacidade e o humor que fizeram dele não só o amigo ideal, mas o ensaísta elegante, o inexcedível crítico de poesia, e o polemista implacável, sempre disposto, porém, a aplaudir o adversário inteligente. Até o fim acalentou projetos, entre os quais o de um longo ensaio sobre o modernismo.

Sobre a última conferência, em Paris, o embaixador Rubens Ricupero — a quem Merquior dedicou, junto com Celso Lafer, o ensaio "Em defesa de Vico contra seus admiradores" —  anotou em seu diário:

Perto do fim, mobilizou as forças restantes para o que seria sua última palavra: a palestra de abertura do ciclo 'O Brasil no Limiar do Século 21', organizado por Ignacy Sachs. Foi em 17 de dezembro de 1990. Tomei o trem para ir escutá-lo em Paris e voltei a Genebra na mesma noite. Minha impressão ficou registrada nesse escrito da época: '...tive quase um choque físico ao revê-lo. Estava devastado pela doença; sua cor, seu olhar, seus traços faciais, sua extrema fragilidade e magreza pareciam de alguém que tivesse retornado da casa dos mortos. No entanto, quando começou a falar, sem texto escrito, sem notas, num francês límpido como água da fonte, o auditório se desligou do drama a que assistia. Durante quase uma hora, acompanhamos como a história do Brasil se renovava sob os nossos olhos por meio da sucessão e do entrechoque dos diversos projetos que os brasileiros sonharam para o país desde a independência. Terminada a palestra, foi a vez de Hélio Jaguaribe falar. Exausto com o esforço descomunal, José Guilherme cruzou os braços sobre a mesa e neles repousou a cabeça, no gesto de um menino debruçado sobre a carteira da sala de aula'.

Merquior lutou contra o irracionalismo na cultura, os ataques à razão histórica, os formalismos na arte, sempre procurando inserir o Brasil em suas reflexões. Os ensaios que produziu nos últimos anos deixam claro a preocupação que o moveu no sentido de entender as peculiaridades da política e da crise institucional brasileira. Acompanhava com interesse o que estavam produzindo intelectuais como Wanderley Guilherme dos Santos, Hélio Jaguaribe, Fábio Wanderley Reis e José Murilo de Carvalho. Foi um solidário companheiro intelectual, procurando ajudar como podia: às vezes a editar um livro, como fez com o primeiro de Evaldo Cabral de Mello; outras, empenhando-se com seu característico entusiasmo em fazer chegar à Academia figuras nobres como Evaristo de Moraes Filho, a quem dedicou o último ensaio; revendo e sugerindo acréscimos a Afonso Arinos — que o chamava de "meu filho" e o beijava no rosto — quando o memorialista finalizava o livro Amor a Roma. Vi-o também procurando ajudar Eduardo Portella a se instalar em Paris, para onde seguira como diretor da Unesco; mostrando-se atencioso com John Gledson quando este começou a se interessar por Machado de Assis; e empenhando-se, junto a colegas acadêmicos, para trazer Pedro Nava aos quadros da ABL em 1983. E paro aqui porque gestos dessa natureza eram a tônica de sua personalidade.

O pensamento maduro de Merquior forjou-se principalmente no convívio de intelectuais como Raymond Aron, seu mestre e amigo, figura cativante, de gestos sóbrios, fala mansa e olhar injetado de ironia, com quem passamos, no começo da década de 80, um dia inesquecível no Rio; Ernst Gellner, o antropólogo e teórico do nacionalismo, cuja refutação epistemológica da psicanálise tanto fascínio exerceu sobre ele; Perry Anderson, o teórico do Estado absolutista e editor da New Left, com quem gostava de debater as questões teóricas do marxismo; o sagaz crítico literário Harry Levin;  o erudito historiador Arnaldo Momigliano, que o iluminou no enfrentamento crítico à obra de Foucault; Leszek Kolakovski, autor de uma história intelectual do marxismo que lia e recomendava; Lucio Coletti, agudo analista das contradições da dialética; e Norberto Bobbio, por suas reflexões sobre a democracia e o liberalismo.

Alguns o supunham um pedante, figura sem humor, incapaz de se alegrar com as trivialidades da vida mundana. Nada disso. Gostava de comer bem, de viajar, de ouvir boa música, de admirar bons quadros, não passava sem o perfume Armani, e, embora não ligasse para bebida, fazia questão de tomar caipirinha sempre que vinha ao Brasil. Embora não pudesse ficar muito tempo ao sol devido à pele branca, certa vez, distraído, mergulhou de óculos e acabou por perdê-los no mar de Copacabana.

Tinha fascinação por detalhes: numa adaptação cinematográfica da obra de Proust, chamou minha atenção para as costas da belíssima Ornella Muti. Gostava de contar e ouvir piadas de toda natureza, inclusive eróticas, e divertia-se em compor dedicatórias usando nomes famosos. Numa biografia de Alma Mahler escreveu: "Ao jovem e distinto brasileiro, Dr. José Mario Pereira Filho, pedindo-lhe indulgência para com todas as corníferas figuras que povoaram a vida de Alma, com a perene admiração e as cordiais saudações do José Pereira da Graça Aranha, Aix-les-Bains, janeiro de 1889".

Era capaz de comprar um livro mesmo que apenas um trecho o interessasse, e tinha memória prodigiosa. Uma vez, de férias no Rio, me ligou perguntando se possuía uma obra de Pierre Manent sobre o liberalismo, porque precisava confirmar uma citação. Apanhei o livro na estante e Merquior disse: "Veja no capítulo tal... Diz mais ou menos assim?" E o ouvi citar, sem tirar nem pôr, um parágrafo inteiro. Admirava os aforismos de Lichtenberg, a obra de Musil, Canetti e Borges — com quem passou uma tarde em Buenos Aires, em 1980, e de quem ganhou um livro de H. A. Wolfson sobre Spinoza  que há anos perseguia. Não perdia encenações do diretor italiano Giorgio Strehler, e se tornou amigo de Gláuber Rocha, a quem  considerava, "com a lucidez da sua loucura, o melhor sismógrafo  da  turma  de 60". Nos últimos tempos quase não lia romance, mas leu e gostou de Viva o povo brasileiro!, de João Ubaldo Ribeiro.

Encerro este depoimento sobre José Guilherme Merquior — o intelectual, o esteta, o pensador, o crítico, o polemista extraordinários, mas também o fraternal amigo — narrando mais uma cena reveladora de sua personalidade singular. Em Boston, com Hilda, para nova consulta sobre a saúde, aproveitou para marcar uma visita à editora Twayne, que finalizava a edição de Liberalism, Old and New. No encontro com o médico, ouviu com resignação o diagnóstico de que tinha pouco tempo de vida. Hilda, sempre cuidadosa, sugeriu que fossem para o hotel, mas ele não quis: dali mesmo, apoiando-se na companheira de toda a vida, rumou para a editora, onde o aguardavam. Comportou-se lá como se nada de errado estivesse acontecendo. Com a cordialidade habitual, verificou os detalhes sobre a publicação, fez sugestões quanto à capa do livro que tanta alegria lhe dera escrever — e, sabia agora, jamais veria impresso — e despediu-se sem deixar a menor suspeita de que em breve partiria para uma outra esfera do tempo...

 

Rio de Janeiro, 11-20 de fevereiro de 2001